Opinião

Modulação dos efeitos da Súmula 610/STJ sobre o suicídio no seguro de vida

Autor

  • Ana Maria Blanco

    é advogada sócia do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS).

15 de junho de 2020, 9h11

Até pouco tempo atrás, as súmulas 105/STF [1] e 61/STJ [2] asseguravam a indenização do seguro de vida em decorrência de suicídio do estipulante, ressalvada a hipótese de premeditação do ato ao tempo da contratação. Esse entendimento judicial consolidado imperou mesmo diante de cláusulas que estipulavam prazo de carência para cobertura frente a risco de suicídio. E perdurou ainda durante um tempo após a promulgação do Código Civil de 2002, que trouxe dispositivo legal distinto do parágrafo único do artigo 1.440, CC/1916, por não fazer qualquer menção à premeditação, mas eleger critério objetivo, afastando a indenização diante de suicídio praticado nos dois primeiros anos de vigência do contrato.

Retomou-se, por tal razão, o debate, sendo paradigmático o REsp 1.334.005/GO, julgado pela 2ª Seção STJ em 8 de abril de 2015, prevalecendo o voto da ministra Maria Isabel Gallotti no sentido de aplicação do critério objetivo do artigo 798, CC/2002. Posteriormente, sobreveio, com isso, a Súmula 610, segundo a qual "o suicídio não é coberto nos dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de vida, ressalvado o direito do beneficiário à devolução do montante da reserva técnica formada" (DJe de 7/5/2018).

A despeito da nova compreensão consolidada, remanesce relevante questão que não permite dar por pacificado o tema seguro de vida e suicídio no curso do prazo de carência legal, e o REsp 1.721.716/PR é a clara demonstração disso. Nesse caso analisado, o pleito de indenização securitária fora julgado procedente em primeira instância, com base nas Súmulas 105/STF e 61/STJ vigentes à época. Em sede de recurso de apelação cível, o TJ-PR deu provimento ao apelo da seguradora com base na nova interpretação ao artigo 798, CC. Promovido o recurso especial, teve sua admissibilidade negada, situação somente modificada em agravo. Ao proferir seu voto, a ministra Nancy Andrighi inicia delimitando a controvérsia: novo entendimento judicial consolidado alcança os litígios iniciados sob as súmulas anteriores?

Como destaca a relatora, a hipótese examinada diz respeito a julgamento proferido em 2014, antes mesmo do caso paradigmático da mudança de entendimento do STJ (REsp 1.334.005/GO, j. 8/4/2015). No entendimento da ministra Nancy, é o caso de aplicar-se a chamada teoria da superação prospectiva da jurisprudência (prospective overruling), de que teria sido precursor o juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Benjamin Cardozo (por ocasião do julgamento do caso Great Northern Railway v. Sunburst Oil and Refining Company, de 1932, na linha de conferências que vinha proferindo desde 1921, posteriormente reunidas na obra The Nature of Judicial Process). Atenta aos critérios então estabelecidos, a julgadora conclui que a teoria da superação prospectiva tem a "finalidade de proteger a confiança dos jurisdicionados".

Quanto ao Brasil, a relatora refere que a questão da eficácia retroativa de decisões sequer costumava ser discutida, o que passou a ser enfrentado nas matérias de jurisdição constitucional, sobrevindo somente depois as primeiras disposições legais a respeito (artigo 27 da Lei nº 9.868/99, artigo 12 da Lei nº 9.882/99, e artigo 4º da Lei nº 11.417/06), culminando com a regra específica contida no artigo 927, §3º, NCPC. No pensamento da ministra Nancy, essa aproximação com a common law, mediante a flexibilização da tradição processual da civil law, tem por propósito maior "garantir a isonomia de ordem material a partir da qual questões semelhantes devem receber respostas equivalentes, na medida de suas desigualdades e a proteção da confiança e da expectativa legítima do jurisdicionado, fornecendo-lhe um modelo seguro de conduta de modo a tornar previsíveis as consequências de seus atos". Reconhece, contudo, não ser qualquer precedente capaz de justificar a aplicação da teoria, uma vez que há de ser observado o sistema de precedentes e seus elementos estruturantes, conforme deveres instituídos no artigo 926, NCPC.

A seguir, a relatora menciona precedente da 2ª Seção do STJ, qual seja REsp 1.312.736/RS, 2ª Seção, Dje 16/08/2018, que reconhece como critério à modulação de efeitos o "interesse social" e "segurança jurídica". Aponta, outrossim, para a abordagem doutrinária segundo a qual é necessária uma "confiança qualificada" em dado entendimento judicial, concluindo que a modulação propiciada pela prospective overruling deve ser articulada com prudência. No caso sob exame, finaliza a relatora, a aplicação da teoria é "medida que se impõe, pois, mesmo se houve alteração legislativa, que alterasse todo o arcabouço regulatório dos seguros de vida, mesmo em situações de suicídio, a hipótese da recorrente não seria afetada pela irretroatividade das leis, com mais razão não se poderia aplicar retroativamente nos autos que já contava com sentença favorável o novo entendimento jurisprudencial".

Ainda que, diferentemente do que ocorre nos sistemas common law, as ideias de precedente e vinculabilidade na experiência brasileira estejam sob peculiar processo de construção e consolidação, a adoção da prospective orverruling não se trata de uma importação irrefletida. A solução verificada no REsp 1.721.716/PR sob exame é acertada, não só porque se alinha aos termos da legislação processual civil em vigor responsável por parte da concretização do peculiar processo antes mencionado , como também observa o raciocínio mais elementar subjacente à teoria aplicada.

As primeiras notícias acerca das ideias elementares que ensejaram a prospective overruling são, na realidade, anteriores ao juiz Cardozo, mas todas caminhavam à promoção da segurança jurídica, que é, em última análise, o que se pretende resguardar como fator de promoção de justiça em concreto, opondo-se a oscilações de entendimento judiciais que surpreendam jurisdicionados.

O preceito da segurança jurídica não se trata de novidade no sistema jurídico brasileiro, sobretudo no plano constitucional, que alça à categoria de direito fundamental a preservação de fatos consumados (artigo 5º, XXXVI, CRFB/88). Se a lei, como regra e em vista da segurança jurídica, não retroage, por que a modificação de entendimento judicial retroagiria?

Não se está com isso sustentando que um entendimento judicial consolidado abstratamente considerado possa ter a mesma repercussão de um direito adquirido, ato jurídico perfeito e da coisa julgada no plano concreto de dada relação. Todavia, é inegável que entendimento judicial consolidado em um sentido, como norma interpretativa, possa subsidiar e pautar a conduta do jurisdicionado, sendo, por essa razão, imperiosa a necessidade de modular efeitos diante da modificação substancial do entendimento outrora verificado.

Percebe-se, outrossim, dois aspectos importantíssimos da prospective overruling: I) a existência de um posicionamento judicial consolidado que inspire a "confiança qualificada" do jurisdicionado; e II) sua posterior modificação, com repercussão clara sobre o resultado então legitimamente esperado. Registra-se: quando a doutrina refere "confiança qualificada", deve-se compreender que não esteja sob questionamento o entendimento consolidado, é dizer, que sua modificação ou revogação não seja previsível.

No caso do seguro de vida, é possível cogitar que, desde a promulgação do CC/2002, seria esperada a revogação das Súmulas 105/STF e 61/STJ. Mas há algo questionável nessa "intuição" que não a autorizaria como algo evidente: o fato de que a interpretação esperada do artigo 798, CC, seria aquela mais consentânea com as súmulas precedentes ora revogadas, ao menos em sua racionalidade mais elementar quanto à presunção.

Isso porque tais súmulas trabalhavam com a ideia de "indenização, salvo premeditação". Logo, persistia a ideia de presunção da boa-fé do segurado, o que, aliás, é o que costuma pautar o ordenamento jurídico e sua aplicação, facultada prova por parte da seguradora quanto à premeditação. A presunção de "não premeditação" era, de qualquer forma, relativa. A interpretação esperada e mais razoável do artigo 798, CC, deveria se dar na mesma linha.

No entanto, a interpretação dada ao critério objetivo para afastar a garantia e o alcance do capital estipulado ao beneficiário por suicídio do segurado/estipulante no período dos dois primeiros anos, sobretudo após a promulgação da Súmula 610/STJ, indica a presunção absoluta de premeditação durante esse período. Exclui-se, com isso, a possibilidade de o beneficiário demonstrar que, por exemplo, no curso desse prazo, o segurado/estipulante fora acometido por grave patologia que o levou ao ato extremo, circunstância distinta da premeditação.

Dois pesos, duas medidas. Quando interpretada, a norma securitária contida no CC/1916 era compreendida em favor do segurado/estipulante cogitando da sua boa-fé e a presunção em tal sentido era relativa. A partir de dado momento, mais de dez anos após a promulgação do CC/2002, a norma securitária então vigente passou a ser interpretada e compreendida de forma a favorecer a seguradora, instituindo-se uma presunção absoluta no período de dois anos objeto do artigo 798, CC. A situação fática subjacente, à margem das modificações legislativas e de entendimento judicial, segue sendo a mesma: contingências da existência humana que, conforme suas interações e intensidade, pode levar qualquer pessoa, em qualquer tempo e independente de vigências contratuais, à prática de suicídio.

No caso examinado, com mais razão era pouco ou nada esperado que sobreviria interpretação na contramão da proteção do segurado/estipulante e beneficiário, frisa-se, partes mais vulneráveis da relação contratual de especial complexidade técnica e formada por adesão. A sentença de primeira instância, subjacente ao REsp 1.721.716/PR, no sentido de procedência do pleito de indenização securitária data de 2014. Em que pese à essa época já houvesse voto no sentido da atual interpretação ao 798, CC (AgRg no Ag 1.244.022-RS, julgado em 13/4/2011), por maioria a 2ª Seção, nessa ocasião, ratificou os termos das Súmulas 105/STF e 61/STJ.

Quanto ao "interesse social" expressado no voto da ministra Nancy como critério à aplicação da prospective overruling, é de se questionar se a adoção de nova posição judicial, revogando-se a anterior, não é, por si, de extrema relevância a justificar a modulação de efeitos em razão do preceito da segurança jurídica. Se assim não for, e o interesse social se dá em sentido estrito e relativo ao tema objeto do novo entendimento judicial consolidado, tratando-se de cobertura de seguro de vida, a relevância é latente. É inegável a função social desse tipo de contrato e, considerado o ato extremo praticado, são conhecidas as consequências perenes e nefastas aos beneficiários, normalmente familiares, e muitas vezes sob dependência econômica do segurado/estipulante.

Assim, se Súmula 610/STJ é, desde sua promulgação, a consolidação do novo tratamento dos casos de suicídio, é crucial que tenha seus efeitos modulados em relação a fatos e litígios precedentes para que a aplicação desse questionável entendimento judicial seja justa, ao menos nesse aspecto.

 

[1] Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do seguro.

[2] O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado.

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    é advogada, sócia do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia, mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS).

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