Opinião

Quem detém a última palavra sobre a Constituição?

Autor

  • Renzzo Giaccomo Ronchi

    é juiz de Direito do TJ-MG doutorando em Direito pelo IDP mestre em Direito Constitucional pelo IDP docente da Escola Judicial (Ejef) do TJ-MG e professor colaborador do mestrado em administração pública da UFVJM.

14 de junho de 2020, 6h38

O artigo 102 da Constituição da República diz textualmente que compete ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição, mas, a despeito disso, não faltam vozes nos cenários político e jurídico atual para defender posição diversa.

Cumpre-nos, portanto, desvendar essa questão, precisamente perguntas como quem deve ser o guardião da Constituição? E quais são os limites da jurisdição constitucional em um Estado democrático de Direito?

No século passado, no início da década de 30, Carl Shimitt e Hans Kelsen divergiram sobre quem deveria ser o guardião da Constituição.

Carl Shimitt escreve o livro "O Guardião da Constituição" [1], no qual, em síntese, vai defender que o controle de constitucionalidade deveria ser exercido pelo chefe máximo do Poder Executivo federal (o então presidente do Reich), não podendo ser transferido a um tribunal, sob pena de politização da Justiça e enfraquecimento do princípio democrático manifestado pela soberania popular. Shimitt era nazista e visava, com sua tese, a ampliar os poderes do chanceler.

No mesmo ano de publicação da obra de Carl Shimitt, Hans Kelsen escreve e publica o seu contraponto, intitulado "Quem deve ser o Guardião da Constituição?" [2], sustentando, em resumo, que o controle de constitucionalidade das leis deve ser exercido por tribunais constitucionais, pois, segundo o autor, ninguém pode ser juiz em causa própria (Kelsen referia-se ao Poder Executivo Federal, que exercia o poder, e ao Poder Legislativo, que criava as normas), além de minorias possivelmente serem esmagadas pela regra majoritária.

Quem vence o debate? Naquele contexto histórico não houve uma resposta clara sobre a tese vencedora, até porque, em termos de jurisdição constitucional, havia somente o exemplo dos Estados Unidos da América por meio do controle difuso desde o precedente de Marbury vs. Madson, muito situado em seu contexto particular, além dos tribunais constitucionais da Áustria e da Tchecoslováquia na Europa.

Naquele momento, inclusive, seria até adequado mencionar que Shimitt teria vencido o debate, pois, em 1934, Adolf Hitler assumia a presidência alemã, detendo, a partir de então, amplo controle político e jurídico sobre a Constituição.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, e o terror de Auschwitz sendo revelado ao mundo, ninguém tinha mais dúvidas de que Hans Kelsen foi, em verdade, o vencedor do dissenso e, embora a história o massacre como sendo o maior expoente do positivismo legalista, é mal compreendido pelo conjunto de sua obra, pois se trata de um verdadeiro democrata defensor do constitucionalismo e da jurisdição constitucional.

Assim, com exceção de poucos países, a exemplo da Inglaterra, que não possui um sistema de controle de constitucionalidade, e a França, que somente veio a adotar um controle de constitucionalidade a partir de uma reforma constitucional em 2008, houve no mundo ocidental a consolidação da jurisdição constitucional por meio da sua função contramajoritária de defesa dos direitos fundamentais.

É nota marcante, assim, a função contramajoritária da jurisdição constitucional, da qual surgiram precedentes após a segunda metade do século XX que marcaram definitivamente não apenas a história do Direito Constitucional, mas, também, da própria evolução da doutrina dos direitos humanos.

A título de ilustração, em 1954 a Suprema Corte americana julgava o caso Brown vs. Board of Education, declarando que a segregação racial entre alunos brancos e alunos negros nas escolas públicas era inconstitucional por violar o princípio consagrado na 14ª Emenda à Constituição e, com isso, pondo fim à doutrina do separate but equal (separados, mas iguais), que vigorava no Estados Unidos desde 1896. Foi a função contramajoritária da jurisdição constitucional que contrariou a maioria racista que prevalecia naquele país.

Não por outro motivo que Georges Abboud, ao tecer comentários sobre a função contramajoritária da jurisdição constitucional, anotou que: "Além de sua importância como instrumento de limitação do poder público, os direitos fundamentais exercem forte função contramajoritária. Assim, ter direito fundamental assegura a existência de posição juridicamente garantida contra as decisões políticas de eventuais maiorias políticas" [3].

Também no final do século passado, precisamente em 1998, o Tribunal Constitucional da Colômbia, em decisão que contrariou os interesses da maioria política em um país destruído pela guerra civil envolvendo o exército, as Farqs (forças armadas revolucionárias da Colômbia) e o cartel de Medellín, declarou que a situação das mais de três milhões de pessoas deslocadas de suas residências por causa da violência no país constituía um estado de coisas inconstitucional, reconhecendo, assim, uma violação massiva dos direitos humanos da população pobre deslocada e a omissão do Estado colombiano em implementar políticas públicas para a proteção de seus direitos violados [4].

No Brasil também há notáveis exemplos de decisões contramajoritárias proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, promovendo a defesa de direitos fundamentais e, assim, contrariando interesses, quer da maioria política, quer da maioria da sociedade.

Foi assim nos seguintes julgamentos:

I) ADI nº 4277/DF, de relatoria do ministro Ayres Britto, Pleno, DJe de 14.10.2011, sendo reconhecida a constitucionalidade das uniões homoafetivas;

II) ADPF nº 54/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, Pleno, DJe de 30.4.2013, sendo declarada a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal;

III) ADPF nº 187/DF, de relatoria do ministro Celso de Mello, Pleno, DJe de 29.5.2014, para dar ao artigo 287 do Código Penal, com efeito vinculante, interpretação conforme à Constituição, de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos;

IV) ADPF nº 347 MC/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, Pleno, DJe de 19.2.2016, sendo reconhecido o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro com determinação a todos os juízes e tribunais do país para realizarem audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão; e à União que liberasse o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos;

V) ADO nº 26/DF, de relatoria do ministro Celso de Mello, Pleno, julgada em 13.6.2019, acórdão pendente de publicação, para, com eficácia geral e efeito vinculante: a) reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do artigo 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBT; b) declarar, em consequência, a existência de omissão normativa inconstitucional do Poder Legislativo da União; c) cientificar o Congresso Nacional, para os fins e efeitos a que se refere o artigo 103, § 2º, da Constituição c/c o artigo 12-H, caput, da Lei nº 9.868/99; e d) dar interpretação conforme à Constituição, em face dos mandados constitucionais de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do artigo 5º da Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional;

VI) ADCs 43, 44 e 54, todas de relatoria do Ministro Marco Aurélio, Pleno, julgadas em 7 de novembro de 2019, acórdão pendente de publicação, nas quais restou assentada a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, sendo reconhecido que fere o princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal) a medida consistente em dar início ao cumprimento da pena antes de serem esgotadas todas as possibilidades de recurso (trânsito em julgado).

Esses julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal revelam que em países democráticos, sobretudo aquelas democracias em desenvolvimento como é o caso do Brasil , é absolutamente necessária a presença do Poder Judiciário como garantidor do pacto constitucional.

Assim, conquanto não faltem vozes sustentando que a última palavra sobre a Constituição deveria ser dita ou pelo Poder Legislativo (Jeremy Waldron [5]) ou pelo Poder Executivo (Carl Shimitt), fato é que a história, que deve ser rememorada, mostra-nos que as Supremas Cortes de cada país foram quem até o momento exerceram melhor essa função, equilibrando as forças políticas e sociais adversas.

Em seu livro "O liberalismo político" [6], John Rawls vai sustentar que os juízes são os melhores intérpretes constitucionais pela qualidade deliberativa das Cortes Supremas, que decidem em conformidade com a ideia de razão pública, entendida esta como um ideal de dar razões a que todos os cidadãos possam razoavelmente aceitar, à luz de princípios e ideais racionais e razoáveis, enquanto cidadãos livres e iguais.

Ainda segundo Rawls, juízes e, particularmente, tribunais constitucionais precisam justificar o controle de constitucionalidade à luz da Constituição, das leis e dos precedentes relevantes, ao passo que tal exigência não é cobrada do legislador e nem do Poder Executivo, reforçando ainda o autor que juízes são os únicos que têm que justificar com razões públicas o dever de consistência e coerência com a visão constitucional que guiam suas decisões, devendo interpretar a Constituição tomando em conta casos, práticas, tradições e textos, não podendo invocar moral pessoal, nem ideais ou virtudes da moral em geral e muito menos crenças religiosas ou visões filosóficas, mas, ao contrário, devem observar os valores políticos que acreditam ser parte da concepção mais razoável de justiça e da razão pública.

A defesa da jurisdição constitucional não se resume a entregar a Constituição aos tribunais e aceitar que "a Constituição é aquilo que dizem as cortes", até porque toda forma de ativismo judicial ou juristocracia deve ser combatida, sob pena de o excesso de intervenção judicial acarretar violação ao princípio da separação de poderes. Não bastasse isso, é causa de uma indevida judicialização em todas as esferas do ambiente privado.

Para tanto, como forma de fiscalização, propõe-se três caminhos perfeitamente viáveis de exercício: I) em momento de grande tensão constitucional, deve ser instaurada a via do diálogo institucional como mecanismo criador de respeito institucional e estabilidade entre poderes [7]; II) maior abertura procedimental em casos relevantes para participação popular, por meio de audiências públicas, se considerado que o Supremo Tribunal Federal realizou um quantitativo ínfimo de atos dessa natureza desde a instituição da figura do amicus curiae, em 1999, com a edição da Lei nº 9868; e III) em casos difíceis (hard cases), o julgamento não poderá ser pautado por argumentos de política, e, sim, por argumentos de princípio, sob pena de o princípio democrático e a própria legitimidade do Poder Judiciário no exercício da jurisdição constitucional serem gravemente afetados, como nos ensina Dworkin em sua obra "Levando os direitos a sério" [8].

Não existe Estado democrático de Direito sem a sobrevivência de instituições democráticas, de modo que o pêndulo da democracia, com todas as suas vicissitudes, deve permanecer nas mãos das Cortes Supremas.

 


[1] SCHIMITT, Carl. O Guardião da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey; 2007.

[2] KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes; 2007.

[3] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais; 2019, p. 456.

[4] PORFIRO, Camila Almeida. Litígios estruturais. Legitimidade democrática, procedimento e efetividade. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2018, pp. 134-135.

[5] WALDRON, Jeremy. Derecho y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons; 2005.

[6] RAWLS, John. Liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes; 2011.

[7] FERREIRA VICTOR, Sérgio Antônio. Diálogo institucional e controle de constitucionalidade. Debate entre o STF e o Congresso Nacional. São Paulo: Saraiva; 2015.

[8] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes; 2017.

Autores

  • Brave

    é juiz de Direito do TJ-MG, de entrância especial, titular do Juizado Especial Cível, Criminal e da Fazenda Pública de Teófilo Otoni, 2º titular da 1ª Turma Recursal do Grupo Jurisdicional de Teófilo Otoni, professor do curso de Direito da Faculdade Doctum-Teófilo Otoni, membro da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional, mestrando em Direito Processual Constitucional pela Universidad Lomas de Zamora, na Argentina e pós-graduado em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG.

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