Opinião

Ministro Marco Aurélio e a justiça aos vencidos

Autor

  • Alexandre Fidalgo

    é doutor em Direito pela USP mestre em Direito pela PUC-SP advogado e sócio do escritório Fidalgo Advogados. Integrante do conselho jurídico da Fiesp e do conselho de liberdade de expressão da OAB Federal.

14 de junho de 2020, 16h02

Em 13 de junho de 2020, o Ministro Marco Aurélio Mello completou 30 anos de judicatura no Supremo Tribunal Federal. Convidado a escrever a respeito dessa data comemorativa, de pronto me veio à lembrança episódios marcantes, que diretamente interferiram na minha formação como advogado. Então um iniciante na advocacia, tive a honra e o privilégio de ser recebido pelo Ministro para um despacho em seu gabinete. Para o jovem recém-formado, estar diante de alguém que até aquele momento era inalcançável, com acesso somente por meio das decisões que proferia, era motivo de bastante apreensão. O acolhimento do Ministro Marco Aurélio foi motivador, encorajou-me de forças e me trouxe até aqui. Tive outros contatos, ainda recém chegado na advocacia, com outros Ministros, como o então, vale o registro, presidente do Superior Tribunal de Justiça Asfor Rocha, que igualmente recebeu-me com a simpatia e a segurança dos sábios. Certamente o Ministro Marco Aurélio em nada se lembra desse episódio, mas, de fato, isso alimentou mais ainda a minha admiração já iniciada nos bancos escolares.

Spacca
O Ministro Marco Aurélio tomou posse em 1990, a partir da Constituição de 1998, indicado pelo presidente Fernando Collor. Até então, o Supremo julgava com o pensamento da CF 67. A Corte em que ingressava o novo Ministro tinha tantos outros pares indicados por generais e com tendência conservadora que poderia intimidá-lo. Mas, como se viu de 1990 a 2020, com três décadas de judicatura na Corte Suprema, o Ministro Marco Aurélio sempre esteve comprometido com a sua consciência e as suas ideias. Prova disso são os votos divergentes que marcam a sua trajetória no Supremo Tribunal Federal. Essa obstinação pela defesa de suas convicções, produzindo votos brilhantes, por vezes vencidos, ajudam e alimentam a renovação do direito, sem ativismos. Ao comparar os votos vencidos de Marco Aurélio com o do juiz Oliver Wendell, da Suprema Corte americana, que, nas décadas de 1920 e 1930, defendia o direito de greve e a função social da propriedade, sendo, naqueles anos, voto vencido, o Ministro Celso de Mello registrou que nos votos vencidos do ilustre Ministro "reside, muitas vezes, a semente das grandes transformações".

É da gestão da presidência do Ministro Marco Aurélio a concepção e a efetivação da TV Justiça no Brasil, que, além de aproximar um dos poderes da República da sociedade, consiste em verdadeira legitimação das decisões da Corte e, porque não, representação maior da transparência dos julgamentos em plenário do Supremo Tribunal Federal, em harmonia com a ideia de que as coisas públicas devem ser postas em púbico.

Outro ponto de aproximação do Ministro com esse advogado está na defesa que faz da inconstitucionalidade da modulação dos efeitos das leis inconstitucionais. Em minhas aulas de mestrado, defendia que essa forma de pensar o direito estimulava leis inconstitucionais ou, como chama o Ministro, contribuía para inconstitucionalidades úteis. Quando tive conhecimento de que o Ministro possuía idêntico pensamento, notei que o jurista inalcançável de outros tempos, ainda que permanecesse bem distante, havia produzido no advogado, já nem tanto jovem, novo encorajamento para defender suas ideias e convicções, ainda que isso lhe custasse alguns dissabores.  

Um jurista tido como garantista e que não dialoga à margem da democracia e da lei do povo, defende, como poucos, a liberdade de expressão e a atividade de imprensa de modo amplo e pleno. No emblemático julgamento da ADPF 130, proposta pelo PDT, sob o argumento de que a então Lei de Imprensa (5.250/67) não havia sido recepcionada pela Constituição democrática de 1988, o Ministro Marco Aurélio foi voto vencido, eis que julgou improcedentes todos os pedidos da ação. Sua reflexão no julgamento não revelava nenhum cerceamento à atividade jornalística e à liberdade de expressão. Muito pelo contrário, entendia o Ministro que tais garantias já estavam asseguradas e enraizadas na novel democracia brasileira, e que o Judiciário já estava a proteger tais liberdades, concluindo que melhor seria deixar para a vocação exclusiva da casa do povo a elaboração de lei a regular questões relativas à imprensa. O Ministro Marco Aurélio, conferindo rendimento ao registro dado pelo Ministro Celso de Mello, criticava o vácuo legislativo que a decisão, pela não recepção da Lei de Imprensa, traria à tutela do direito de resposta. A ADPF 130 foi votada em 30.04.2009 e, 6 anos depois, o parlamento brasileiro aprovou a Lei de Resposta (13.188/2015). Os votos vencidos do Ministro Marco Aurélio fazem jurisprudência e, também, leis.

Como advogado militante na área das liberdades públicas, especialmente nos casos voltados à liberdade de expressão e à atividade de imprensa, a presença do Ministro Marco Aurélio na Corte Suprema constitui um alento e uma garantia de que abusos contra a imprensa não serão tolerados, tampouco — de outro lado — os excessos cometidos pela própria imprensa, eis que sempre ressalta, acertadamente, a responsabilidade desse importante player da democracia. São muitos e emblemáticos os votos do Ministro a respeito desse valor democrático, tão caro e tão necessário no atual momento republicano.

O título que anuncia esse texto, Justiça aos Vencidos, é de autoria de Rui Barbosa, em artigo que escreveu ao Correio da Manhã de Lisboa em 1894, e bem representa o legado deixado pelo Ministro. Como se sabe, Rui Barbosa foi um dos grandes defensores das liberdades, tal como hoje é o Ministro Marco Aurélio, que, dada a sua insuperável subordinação à Constituição Federal e a atualidade da mensagem, bem poderia assinar o discurso também feito por Rui Barbosa no Senado Federal em 11 de novembro de 1914: Abalando a Constituição da República, e o direito, que se entrincheira, para salvar a liberdade, a sorte do prélio vacila, num momento de crise, cujo desenlace, por instantes, chega a não se saber se seria para as instituições nacionais a vida ou a morte. As baionetas vomitam de lado a lado as tremendas ameaças da força armada. Da outra, a razão desarmada se defende com a linguagem da lei.

Nessa data trintenária, um obrigado ao Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello.

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