Opinião

Marco Aurélio e os 30 anos no Supremo Tribunal Federal

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13 de junho de 2020, 17h13

Conheci o Ministro Marco Aurélio na casa de meu irmão, quando eu era juiz substituto, ele havia ingressado havia pouco tempo no Supremo Tribunal Federal, depois de uma longa e reconhecida carreira no âmbito da Justiça do Trabalho. Fiquei impressionado com sua simplicidade, desassombrado frente à grande responsabilidade que acabara de assumir, e também com a firmeza de suas convicções, muito progressistas para a maioria da comunidade jurídica daquela época.

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A partir de então, acompanhei de perto sua trajetória no Supremo, uma boa parte pela admiração, outra por termos bons amigos em comum.

Sempre o encontrava em eventos jurídicos, aprofundando a empatia do primeiro momento.

Entretanto, houve um fato marcante quando realizamos a primeira Assembleia Nacional de Magistrados (AMB). O Congresso Brasileiro da Associação de Magistrados Brasileiros acontecia sempre de dois em dois anos, pois o associativismo da magistratura despontava muito fortemente naquele Brasil redemocratizado, mas era a primeira vez que reuniríamos cerca de dois mil juízes em uma assembleia.

A revista jurídica ConJur noticiava na manchete de 22 de setembro de 1999: "Juízes decidem sobre greve nacional durante congresso no RS". Eu era secretário-geral de nossa grande entidade de classe, a Associação de Magistrados Brasileiros, e comentei com o presidente, meu estimado amigo e grande líder da magistratura, desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, que eu convidara o presidente do Supremo para comparecer ao evento, mas acreditava que, diante do clima, ele não iria. Marco Aurélio havia assumido a presidência do Supremo em maio de 1999, compareceu à assembleia e não só conquistou os corações e mentes dos juízes como também desarmou a armadilha da greve e saiu fortalecido e apoiado pelas bases para realizar uma gestão marcante à frente da mais alta corte do país.

Naquele momento da primeira assembleia de juízes, no Congresso de Gramado (RS), houve ainda uma outra passagem marcante de Marco Aurélio, inesquecível para mim. Eu iria concorrer em breve à presidência da Associação de Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, expliquei a ele que seria a primeira vez que um juiz disputaria o cargo frente a um desembargador e ele me perguntou sobre minhas propostas. Anunciei que eram fortes, mas eu defendia o fim do nepotismo nos três poderes, critérios objetivos para promoções na carreira, democratização interna nos tribunais, maior equilíbrio de recursos para a primeira instância…. Ele não me deixou terminar de falar, tomou o manifesto de campanha de minha mão e foi o primeiro a assinar como apoiador.

Esse é o corajoso Ministro Marco Aurélio, reconhecido jurista e desassombrado julgador.

Retomo o ano de 1990, quando o brasileiro saía das urnas no ano anterior após deixar um jejum de eleições diretas para presidente da República iniciado em 1964.

Do outro lado do mundo, mudanças consideráveis ocorriam. Em Berlim, era assinado o Tratado de Reunificação, dos mais importantes documentos pós-Segunda Guerra, que definiria a forma como dois Estados passariam a existir como um só país [1].

Mikhail Gorbachev ganhava o Prêmio Nobel da Paz por seus esforços para o desfecho da Guerra Fria e Octavio Paz, ensaísta e diplomata mexicano, notabilizado por relacionar com originalidade a poesia à reflexões sobre política, era agraciado com o Nobel de Literatura.

Em 13 de junho, pouco antes de completar 44 anos, o carioca Marco Aurélio Mendes de Farias Mello era empossado ministro do Supremo Tribunal Federal.

O hoje vice decano da Suprema Corte cursou Ciências Jurídicas e Sociais pela gloriosa Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) — a mesma em que me formei , onde também concluiu o mestrado em Direito Privado, em 1982.

Sua primeira atuação foi como advogado da Federação dos Agentes Autônomos do Comércio do antigo Estado da Guanabara. Ocupou, também, o cargo de chefe do Departamento de Assistência Jurídica e Judiciária do Conselho Federal dos Representantes Comerciais. Em 1975, iniciou sua trajetória no serviço público. Apesar de aprovado no concurso para Procuradoria do INSS, no Rio, não exerceu a função, optando pela atuação no Ministério Público do Trabalho como procurador do Trabalho substituto, cuja carreira não era de dedicação exclusiva, como seria o INSS, conforme registrou a ConJur no artigo de 2010, em homenagem aos 20 anos de STF. Esteve no MPT até 1978, quando se tornou juiz togado do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região.

Em 1981, foi indicado Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), com a idade mínima de 35 anos, de onde saiu, nove anos depois, para assumir a cadeira de ministro do Supremo [2].

Marco Aurélio exerceu a presidência da corte no biênio 2001/2003 e, no exercício do cargo de presidente do Supremo Tribunal Federal ocupou, interinamente, a Presidência da República em quatro períodos, no ano de 2002.

Em maio daquele ano, estreando no posto, sancionou o projeto de lei de criação da TV Justiça: "Um canal reservado ao Supremo Tribunal Federal, para a divulgação dos atos do Poder Judiciário e dos serviços essenciais à Justiça", como já acontecia com a TV Câmara e a TV Senado. No discurso proferido no Salão Nobre do Palácio do Planalto, o ministro lembrou: "Não será uma televisão do Supremo, mas uma televisão da Justiça, visando o interesse do jurisdicionado. O objetivo do canal é mostrar aos cidadãos como funciona a Justiça, facilitando o acesso aos serviços prestados e aumentando a confiança nos seus resultados" [3].

As transmissões ao vivo dos julgamentos do Plenário, no entanto, passaram a ser uma realidade apenas na gestão seguinte, do ministro Maurício Corrêa.

Não cabe aqui, segundo penso, a lista de inúmeros julgados dos quais participou ou relatou. O importante é sublinhar suas posições singulares, e que não raro o deixaram vencido, ao longo dos anos, e que receberam homenagem em forma de livro. Textos selecionados pelo advogado Sérgio Bermudes, que já no prefácio advertia não se tratar de uma prestação de contas do ministro do Supremo Tribunal Federal aos jurisdicionados, nem uma biografia, mas de "pedaços de uma judicatura luminosa de um juiz que a história dirá marcante porque, não importa se vencedor ou vencido, exerceu, destemidamente, a função de julgar, conforme os seus princípios, a sua ciência e a sua fé" [4]

Os votos divergentes proferidos pelos ministros do Supremo foram objeto de pesquisa por Virgílio Afonso da Silva, professor titular de Direito Constitucional das USP. Em sua empreitada, contou com a colaboração dos próprios membros da corte, por meio de entrevistas. A opinião acerca da questão foi unânime: os votos são um polo contrastante, aguçam o debate; os votos vencidos podem ser seminais, verdadeiras sementes [5].

Marco Aurélio presidiu o Tribunal Superior Eleitoral e comandou as primeiras eleições informatizadas do país, em 1996, projeto que nasceu na gestão de seu antecessor, ministro Carlos Velloso. À época, foram instaladas urnas eletrônicas apenas nas capitais. O projeto ambicioso, como era de se esperar, teve de romper a resistência de alguns Estados. Havia um ponto controverso. As urnas eletrônicas registravam os votos em um disco móvel e, apenas após acumular certo número de votos, os transmitia para o disco rígido. Se houvesse a coincidência de o mesário preparar a urna para o eleitor quando ela estivesse no processo de transmissão, a urna travava.

"Por conta dessa possibilidade, os tribunais regionais dos quatro estados receavam adotar a tecnologia. Marco Aurélio foi a campo convencer os presidentes dos tribunais de que o caminho era sem volta. E que, em caso de problemas, haveria toda a estrutura necessária para que se passasse de imediato para o tradicional sistema de cédulas. Convenceu-os e abriu o caminho para o sistema confiável que o país inteiro adota hoje" [6].

Ainda na presidência do órgão de cúpula da Justiça Eleitoral, administrou verdadeira reforma política pela via judicial, quando a corte estabeleceu a fidelidade partidária no Brasil.

Em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, foi enfático: "O que não cabe admitir é a mudança de partido para estar ao lado do poder, mesmo porque isso deságua em hegemonia. A hegemonia provoca o totalitarismo, que é retrocesso em termos de Estado democrático".

Um jurista consciente de seu mister e destemido na forma de desempenhá-lo, destacou a segurança jurídica como ideário, em palestra proferida na Universidade de Coimbra, em Portugal, no ano de 2015, ao abordar o Direito em tempos de incertezas. Iniciou sua exposição com uma provocação: "O Direito nos oferece segurança? O Direito, ao fazer prevalecer a segurança jurídica, pode minimizar os riscos modernos das incertezas. Se a Era das Incertezas é um fato, o Direito deve, em proveito dos cidadãos, atuar contra suas consequências indesejadas" [7]. Concluiu que "a segurança jurídica é a espinha dorsal da sociedade. Sem ela, há sobressaltos, solavancos, intranquilidade maior. O regime democrático a pressupõe. A paz social respalda-se na confiança mútua e, mais do que isso em proveito de todos, do bem comum , no respeito a direitos e obrigações estabelecidos, não se mostrando consentâneo com a vida gregária, com o convívio civilizado, ignorar o pacto social, fazendo-o a partir do critério de plantão. De bem-intencionados, de salvadores da pátria, o mundo está cheio. O Direito, ao fazer prevalecer a segurança jurídica, pode minimizar os riscos modernos das incertezas. Se a Era das Incertezas é um fato, o Direito deve, em proveito dos cidadãos, atuar contra suas consequências indesejadas".

Nesse ponto, pela coincidência das datas, permito-me uma referência à obra de Frei António de Lisboa. Em 13 de junho festeja-se sua existência. Provavelmente, a maioria dos leitores o conhece por Santo Antônio.

Em seus "Sermões", o intelectual Antônio pregava com sabedoria: "Eis que o teu rei vem a ti, para tua utilidade… Manso, para ser amado. Não para ser temido pela potência… São duas as virtudes próprias dum rei: a justiça e a piedade. Assim o teu rei é justo, enquanto distribui a justiça a cada um segundo as suas obras". Na lógica antoniana, a noção de justiça implicava o primado da ética ou da moral sobre a política. A paz não era apenas ausência de violência, mas sobretudo concórdia. Para que esta existisse, a ordem estabelecida devia ser justa [8].

O Ministro Marco Aurélio sempre pontuou que "o Direito, em especial, o constitucional, não pode ficar indiferente aos acontecimentos políticos, sociais, econômicos e ambientais. O Direito deve proporcionar segurança jurídica, pilar do Estado democrático. No Brasil, o constituinte de 1988 preocupou-se com a inteligibilidade do Direito, com a clareza das regras jurídicas; com a confiabilidade do Direito pela estabilidade das normas no tempo, a proibição de retroatividade, a proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, alfim, com a calculabilidade ou a previsibilidade, consagrando o princípio da confiança, da não surpresa, da boa-fé” [9].

Marco Aurélio é flamenguista até a medula e o gabinete instalado num dos anexos do Supremo não deixa isso ficar escondido. Há petrechos rubro-negros por todo canto, e o toque de seu celular é o hino do Flamengo.

Em recente entrevista à jornalista Andréia Sadi, falou com orgulho da casa/fazenda onde trabalha e mora em Brasília. Sim, ao tribunal reserva a realização das sessões de julgamentos. Trabalha em casa, de moletom e camisa polo.

Na área verde, galinhas d’angola, patos, cachorros e até uma vaca da raça gir, tratada com a cana plantada na propriedade, convivem em harmonia. Como disse o ministro ,"o leite sai caro, mas viabiliza o queijo e a coalhada seca". A intimidade com a natureza é herança. Na infância, viveu entre as plantas numa Jacarepaguá verde. Na garagem, um Fusca verde 1969, quase novo.

Para concluir essa longa, mas absolutamente insuficiente homenagem, valho-me das palavras de um dos maiores poetas da língua portuguesa, cuja invocação também se faz pela coincidência da data celebrada: Fernando Pessoa, neste 13 de junho, completaria 132 anos.

"Sucede que tenho precisamente aquelas qualidades que são negativas para fins de influir, de qualquer modo que seja, na generalidade de um ambiente social. Sou, em primeiro lugar, um raciocinador, e, o que é pior, um raciocinador minucioso e analítico. Ora o público não é capaz de seguir um raciocínio, e o público não é capaz de prestar atenção a uma análise. Sou, em segundo lugar, um analisador que busca, quanto em si cabe, descobrir a verdade. Ora o público não quer a verdade, mas a mentira que mais lhe agrade. Sou, em terceiro lugar, e por isso mesmo que busco a verdade, tão imparcial quanto em mim cabe ser. Ora o público, movido intimamente por sentimentos e não por ideias, é organicamente parcial. Não só portanto lhe desagrada ou não interessa, por estranho à sua índole, o mesmo tom da imparcialidade, mas ainda mais o agrava o que de concessões, de restrições, de distinções é preciso usar para ser imparcial. As sociedades são conduzidas por agitadores de sentimentos, não por agitadores de ideias. Nenhum filósofo fez caminho senão porque serviu, em todo ou em parte, uma religião, uma política ou outro qualquer modo social do sentimento" [10].

Parabéns, Ministro Marco Aurélio, pelos 30 anos na Suprema Corte!

 


[1] Von Hellfeld, Matthias (rw). A assinatura do Tratado de Reunificação da Alemanha. Disponível: https://www.dw.com/p/1GOQ

[5] De quem divergem os divergentes: os votos vencidos no Supremo Tribunal Federal. In: Direito, Estado e Sociedade n. 47 jul/dez 2015. http://direitoestadosociedade.jur.puc-rio.br/media/artigo09n47.pdf

[8] ANTUNE, José. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. A Invulgar cultura literária de Frei António de Lisboa. https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4866.pdf

[9] O Direito em tempos de incertezas, por Marco Aurélio Mello. https://www.migalhas.com.br/quentes/223331/o-direito-em-tempos-de-incertezas-por-marco-aurelio-mello

[10] Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática, 1966 – 74. http://arquivopessoa.net/textos/2064

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