Observatório Constitucional

As fake news e o STF: ainda há o que fazer

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13 de junho de 2020, 8h00

O fenômeno, cada vez mais crescente, do compartilhamento desenfreado de notícias falsas, as assim chamadas fake news, assim como de técnicas de desinformação, põe em xeque a legitimidade e correto andamento do pleito eleitoral, acirra sectarismos, instila a divisão social, gera níveis preocupantes de instabilidade política e mesmo representa, cada vez mais, ameaças concretas para a democracia e o funcionamento regular de suas instituições estruturantes.

No caso do Brasil — a exemplo do que havia ocorrido por ocasião das eleições presidenciais que deram a vitória ao atual presidente Donald Trump — as últimas eleições gerais, em 2018, não inovaram no que toca ao recurso às mais variadas técnicas de desinformação e das “fake news”, posto que, como já sinalizado, mas alcançaram, inclusive e em especial no domínio da internet, níveis assustadores. Isso se deu não apenas em relação aos candidatos à Presidência à República, mas foi particularmente mais acentuado em relação aos mesmos.

Muito embora não seja o caso aqui de desenvolver o ponto, não há como deixar de recordar que o contexto no qual se situa o tema objeto do presente texto — que basicamente gravita em torno do nada novo problema da “verdade e da mentira na política”, título de uma das muitas paradigmáticas obras de Hannah Arendt — é particularmente singular em relação às experiências históricas anteriores, onde o recurso à desinformação e à mentira na Política já se revelaram de extrema relevância e de alto impacto, não só, mas especialmente no caso de regimes autoritários e, em especial, totalitários, v.g., os casos do nacional-socialismo alemão, do regime stalinista soviético, a revolução cultural chinesa, apenas para citar os mais devastadores e mais próximos em termos cronológicos.

Com o advento e crescimento da internet, tamanha é a dimensão do fenômeno que há mesmo quem fale em uma sociedade da desinformação (FRANCISCO, 2004), como etapa corrompida da sociedade da informação, ou de uma era da pós-verdade, em que a verdade e sua difusão passa a figurar em segundo plano, cedendo cada vez mais espaço ao apelo à irracionalidade e às emoções (KAKUTANI, 2018, p. 11).

Ainda nessa perspectiva, no tocante ao problema da erosão da verdade, inclusive na perspectiva axiológica, já não se trata mais “apenas” de notícias falsas, mas de uma falsa ciência (negacionistas de toda ordem), de uma falsa história (como a negação do holocausto), de perfis e mesmo de seguidores falsos nas mídias sociais (KAKUTANI, 2018, p. 11-12). Estamos, ao fim e ao cabo, “cercados de mentiras e de ficções” (HARARI, 2018, p. 287).

Cientes da querela ainda não resolvida relativamente à terminologia mais adequada e ao respectivo conteúdo, é de se salientar que a expressão “fake news”é comumente utilizada para ilustrar uma variada gama de informações: erros não intencionais, rumores sem origem notícia exata, teorias da conspiração, sátiras, distorções da realidade, falsas afirmações de políticos, paródias, conteúdo distorcido, conteúdo fabricado, falsas conexões, conteúdo manipulado, publicidade enganosa, dentre outros.

Para efeitos do presente texto, o termo “fake news” ligeiramente se aproxima dos já conhecidos boatos (SUNSTEIN, 2010), dos quais, contudo, se diferencia tanto pela razão de as fake news terem se adaptado ao desenvolvimento da tecnologia e dos meios comunicativos, notadamente as redes sociais, aptas a serem disseminadas instantaneamente, como também pela característica de as fake news necessariamente estarem em determinado contexto (por exemplo, o eleitoral) com o objetivo de criar uma esfera falaciosa sobre algo ou alguém, de modo a enganar o destinatário da mensagem inverídica.

Outro ponto que merece destaque nesse contexto, é o da irradiação dos efeitos de informações falsas prolongada no tempo, principalmente quando se utiliza a internet para a sua disseminação. E é nesse ponto, mais uma vez, que se reforça a ligeira, mas ao mesmo tempo densa, diferença entre boatos e fake news, porquanto os primeiros, em que pese sejam “tão antigos quanto a história humana” (SUNSTEIN, 2010, p. 3), uma vez inseridos no contexto da imediata comunicação e do avanço tecnológico, transmudam-se para uma roupagem de fake news, as quais são postadas e compartilhadas na internet, adquirindo, ademais de sua quase onipresença, um efeito duradouro (SUNSTEIN, 2010, p. 5).

O fato é que, sem que se possa aprofundar o tema, que assim como se dá com o discurso do ódio e outras figuras afins, também as assim chamadas Fake News (que também podem servir ao discurso do ódio, ao revengeporn, etc.) podem colocar em risco a delicada mas fundamental relação entre democracia e liberdade de expressão, o que nos faz lembrar de FRANK MICHELMAN, quando sublinha que a relação entre democracia e liberdade de expressão é de um recíproco condicionamento, de modo que, embora mais democracia possa muitas vezes significar mais liberdade de expressão e vice-versa (mais liberdade de expressão indica mais democracia), também é correto que a liberdade de expressão pode acarretar riscos para a democracia o que, por sua vez, pode comprometer a liberdade de expressão (2007, p. 58).

Por outro lado, quando se trata de liberdade de expressão e de seu papel cimeiro para o funcionamento de uma ordem democrática, não há como deixar de referir o papel do Poder Judiciário, em especial e no caso brasileiro, dado o enfoque deste espaço (observatório da Jurisdição constitucional) do STF.

Nesse contexto, sem desconsiderar a magnitude (em termos de importância e repercussão) dos feitos tramitando no TSE (Ações de Investigação Judicial Eleitoral 0601369-44 e 0601401-49) que tem por objeto a impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão por contratações não declaradas para o envio em massa de mensagens e de ataques virtuais a adversários eleitorais, mas também o não menos polêmico Inquérito 4781, em andamento no STF, que tem como objetivo a investigação de ameaças, notícias fraudulentas contra ministros do STF e seus familiares, o caso que aqui se pretende apresentar é outro.

Trata-se da decisão proferida pelo STF na ADI 4451, relatada pelo Ministro Alexandre de Moraes e julgada em 20 e 21.06.2018, quando o Plenário confirmou medida cautelar e julgou procedente o pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade do inciso II e da segunda parte do inciso III e, por arrastamento, dos §§ 4º e 5º, todos do art. 45 da Lei 9.504/1997, a já referida Lei das Eleições (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 23-24).

Tais dispositivos dispõe que as emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário, a partir de 1º de julho do ano da eleição, não poderão: (i) “usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito” (inciso II) e (ii) “difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes” (segunda parte do inciso III)[1]. Os §§ 4º e 5º explicam o que se entende, respectivamente, por trucagem e por montagem.

De modo especial, é relevante o fato de que o STF afastou a vedação legal impostas às emissoras de rádio e televisão de veicular programas de humor envolvendo candidatos, partidos e coligações nos três meses anteriores ao pleito, como forma de evitar que sejam ridicularizados ou satirizados. Com a decisão, foi tornada definitiva a suspensão determinada em sede de cautelar pelo Ministro Ayres Britto em 2010, não tendo a proibição sido aplicada desde então.

A teor do voto do Ministro Alexandre de Moraes, relator, a CF proíbe toda e qualquer forma de censura à liberdade de expressão e de informação, incluindo aqui a liberdade, de criação (liberdade artística), destacando, ainda, inexistir permissão que possa ser deduzida do texto constitucional para o efeito de limitar preventivamente o conteúdo do debate público por conta de conjecturas em torno de eventuais efeitos que a divulgação de determinados conteúdos possa vir a ter na esfera pública.

Passando agora aos votos dos demais julgadores, inicia-se com o do Ministro Gilmar Mendes (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 83 e ss.), para quem, mesmo em se levando em conta a possibilidade de veiculação de fake news mediante o recurso a truques, montagens e afins, o ordenamento jurídico brasileiro já fornece mecanismos suficientes para que se constate e combata excessos no exercício da liberdade de expressão, não apenas com o manejo do direito de resposta, tanto na imprensa, como no processo eleitoral, mas também na responsabilidade criminal a posteri, ademais dos outros instrumentos destinados a conter o uso abusivo das liberdades de expressão e de informação, previstas no próprio art. 45 da Lei das Eleições[2].

Na mesma linha, mais focado na importância (e posição preferencial) da liberdade de expressão e de informação para uma ordem democrática, o voto do Ministro Roberto Barroso, que considerou errônea a opção do legislador ao colocar a lisura do pleito eleitoral como hierarquicamente superior às liberdades de expressão, incluindo a liberdade artística, de modo a atingir inclusive o núcleo essencial das referidas liberdades, desrespeitando a sua posição preferencial (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 39-40).

A Ministra Rosa Weber, por sua vez, acertadamente aponta, quanto ao direito de resposta, que este nem sempre será eficaz, como no caso de charges e sátiras, mas que tais informações devem ser recebidas pelo destinatário como elas, de fato, o são: simplesmente humor(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 48).

Foi, contudo, no voto proferido pelo Ministro Luiz Fux[3] que a questão das fake news adquiriu um espaço maior, para quem a intervenção do Poder Judiciário no processo eleitoral deve ser mínima (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 63), em especial quando em causa a liberdade de expressão, em relação de retroalimentação com a Democracia.  Para Luiz Fux, o objeto da ADI inclui a avaliação do cabimento ou não do humor (ou, “deformação humorística”) na imprensa (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 64).

Da mesma forma há que frisar a distinção traçada pelo Ministro Luiz Fux entre o exercício legítimo da liberdade de expressão, que abarca a veiculação de opiniões e críticas mediante charges e sátiras, do falseamento doloso da verdade que causa danos graves e mesmo irreversíveis aos candidatos e ao próprio processo eleitoral, as assim designadas fake news, que devem ser repudiadas e combatidas pela Justiça Eleitoral (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 73).

O Ministro Ricardo Lewandowski, por seu turno, ressaltou a conexão das sátiras com as fakenews, visto que estas podem ser veiculadas por meio daquelas, ou, alternativamente, que as sátiras transmitam fake news (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 35). Os Ministros Marco Aurélio e Cármen Lúcia igualmente sustentaram a inconstitucionalidade dos dispositivos analisados, destacando a importância do riso e do humor para uma sociedade democrática (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 160).

Particularmente enfáticas foram as palavras do Ministro Celso de Mello, que no seu voto afirmou que “nenhuma autoridade, mesmo a autoridade judiciária, pode prescrever o que será ortodoxo em política ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 148).

À vista da síntese da decisão na ADI 4451/DF, verifica-se que a despeito de sua relevância e das posições de alguns dos Ministros (Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes)contrárias à veiculação de fake news(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 16, 53, 71-72, 76-78)no processo eleitoral, o julgado do STF, em que pese articular alguma linha de orientação, não adentra o tema com maior detalhamento, em especial no que concerne ao combate das fake news nas mídias sociais, de tal sorte que também na seara jurisprudencial, ao menos por ora, não se encontram elementos mais robustos e estáveis a permitirem o melhor enfrentamento do problema pelas Instâncias da Justiça Eleitoral, mas também naquilo em que as fake news guardam relação com outras searas do direito, v.g. civil e penal.

De todo modo, inegável se tratar da primeira importante decisão do STF que envolve o tema (ainda que não central) sobre a matéria e sobre a legitimidade prima facie da veiculação de sátiras, charges e manifestações de humor em geral durante campanhas eleitorais, ademais de reafirmar a posição preferencial da liberdade de expressão na arquitetura constitucional brasileira.

Nessa perspectiva, crucial que o combate às ‘fake news’ se dê pelos meios legais disponíveis (e adequados, é de se acrescentar) e pela boa imprensa, que rapidamente pode levar a correta notícia à população” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo 907. ADI 4451/DF, 2018), mas não — pelo menos em regra e à partida — com a sua abrupta e agressiva remoção.

Outrossim, observa-se que no julgamento apresentado, o STF não abriu mão, pelo contrário, revitalizou, a sua trajetória, inaugurada com a decisão histórica tomada na ADPF 130, que teve por revogada a antiga Lei de Imprensa do regime militar, de assegurar à liberdade de expressão uma posição preferencial, de modo que eventuais restrições devem não apenas ser excepcionais como restritivamente interpretadas.

Ademais disso, nenhum combate, embora necessário, ao exercício manifestamente abusivo da liberdade de expressão e de informação, não pode ser feito às suas custas. Do contrário, nem a liberdade de expressão e nem a Democracia sobreviverão.


[1]     Na sua versão integral, o inciso III também estabelece que é vedado “III – veicular propaganda política ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes” (Grifou-se).

[2]     “(…) IV – dar tratamento privilegiado a candidato, partido ou coligação;

V – veicular ou divulgar filmes, novelas, minisséries ou qualquer outro programa com alusão ou crítica a candidato ou partido político, mesmo que dissimuladamente, exceto programas jornalísticos ou debates políticos;

VI – divulgar nome de programa que se refira a candidato escolhido em convenção, ainda quando preexistente, inclusive se coincidente com o nome do candidato ou com a variação nominal por ele adotada. Sendo o nome do programa o mesmo que o do candidato, fica proibida a sua divulgação, sob pena de cancelamento do respectivo registro”.

[3]     Nas palavras do ministro Luiz Fux, em uma antecipação de voto, não se pode “chancelar” as fake news(p. 73), podendo estas serem inclusive chamadas de “notícias fraudulentas”, concordando com o Ministro Dias Toffoli (p. 74), que interviu em sua fala, as quais, vale dizer, não se confundem com a sátira, manejadas a partir da liberdade artística dos jornalistas humorísticos.

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