Opinião

30 anos de Marco Aurélio: aplausos ao 'senhor voto vencido'!

Autor

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

13 de junho de 2020, 6h32

Em "Avatares da Tartaruga", Jorge Luis Borges nos lembra do paradoxo de Zenão: "Aquiles corre dez vezes mais rápido que a tartaruga e lhe dá uma vantagem de dez metros. Aquiles corre esses dez metros, a tartaruga corre um; Aquiles corre esse metro, a tartaruga corre um decímetro; Aquiles corre esse centímetro, a tartaruga um milímetro; Aquiles pés-ligeiros o milímetro, a tartaruga um décimo de milímetro, e assim infinitamente, sem alcançá-la…".

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A tartaruga nunca é vencida. Está sempre à frente do seu tempo. Sempre adiante da retumbante força de Aquiles. É um paradoxo que seja menor, mais lenta, menos punjante e ao mesmo tempo esteja sempre ali… Na dianteira do tempo e do espaço, renitente e sempre presente… Jamais vencida, quando o olhar se desloca para além do tempo presente.

Nas Cortes Constitucionais, a voz da maioria tem a força e a velocidade do herói da guerra de Troia. Formada a maioria, ela conduz, define e decide, mesmo que seja possível observar a racionalidade e a solidez sob o casco da tartaruga de Zenão de Eléia.

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Ser a voz da minoria é desafiar os pés ligeiros de quem corre como o vento, na poética de Homero; é compreender o seu afazer judicante como a necessária voz dos que pensam dissonantemente e precisam ser ouvidos no Supremo Tribunal Federal.

Nos tempos que correm, vivemos embates que refletem a necessidade da tolerância, a urgência da pluralidade, a premência da discordância e a maturidade da dialética da argumentação. Precisamos, com o literato Borges e com o filósofo Zenão, acreditar que a tartaruga da racionalidade, a tartaruga da minoria, a tartaruga da discordância jamais será vencida, ainda que Aquiles seja festejado pela força grega em toda Troia.

Neste dia 13 de junho de 2020, Marco Aurélio Mendes de Farias Mello completa 30 anos de magistratura no Supremo Tribunal Federal.

Antes de laudar 30 anos de judicatura no Pretório Excelso, o que mais importa é aplaudir a divergência, festejar a discordância e comemorar a existência na corte de quem obstinadamente não se incomoda em ser voz destoante e naquele momento se ver vencido, ainda que a história venha a lhe dar razão.

Sua posse ocorreu em 1990, quando ainda vivíamos o clima festivo da entrada em vigor da nova Constituição Federal. Após a promulgação da constituição cidadã, Marco Aurélio chegava ao Supremo levando consigo suas marcas indeléveis: o gosto por duvidar de tudo que aos outros pudesse parecer óbvio; o não aceitar respostas prontas ou argumentos de autoridade; o não ter compromissos com ideias alheias, apenas com a sua própria compreensão acerca de uma questão jurídica; e o de ser intransigente com seus próprios pressupostos.

Sua postura, percebida algumas vezes como heterodoxa, valeu-lhe em muitos anos a posição minoritária, ao ponto de ganhar o honroso apelido de "senhor voto vencido"! O caminhar da história, fazendo o Supremo evoluir para posições mais modernas e conectadas com a sociedade brasileira, permitiram ao Ministro Marco Aurélio tornar-se o condutor em seus votos de diversas questões relevantes, confirmando muitos dos acertos de outrora, quando lhe era natural a posição de minoria.

A análise da jurisprudência construída pelo aniversariante permite caracterizá-lo também como um liberal que reconhece as mutações da sociedade e se opõe ao frio congelamento dos fatos que o arcadismo do Direito sempre impõe. Não é por acaso que um dos seus posicionamentos mais relevantes tenha começado com uma citação de Padre Antônio Vieira, para quem o tempo não tem consistência e não se pode parar o momento, pois é resolução universal e insuperável o tempo passar… E sempre.

Passa o tempo, mas não passam as decisões. É inexorável!

Convém lembrar que já em 1998 ele compreendia e fazia a Corte Suprema entender que em face dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e da interpretação constitucionalmente adequada do artigo 5˚ da Constituição vigente, a prisão civil do depositário infiel violava o princípio da proporcionalidade. Posteriormente, em 2008, com a clara ofensa ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto de San José da Costa Rica, o STF acolheu a posição liberal que já se mostrava correta dez anos antes.

A compreensão do Ministro Marco Aurélio, segundo a qual o depósito cível era uma ficção e a prisão, desproporcional e, posteriormente, ofensiva aos Tratados Internacionais —, foi reconhecida historicamente, e demonstrou a sina da tartaruga que não é jamais alcançada pelos pés ligeiros de Aquiles: a história transformava o senhor voto vencido em vencedor!

Em 2012, o liberalismo necessário e a vetorização do pensamento da minoria menos conservadora volta a brilhar em memorável voto. No dia 13 de abril, chegava ao fim o julgamento que reconheceu o direito das grávidas de fetos anencefálicos de optar pelo aborto, com assistência médica. O julgamento da ADPF 54 foi um marco na corte por superar o tom clássico e conservador do discurso jurídico para assenhorar a decisão judicial da racionalidade, tão cara à modernidade. Talvez Nelson Rodrigues dissesse do voto do Ministro Marco Aurélio que, em fim, observou-se no Supremo "a vida como ela é".

De tantas questões que demostraram a relevância do Supremo Tribunal Federal, é necessário também destacar a firme defesa feita pelo ministro da posição contrária à prisão após decisão condenatória em segunda instância.

Com sólidos argumentos que logo depois se tornaram majoritários, Marco Aurélio sempre defendeu a inconstitucionalidade da posição punitivista. Sempre sustentou que não era possível, na ordem vigente, compreender que o pressuposto da culpa necessário à aplicação da pena pudesse surgir de decisão pendente de recurso. Em outra Constituição, em outro país, em outro sistema… Quem sabe! No modelo promulgado em 1988, jamais!

Em todas estas decisões que se espraiam por três décadas, é possível perceber um traço marcante da personalidade do magistrado: a tranquilidade com que rotineira e renitentemente não se incomoda em ser minoria, não se amofina em ser vencido e não se ofende com ser contrariado pela maioria.

É mesmo admirável que após 30 anos esta característica não tenha se modificado e cedido espaço ao cômodo acompanhamento da força de Aquiles.

Voltando a Borges e a Zenão, pode-se dizer que a tartaruga tem o casco duro.

E não menos admiráveis são a pontualidade e assiduidade, e a total ranhetice vamos chamar assim com que trata dias de sessões e seus horários, como que a acreditar que a liturgia e o compromisso judicante sejam primordiais e prioritários.

Os 30 anos chegam, e olhar para trás permite ver que o tempo passou. Mas os seus votos, agora gravados em mídia digital graças à TV Justiça, obra administrativa sua de extrema relevância quando da presidência da casa, eternizam a magistratura da minoria, a magistratura das vozes não ouvidas e a elegia da divergência. Permitem ver que a judicatura não passará.

Em tempos de tantas vozes roucas que mais uma vez, como ciclicamente sói acontecer, verberam contra a democracia e contra a independência entre os poderes, é hora de festejar a divergência e a discordância democráticas.

Era hora de dizer: Parabéns, "senhor voto vencido"!

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  • é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.

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