Diário de Classe

Uma reflexão sobre a democracia

Autor

  • André Del Negri

    é pós-doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) doutor em Direito Processual pela PUC Minas mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

13 de junho de 2020, 8h04

Ano de 1947, Inglaterra, Câmara dos Comuns. Winston Churchill teria dito uma frase assim: a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais formas que têm sido experimentadas ao longo da história.

Deixando de lado, por um instante, o caráter frasista de Churchill, "como aferir a democracia?" é a pergunta que não quer calar. A experiência grega, que nos legou a palavra “democracia”, gerou efeitos no debate. Resta, então, tentar refleti-la estatisticamente, assunto levado para o campo da quantificação, uma espécie de linha que separa países “democráticos” de “não-democráticos”.

O cientista político Luis Felipe Miguel, da Universidade de Brasília (UnB), tratou logo de nos esclarecer a respeito do assunto. É que “um índice é um construto” (aqui). E, no caso da democracia, trata-se deuma instituição dificílima de demarcar. Por quê? Porque a produção de um índice, nessa seara,“visa apreender uma realidade complexa”, o que “exige uma série de decisões”, sendo a primeira delas, a preocupação de transformar a liberdade de expressão em números. Daí as consideráveis dificuldades: o direito de voto e liberdade de expressão têm o mesmo impacto na produção de uma democracia? Qual vale o dobro?

Feita essa rápida introdução, a fim de verificar que avaliar a democracia não é como colocar um termômetro e medir a temperatura, convém perquirir um índice de democracia que circulou amplamente pelos principais jornais ao longo do corrente ano. É que democracias do mundo, nos últimos dez anos, vivenciaram considerável queda de qualidade, sendo que a parcela de insatisfeitos atingiu o pico em 2020, divisa extrema da “recessão democrática”.

O relatório de satisfação global com a democracia 2020, elaborado pelo Instituto Bennett de Políticas Públicas da Universidade de Cambridge (aqui), apontou quais foram os países que mais caíram no índice de democracia.

O levantamento revelou que 92 países atualmente têm regimes autoritários, contra 87 democráticos, sendo que os cinco mais autoritários foram Eritreia, Coreia do Norte, Arábia Saudita, Iêmen e Síria. Os que apareceram como mais democráticos foram Dinamarca, Estônia, Suécia, Suíça e Noruega. E o Brasil? Bem, o Brasil foi o quinto país que mais caiu no ranking na última década. (Fonte: Democracy Report 2020 e Folha S.Paulo)

Mas quais os critérios desse relatório de satisfação com a democracia? De maneira geral, os eixos levantados foram a liberdade de expressão e de imprensa, que representam uma das faces do tema. Alguém poderá perguntar: mas a eleição, não é parte essencial da democracia? Sim, mas na interpretação da cientista política alemã Anna Lührmann, em entrevista para o jornal Folha de S. Paulo (aqui), acabar com as eleições instantaneamente é um movimento que gera resistência, então “os governos primeiro atacam a mídia”, de modo a enfraquecer a resistência. Essa é a “rota mais comum que os governos têm tomado em direção ao autoritarismo”, diz a pesquisadora.

E, coincidentemente ou não, quatro meses após a conclusão da mencionada pesquisa da Universidade de Cambridge, um relatório da ONG “Repórteres sem Fronteiras” (aqui), apontou que o Brasil teve a segunda queda seguida em ranking de liberdade de imprensa, ocupando a posição 107 da lista de 180 Estados.

É evidente que há grande esforço para demarcar o assunto, tanto da equipe ligada à Universidade de Cambridge, quanto da equipe ligada à ONG “Repórteres sem Fronteiras”. As informações dos grupos de trabalho são muito interessantes e mais ajudam no debate do que o contrário.

Diante de tais angulações, alguns comentários adicionais: é evidente que não é nada simples comentar sobre as singularidades da democracia em curto espaço. Até porque, o assunto requer a compreensão de alguns contextos, sendo impossível dar um salto do ideal de liberdade da Grécia antiga, com o “povo” tomando decisões, passando por parâmetros de realidade sócio-política exibidos no clássico A Democracia na América, de Alexis de Tocqueville.[1]

Assim, dentro do que é possível sintetizar, vê-se que a democracia é um regime de instituições. E isto nega um regime de pessoas isoladas.Ora, apostar num discurso de salvação da pátria, com lastro na figura pessoal de um presidente da República, como muitos imaginam, trata-se de reduzir consideravelmente a riqueza do debate.

Isso já evidencia que outros tantos componentes de um índice podem ser apresentados para reflexão dentro desse campo temático, que separa países “democráticos” de “não-democráticos”, a exemplo de que nas democracias a maioria tem que se preocupar com as minorias ou que, apesar do voto carregar uma mensagem, a democracia não se esgota apenas na operação da eleição.

Para além disso é necessário ainda refletir a democracia pelo cumprimento de direitos fundamentais, o que passa pela defesa das garantias processuais e pelas “liberdades cívicas” (liberdade de expressão, de consciência, de reunião, entre outros).É que, como diz Lenio Streck, se há um ataque aos direitos e garantias fundamentais, “o Direito é a primeira vítima, a segunda é a democracia” (aqui).

Mais: a democracia requer responsabilidade, o que pressupõe que um presidente da República, mesmo que eleito pelo voto do povo, não pode tudo (aqui). E daí caberia mais desdobramentos, a exemplo de que a cidadania é o sustentáculo da democracia, porque se trata de um sistema exercível por todos.

Vê-se que não é tarefa fácil falar sobre democracia. Trata-se de um tema que requer cuidado redobrado, especialmente quando há argumentos do tipo “as instituições estão funcionando”, porque o maior perigo de uma democracia é achar que não há perigo. Tal significa dizer que é preciso ligar um alerta com as chamadas “armadilhas da confiança”, como nos lembra o professor David Runciman, da Universidade de Cambridge (aqui).

Há, de fato, um ponto de autenticidade na frase do político britânico Churchill, de que a democracia é o único regime aceitável ou o melhor dos piores regimes de governo. Ele faz, como resta claro, o elogio da democracia.O que nos preocupa é saber se as atuais democracias podem ser chamadas de democracias.


[1] TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977.

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    é pós-doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), doutor em Direito Processual pela PUC Minas e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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