Direitos fundamentais

O status oecologicus e o direito à participação

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12 de junho de 2020, 8h00

Quando se percebe que lamentavelmente não são poucos, Mundo afora, os ataques assacados contra a Democracia e suas Instituições, nunca é demais, seja qual for a perspectiva, abordar tema que diga respeito ao desenvolvimento de instrumentos para o seu (da Democracia) fortalecimento. Tratando-se, como no presente caso, simultaneamente de instrumentos de democracia participativa e de promoção da proteção do meio ambiente, portanto, de dois dos esteios do que se pode chamar de um Estado Democrático, Social e Ecológico de Direito, o tema vale ainda mais a pena, lembrando-nos que faz exatamente uma semana que se comemorou o Dia Internacional do Meio Ambiente (05.06 p.p.).

O mote desse breve ensaio, desta feita um tanto mais teorético do que o habitual, em relação ao que se roga por compreensão, é um texto, publicado no ano de 2011, em homenagem ao centenário da morte do jurista alemão Georg Jellinek, de autoria do Professor Winfried Brugger, da Universidade de Heidelberg (falecido no ano de 2010 e, portanto, antes mesmo da publicação do texto).

No seu artigo, Brugger propôs uma leitura atualizada da clássica “Teoria do(s) Status” (Statuslehre) de Jellinek[1], abordada na sua obra System der subjektiven öffentlichen Rechte[2] (“Sistema de Direitos Públicos Subjetivos”), de 1892 (com 2ª edição revisada de 1905). A obra de Jellinek, entre outros aspectos, aborda a relação entre indivíduo e Estado no âmbito do Direito Público, estabelecendo as esferas de domínio de cada um. Pela ótica dos direitos públicos subjetivos (expressão ainda hoje recorrente para descrever os direitos fundamentais, notadamente pela perspectiva da sua dimensão subjetiva[3]), a Teoria do(s) Status estabeleceu, em alguma medida, os pilares fundantes de aspectos da teoria dos Direitos Fundamentais contemporânea, como é fácil de perceber na análise do conteúdo e função de cada status.[4]   

Segundo Jellinek, os “direitos públicos subjetivos” (na época ainda não se tratava propriamente de direitos fundamentais) apresentariam – para além de um status em que o indivíduo se encontra subordinado ao poder estatal – três funções básicas (hoje funções atribuídas aos direitos fundamentais) representadas pelos seguintes status: 1) status negativus; 2) status positivus; e 3) status activus.

Trasladando-se tal esquema aos direitos fundamentais, vale dizer: no caso do status negativus, os direitos fundamentais são tomados como direitos de defesa. O status positivus, por sua vez, configura-se como a função prestacional dos direitos fundamentais. Já o status activus caracteriza os direitos fundamentais como direitos de participação ativa, como, por exemplo, na esfera politica, caracterizando a própria configuração da cidadania política.

O status activus já havia recebido uma releitura contemporânea feita por Peter Häberle, denominando-o de status activus processualis[5] (uma espécie de cidadania processual) o que está de acordo com a dimensão organizacional e procedimental dos direitos fundamentais ou mesmo com a ideia de proteção dos direitos fundamentais por meio do(s) procedimento(s) (Grundrechtschutz durch Verfahren[6]).

A função outorgada aos direitos fundamentais como parâmetro para a configuração de organizações (ou instituições) estatais e procedimentos voltados à sua proteção e efetivação é tida pela doutrina como desdobramento da perspectiva ou dimensão objetiva de tais direitos, o que permite não só, com base no conteúdo das normas de direitos fundamentais, que se extraiam consequências para a aplicação e interpretação das normas procedimentais, mas também uma formatação do direito organizacional e procedimental que auxilie na efetivação da proteção aos direitos fundamentais.[7]

O jurista alemão Konrad Hesse destaca o desenvolvimento da dimensão organizacional e procedimental dos direitos fundamentais, por conta da preocupação com a sua realização e efetividade.[8] A importância de tal perspectiva resulta do fato de que a efetivação dos direitos fundamentais depende, em grande parte, da implementação por parte dos poderes públicos de estruturas organizacionais e procedimentos (administrativos, judiciais etc.) capazes de garantir o seu pleno exercício e gozo por parte de seus titulares.

Mas Jellinek não parou por aí. Ele também destacou, como já referido, um quarto status: o status subiectionis ou status passivus, o qual estaria relacionado à esfera dos deveres e responsabilidades do indivíduo para com o Estado e, de certa forma, para com o conjunto da sociedade. A faceta contemporânea de tal status pode ser caracterizada – ao menos em parte — mediante o reconhecimento de deveres fundamentais[9], balizando, inclusive, como é peculiar ao Direito, os limites para o exercício, pelo individuo, do seu status libertatis num quadrante comunitário, como, aliás, é característico da natureza de direito-dever fundamental que caracteriza o regime constitucional de tutela ecológica consagrado na CF/1988 (art. 225).

Além dos “quatro status” propostos por Jellinek, Brugger explora dois novos status na perspectiva da relação Estado-Cidadão: o status oecologicus e o status culturalis. Igualmente, para além da clássica relação Estado Nacional-Cidadão, o autor também aborda outros dois: o status europeus e o status universalis. No caso do status oecologicus, que particularmente nos interessa aqui, tal decorreria, num primeiro plano, da nova tarefa ou objetivo atribuído ao Estado, tal como estabelecido no artigo 20a da Lei Fundamental alemã desde 1994 (e, no caso da Constituição brasileira, no art. 225, com o plus do reconhecimento também de um direito fundamental ao meio ambiente, diferentemente do que ocorre na norma constitucional germânica), bem como da imposição de toda uma nova legislação infraconstitucional voltada à proteção ecológica[10] (ou da Natureza).

De acordo com Brugger, não obstante a rejeição expressa que o autor faz ao reconhecimento e atribuição de “direitos” próprios à Natureza ou aos elementos naturais, o Estado, ao regular a matéria, por exemplo, no uso e exploração do solo, da água e do ar,  deve deixar claro ao cidadão a esfera e os limites para o exercício do seu status libertatis e a partir de onde o Estado imporá e exigirá o respeito ao seu status subiectionis, o que tornaria possível, a partir de tal ótica, o reconhecimento de um status oecologicus[11].

O status oecologicus proposto por Brugger alinha-se, em alguma medida, com o pensamento de Robert Alexy, ao reconhecer a faceta “multidimensional” da tutela ecológica em sede constitucional, exigindo o seu lugar de destaque, dada a relevância comunitária e mesmo existencial do bem jurídico ecológico, no âmbito da Teoria dos Direitos Fundamentais contemporânea.

Segundo Alexy, o direito fundamental ao meio ambiente se configura como um direito fundamental em sentido amplo ou como um todo, contemplando um feixe complexo e abrangente de posições jurídicas. Juntamente com as posições jurídicas derivadas da sua configuração como direito de defesa (dimensão negativa ou em face do Estado para que se abstenha de degradar o ambiente), como direito à proteção (imposta ao Estado frente a intervenções lesivas ao ambiente praticadas por terceiros) e como direito à prestação fática (dimensão positiva ou prestacional imposta ao Estado para promover medidas fáticas voltadas à tutela ecológica), emerge do regime jurídico-constitucional do direito fundamental ao meio ambiente também a sua dimensão como direito a procedimentos, ou seja, “um direito a que o Estado inclua o titular do direito fundamental nos procedimentos relevantes para o meio ambiente”. [12]

Compreendido em sentido amplo, o direito fundamental ao meio ambiente apresenta tanto uma feição defensiva quanto outra prestacional, no sentido de poder ser decodificado, notadamente na sua dimensão subjetiva, em um complexo heterogêneo de posições subjetivas de natureza “negativa” e “positiva”, expressa ou implicitamente asseguradas no plano constitucional.

Outra dimensão que deve ser compreendida como inerente ao status oecologicus, inclusive como expressão de uma cidadania e democracia participativa ecológica, tal como se pode apreender do conteúdo normativo do caput do art. 225 da CF/1988, diz respeito aos “direitos ambientais de participação ou procedimentais”[13], como faceta da própria proteção constitucional ecológica e da sua natureza de direito-dever fundamental (e dimensão organizacional e procedimental).

O escopo maior dos direitos ambientais de participação reside justamente na efetivação da legislação ambiental por meio de uma participação mais ativa da sociedade, exercendo maior controle sobre as práticas poluidoras (ou potencialmente poluidoras) do meio ambiente perpetradas tanto por agentes públicos quanto privados.

A consolidação dos direitos ambientais de participação é derivada de avanços verificados originariamente no plano internacional, ou seja, no âmbito do Direito Internacional do Meio Ambiente. A gênese normativa de tais direitos pode ser atribuída ao Princípio 10 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992). Posteriormente, a Convenção de Aarhus sobre Acesso à Informação, Participação Pública na Tomada de Decisão e Acesso à Justiça em Matéria Ambiental (1998), muito embora o seu espectro limitado inicialmente ao âmbito europeu (mas posteriormente ampliada para o plano global), tratou de forma paradigmática sobre o tema, consagrando a chamada “tríade” dos direitos ambientais procedimentais: acesso à informação, participação pública na tomada de decisão e acesso à justiça.

Mais recentemente, os direitos ambientais de participação foram consagrados, com força vinculante, no Acordo Regional de Escazú para América Latina e Caribe sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Matéria Ambiental (2018), o qual foi elaborado no âmbito da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) da ONU. Igualmente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no âmbito da Opinião Consultiva 23/2017 (“Meio Ambiente e Direitos Humanos”), estabeleceu importante diretriz normativa acerca das obrigações dos Estado ne efetivação e salvaguarda dos direitos ambientais de participação. [14]

No cenário jurídico brasileiro, a conformação normativa tanto dos direitos ambientais de participação quanto de um status oecologicus pode ser extraída da própria CF/ 1988, mais precisamente do conteúdo expresso do seu art. 225. Ao consagrar os deveres de proteção estatais e o direito fundamental ao meio ambiente, o caput do dispositivo em questão enuncia, para além do direito em si, o dever fundamental da sociedade, ou seja, dos particulares “de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Não por outra razão, a doutrina identifica a natureza de direito-dever fundamental inerente ao regime constitucional de proteção ecológica. Há, em outras palavras, verdadeiro dever jurídico (e não apenas moral) de proteção ecológica atribuído aos cidadãos (e, portanto, não apenas ao Estado), o qual deve ser exercido por meio de uma maior participação e controle pela sociedade sobre as práticas que atentam contra o equilíbrio ecológico, o que, a nosso ver, é um componente nuclear do status oecologicus, de modo a reforçar um modelo de cidadania e democracia participativa de feição ecológica.

Tudo somado, o valor agregado representado pela leitura proposta por Brugger, ainda que não se utilize tal terminologia, guarda perfeita sintonia com os novos desenvolvimentos do direito internacional e constitucional ecológico compreendido na perspectiva de uma responsabilidade compartilhada entre Estado e Sociedade, mas sempre afinada com as exigências da Democracia e voltada, ao fim e ao cabo, ao seu aperfeiçoamento.


[1] BRUGGER, Winfried. “Georg Jellineks Statuslehre: national und international: Eine Würdigung und Aktualisierung anlässlich seines 100. Todestages im Jahr 2011“. In: AöR, Vol. 136, n. 1, março, 2011, pp. 1-43.

[2] JELLINEK, Georg. System der subjektiven öffentlichen Recht. 2.ed. Tübingen: Scientia Verlag Aalen, 1979 (originalmente publicada em 1905), pp. 86-87.

[3] A titulo de exemplo, a CF/1988 utiliza tal expressão ao assinalar, no art. 208, § 1º, que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”.

[4] Sobre a “Teoria do Status” de Jellinek na perspectiva da Teoria dos Direitos Fundamentais contemporânea, inclusive com aporte crítico, v. ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 8.ed. Baden-Baden: Suhrkamp, 2018, pp. 229-248.

[5] HÄBERLE, Peter. “Grundrechte im Leistungsstaat”. In: VVDStRL, 1972, pp. 81 e ss.

[6] HUFEN, Staatsrecht…, p. 58.

[7] SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais : uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, pp. 156 e ss.

[8] HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 287.

[9] Na doutrina brasileira, tratando dos “deveres fundamentais”, v. SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais…, pp.234-239, bem como, especificamente sobre os “deveres fundamentais ecológicos”, v. SARLET, Ingo W.; FENSTRSEIFER, Tiago. Direito constitucional ecológico: Constituição, direitos fundamentais e proteção da Natureza. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, pp. 331-382.

[10] BRUGGER, Georg Jellineks Statuslehre…, pp. 28-29.

[11] BRUGGER, Georg Jellineks Statuslehre…, p. 29.

[12] ALEXY, Theorie der Grundrechte..., pp. 403-404.

[13] A doutrina também utiliza a expressão “direitos humanos procedimentais” (procedural human rights), destacando a tríade de direitos relacionados a tal conceito: acesso à informação, participação pública e acesso à justiça (ANTON, Donald K.; SHELTON, Dinah L. Environmental protection and human rights. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, pp. 356 e ss.). Na doutrina brasileira, acerca dos direitos ambientais de participação ou procedimentais, v. MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, processo civil e defesa do meio ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011.

[14] Na doutrina brasileira, sobre o principio da participação no Direito Ambiental, v. SARLET, Ingo W.; FENSTRSEIFER, Tiago. Curso de direito ambiental. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2020, pp. 179-197.

Autores

  • Brave

    é professor, desembargador aposentado do TJ-RS e advogado.

  • Brave

    é defensor público no estado de São Paulo. Doutor e mestre em Direito Público pela PUC-RS, com pesquisa de doutorado-sanduíche junto ao Instituto Max-Planck de Direito Social e Política Social de Munique, na Alemanha. Autor da obra Defensoria Pública na Constituição Federal. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2017.

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