Opinião

Novo Regime de Exceção Fiscal da LC 173/2020 surge em boa hora

Autor

  • André Luiz Maluf

    é procurador do município de Juiz de Fora advogado mestre em Direito Constitucional pela UFF ex-professor substituto de Direito Administrativo da UFF ex-subprocurador geral municipal especialista em Diritto Público Comparato pela Università di Siena pós-graduado em Direito Público e editor do Academia.Edu.

12 de junho de 2020, 6h06

Os diversos veículos de comunicação veicularam a Lei Complementar 173/2020 como um pacote de ajuda financeira para Estados e municípios. Muito se falou sobre o montante de R$ 60 bilhões a ser destinado para os entes. Entretanto, para além de uma mera ajuda financeira, a Lei Complementar 173/2020 trouxe uma série de inovações fiscais que alteraram profundamente a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/00), trazendo um verdadeiro Regime de Exceção Fiscal.

Embora a lei tenha apenas dez artigos, as mudanças devem ser analisadas com cuidado pois envolvem temas complexos e sensíveis. Longe de esgotar os debates sobre o tema, buscamos abordar alguns pontos que parecem polêmicos e inovadores, de modo a reunir neste artigo, em síntese, algumas considerações sobre o tema de modo a debater sobre os impactos da referida LC 173/20 e se ela pode servir como solução jurídica para a crise que acomete Estados e municípios.

Inicialmente a LC 173/20 se apoia sobre três eixos ou iniciativas (artigo 1º, §1º): suspensão de pagamento de dívidas, reestruturação de operações de crédito e entrega de recursos por meio de auxílio financeiro.

À luz do objeto deste texto, o artigo 7º é o dispositivo que altera a Lei de Responsabilidade Fiscal, relativizando diversas normas de controle de gastos, de modo que cria uma verdadeiro Regime de Exceção Fiscal.

Inicialmente, faz alteração no artigo 21 da LRF, criando regras de restrição à realização de despesas.

A disposição que mais chama a atenção e promete gerar debates repousa nas alterações do artigo 65 da LRF, ao prever a suspensão de uma série de dispositivos da LC 101/00 em decorrência da calamidade pública reconhecida pelo Legislativo (§1º, I), notadamente, os limites e condições e demais restrições para todos os entes para: a) contratação e aditamento de operações de crédito; b) concessão de garantias; c) contratação entre entes da federação; e d) recebimento de transferências voluntárias.

A alteração mais relevante parece constar no §1º, II, do artigo 65, que passa a dispensar os limites e afastar as vedações e sanções previstas e decorrentes dos seguintes dispositivos da LRF:

"Artigo 35 É vedada a realização de operação de crédito entre um ente da federação, diretamente ou por intermédio de fundo, autarquia, fundação ou empresa estatal dependente, e outro, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente.

Artigo 37 — Equiparam-se a operações de crédito e estão vedados: I – captação de recursos a título de antecipação de receita de tributo ou contribuição cujo fato gerador ainda não tenha ocorrido, sem prejuízo do disposto no §7º do artigo 150 da Constituição; II – recebimento antecipado de valores de empresa em que o Poder Público detenha, direta ou indiretamente, a maioria do capital social com direito a voto, salvo lucros e dividendos, na forma da legislação; III – assunção direta de compromisso, confissão de dívida ou operação assemelhada, com fornecedor de bens, mercadorias ou serviços, mediante emissão, aceite ou aval de título de crédito, não se aplicando esta vedação a empresas estatais dependentes; IV – assunção de obrigação, sem autorização orçamentária, com fornecedores para pagamento a posteriori de bens e serviços.

Artigo 42 É vedado ao titular de Poder ou órgão referido no artigo 20, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito".

Ademais, permite dispensar o cumprimento do parágrafo único do artigo 8º  "os recursos legalmente vinculados a finalidade específica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação, ainda que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso" , desde que os recursos sejam destinados ao combate da calamidade pública.

Por fim, o inciso III do §1º, do artigo 65 permite ainda o afastamento das condições e vedações previstas nos artigos 14, 16 e 17 da LRF, desde que o incentivo ou benefício e a criação ou o aumento da despesa sejam destinados ao combate à calamidade pública.

Tais mudanças abrem portas, a nosso sentir, para a utilização de recursos, legalmente vinculados, para o enfrentamento da calamidade, como, a exemplo do âmbito municipal, àqueles vinculados ao Fundeb, eis que afastado o parágrafo único do artigo 8º, desde que ocorra excedente do montante destinado originalmente.

Quanto a esse ponto a questão aparentemente é divergente.

O primeiro entendimento é mais restrito e parece ter sido adotado pela Confederação Nacional dos Municípios. A Nota Técnica 36/2020 do CNM reforça que no tocante ao artigo 65, quanto trata do parágrafo único do artigo 8º, permite apenas: "O uso de receitas vinculadas de anos anteriores para despesas diversas do inicialmente definido para ações de combate à calamidade pública". Ou seja, apenas seria possível utilizar os recursos legalmente vinculados excedentes do orçamento anterior.

O segundo entendimento adotado pela Secretaria do Tesouro Nacional caminha em sentido mais amplo: a Nota Técnica SEI nº 21231/2020/ME prevê a "utilização de recursos legalmente vinculados a finalidade específica para atender ao objeto diferente ao da sua vinculação".

Outra possibilidade seria a realização de empréstimo (operação de crédito) entre um município e sua autarquia ou fundo de previdência para o combate à calamidade, em razão do afastamento do artigo 35 da LRF pelo artigo 65, §1º, II, e do artigo 65, §1º, I, "a", que dispensa os limites, as condições e as restrições para contratação e aditamento de operações de crédito.

Além disso, seria possível também a criação de benefícios fiscais, como um desconto nos créditos tributários de valor muito elevado, sem que isso configure renúncia de receita, eis que afastado o artigo 14, a fim de se obter recursos de forma mais célere para o enfrentamento da calamidade, evitando a judicialização e os custos e barreiras dela inerentes. A nosso sentir, tal regra de flexibilização exige a devida motivação do gestor, mediante fundamentação adequada que ateste o interesse público na renúncia de receita, de preferência amparada em orientações técnicas que demonstrem a vantagem dos benefícios ou incentivos, à luz, preferencialmente de indicadores econômicos, de modo a evitar a dilapidação de créditos da Fazenda Pública de forma irresponsável.

Todas essas disposições não afastam a exigência de transparência, controle e fiscalização.

Em que pese as críticas que possam ser suscitadas em termos de irresponsabilidade fiscal, a nosso sentir o novo regime criado parece se adaptar à realidade excepcional que acomete drasticamente Estados e municípios, entes mais suscetíveis a crises do que a União.

Isso não significa uma falta total de accountability, ou uma carta branca para o gestor atuar de modo irresponsável. Cabe aos órgãos de controle, notadamente Tribunais de Contas e Ministério Público, manterem a vigilância sobre as medidas que forem tomadas durante o estado de calamidade, sem desconsiderar nesse controle da Administração à luz da LINDB e do decidido pelo STF na recente MC na ADI 6.421 a realidade local ou regional, avaliando as consequências jurídicas e administrativas do controle, as dificuldades reais do gestor e as circunstâncias práticas de sua atuação, cabendo responsabilização no caso de erro grosseiro ou dolo.

A nosso sentir, o novo regramento jurídico surge em boa hora, de modo a permitir uma flexibilização das regras fiscais em prol da proteção da saúde (artigos 6º e 196 da Constituição), da ordem econômica (artigo 170 da Constituição) e dos demais direitos constitucionais que notadamente são essenciais à coletividade, sem prejuízo do controle a posteriori, nos termos expostos.

Autores

  • é advogado e consultor. mestrando em Direito Constitucional pela UFF. Estudou Direito Público Comparado na Universidade de Siena. Pós-Graduado em Direito Público. Foi Professor de Direito Administrativo da UFF. Foi Subprocurador Geral Municipal. Editor do Academia.Edu.

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