Opinião

Abandono de competição a menos de 45 dias do início é abuso de direito

Autor

  • Tamoio Athayde Marcondes

    é Procurador Federal auditor do Superior Tribunal de Justiça do Vôlei e presidente da Comissão de Estudos Jurídicos Desportivos do Conselho Nacional do Esporte.

10 de junho de 2020, 20h05

O presente artigo apresenta um limite temporal para que a agremiação esportiva possa abandonar a disputa de um torneio da respectiva modalidade sem incorrer nas sanções do Código Brasileiro de Justiça Desportiva.

O CBJD, no que toca às infrações relativas à administração desportiva, às competições e à Justiça Desportiva, dita em seu artigo 204:

"Artigo 204 — Abandonar a disputa de campeonato, torneio ou equivalente, da respectiva modalidade, após o seu início.

PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), sendo as consequências desportivas decorrentes do abandono dirimidas pelo respectivo regulamento".

É sabido que a sistemática de classificação para um torneio envolve o campeonato anterior pelo qual a agremiação obteve a classificação para o ano posterior. Essa sistemática influencia na expectativa dos torcedores, dos adversários na competição e das outras agremiações desclassificadas que perderam o direito de participar do torneio do ano subsequente.

Portanto, a partir da aquisição do direito de participar do campeonato, torneio ou equivalente, a agremiação deve zelar por esse direito a fim de não praticar ato de ilícito civil e ilícito desportivo.

A presente afirmação se baseia na Lei nº 10.406/2002 (Código Civil Brasileiro), que traz em seu artigo 187 a figura do abuso de direito como ato ilícito:

"TÍTULO III

Dos Atos Ilícitos

Artigo 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

Na definição clara e objetiva de Nader (2004), "abuso de direito é espécie de ato ilícito, que pressupõe a violação de direito alheio mediante conduta intencional que exorbita o regular exercício de direito subjetivo" [1].

Como bem coloca o professor e magistrado Carlos Roberto Gonçalves (2014), "o instituto do abuso do direito tem aplicação em quase todos os campos do direito, como instrumento destinado a reprimir o exercício antissocial dos direitos subjetivos. As sanções estabelecidas em lei são as mais diversas, podendo implicar imposição de restrições ao exercício de atividade e até a sua cessação, declaração de ineficácia de negócio jurídico, demolição de obra construída, obrigação de ressarcimento dos danos, suspensão ou perda do pátrio poder e outras" [2].

Apesar do campo doutrinário guerrear entorno da classificação objetiva ou subjetiva do abuso de direito, é certo que a jurisprudência tem evoluído no sentido de reconhecer a responsabilidade civil objetiva do titular de um direito que o exerce excedendo manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Nesse sentido, cabe sublinhar o Enunciado 37 na 1ª Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: "A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico".

Confirmando os termos do Enunciado 37, reconhecendo o abuso de direito sob a dimensão objetiva da responsabilidade civil, encontramos Cavalieri (2012), para quem a concepção adotada em relação ao abuso de direito é a objetiva, pois não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico do direito; basta que excedam esses limites [3].

Conforme trazido no início dessa exposição, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva considera infração disciplinar abandonar a disputa de campeonato, torneio ou equivalente, da respectiva modalidade "após o seu início".

Temos que a conduta da agremiação que abandona torneio após seu início caracteriza-se como abuso de direito. Ainda, considerada a responsabilidade civil objetiva pelo ato ou omissão que caracterize o abandono da competição, é importante fixar o marco temporal em que fica configurado abuso de direito.

Considerando que o CBJD é silente quanto ao que é considerado início do torneio e sabendo que a sistemática de classificação de um campeonato envolve direito de terceiros, seria temerário não fixar um marco temporal. Portanto, é necessário trazer um critério objetivo ao artigo 204, CBJD.

Nesse sentido, devemos nos socorrer à legislação pátria, mais precisamente à Lei nº 10.671/2003, Estatuto do Torcedor.

Em 2003, com a publicação do estatuto, o artigo 42 trouxe dispositivo no sentido da necessidade de o Conselho Nacional de Esporte (CNE) promover a atualização do CBJD, adequando-o ao Estatuto do Torcedor:

"Artigo 42 — O Conselho Nacional de Esportes – CNE promoverá, no prazo de seis meses, contado da publicação desta Lei, a adequação do Código de Justiça Desportiva ao disposto na Lei no 9.615, de 24 de março de 1998, nesta Lei e em seus respectivos regulamentos".

Verifica-se que por lei foi reconhecido que o CBJD se submete ao disposto na Lei 9.615/1998 e ao Estatuto do Torcedor e seus regulamentos. Assim, enquanto espécie normativa hierarquicamente inferior, o CBJD deve ser lido em consonância com a Lei Pele e o Estatuto do Torcedor, servindo esses diplomas legais como paradigmas de interpretação das normas disciplinares do CBJD.

Portanto, o Estatuto do Torcedor traz em seu artigo 9º o marco temporal à fixação do "após o início" do artigo 204 do CBJD. Ao abandonar a competição após esse prazo, resta caracterizado o abuso de direito por parte da agremiação em ato lesivo ao interesse de terceiros, principalmente dos torcedores cujos interesses são tutelados pelo Estatuto do Torcedor.

"Artigo 9º — É direito do torcedor que o regulamento, as tabelas da competição e o nome do Ouvidor da Competição sejam divulgados até 60 (sessenta) dias antes de seu início, na forma do § 1º do artigo 5º. (Redação dada pela Lei nº 12.299, de 2010).

§ 1º — Nos dez dias subsequentes à divulgação de que trata o caput, qualquer interessado poderá manifestar-se sobre o regulamento diretamente ao Ouvidor da Competição.

§ 2º — O Ouvidor da Competição elaborará, em setenta e duas horas, relatório contendo as principais propostas e sugestões encaminhadas.

§ 3º — Após o exame do relatório, a entidade responsável pela organização da competição decidirá, em quarenta e oito horas, motivadamente, sobre a conveniência da aceitação das propostas e sugestões relatadas.

§ 4º — O regulamento definitivo da competição será divulgado, na forma do § 1º do artigo 5º, 45 (quarenta e cinco) dias antes de seu início. (Redação dada pela Lei nº 12.299, de 2010).

§ 5º  — É vedado proceder alterações no regulamento da competição desde sua divulgação definitiva, salvo nas hipóteses de:

I — apresentação de novo calendário anual de eventos oficiais para o ano subsequente, desde que aprovado pelo Conselho Nacional do Esporte – CNE;

II — após dois anos de vigência do mesmo regulamento, observado o procedimento de que trata este artigo.

§ 6º — A competição que vier a substituir outra, segundo o novo calendário anual de eventos oficiais apresentado para o ano subsequente, deverá ter âmbito territorial diverso da competição a ser substituída".

Conforme se observa, é direito do torcedor que o regulamento e as tabelas da competição sejam divulgados até 60 dias antes de seu início.

Também se extrai do artigo 9º que o regulamento definitivo da competição deve ser divulgado 45 antes do seu início.

Finalmente, a legislação veda a alteração do regulamento desde a sua divulgação definitiva, ou seja, no período de 45 dias antes do início da competição.

O CBJD, ao sancionar a conduta da agremiação que abandona a disputa de campeonato da respectiva modalidade após o seu início, pretende coibir o abuso de direito perante a entidade desportiva de administração do torneio da modalidade; perante as agremiações que participam do mesmo campeonato nos termos do seu regulamento e tabela de jogos pré-estabelecida; e perante os torcedores, que têm seus direitos tutelados e protegidos pelo Estatuto do Torcedor.

Interpretar o artigo 204 no sentido de fixar o início da competição como sendo o momento em que ocorrer a primeira partida do torneio (início real da competição) ou mesmo em data inferior a 45 dias desse evento seria temerário aos interesses dos terceiros mencionados alhures e estaria em confronto com a proteção dada pela Lei nº 10.671/2003 ao torcedor, aos atores desportivos e ao desporto em geral.

Nesse sentido, deve o artigo 204 do CBJD ser lido em consonância com o artigo 9º do Estatuto do Torcedor, configurando-se o abuso de direito por parte da agremiação quando houver o abandono do torneio 45 dias antes da data estipulada para seu início.

Ao retirar-se de uma competição, uma agremiação classificada provoca a alteração da tabela, da ordem das partidas, dos competidores e até mesmo a alteração do regulamento do campeonato para se adequar à nova realidade imposta pela retirada de uma peça dessa engrenagem competitiva.

Portanto, permitir que o início da competição para fins do artigo 204 do CBJD se dê no dia calendário da primeira partida da competição é permitir que o abuso de direito de uma agremiação prejudique o conjunto de atores envolvidos na competição e sua própria realização, visto não haver mais possibilidade de em menos de 45 dias antes do início oficial da competição haver alteração do regulamento (artigo 9º, § 5º do Estatuto do Torcedor).

Conclui-se que o artigo 204 do CBJD deve ser interpretado em acordo com o artigo 9º do Estatuto do Torcedor e, nesse sentido, configura-se abuso de direito o abandono a disputa de campeonato, torneio ou equivalente, da respectiva modalidade, nos 45 dias que antecedem o início material da competição.

 


[1] NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Parte Geral – vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2004. P 553

[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil, 15a. edição, São Paulo: Ed. Saraiva, 2014. P. 84

[3] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 10 ed., São Paulo: Atlas, 2012

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