Opinião

Na Covid-19, é essencial garantir direitos dos internos do Sistema Socioeducativo

Autor

  • Mayara Silva de Souza

    é advogada do programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana pós-graduada em Gestão de Políticas Públicas pelo Insper e em Legislativo e Democracia no Brasil pela Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo e ex-conselheira do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo.

10 de junho de 2020, 6h33

Assegurar direitos de adolescentes privados de liberdade é nosso dever constitucional [1]. Em cenário de pandemia, essa responsabilidade se torna ainda maior, considerando que são necessárias ações de prevenção [2] e não proliferação do vírus para assegurar não somente a saúde de adolescentes, mas igualmente de agentes socioeducativos e de toda a sociedade brasileira. Portanto, eventual contaminação por Covid-19 no sistema socioeducativo pode trazer impactos significativos para a socioeducação, a segurança e a saúde pública, extrapolando os limites dos estabelecimentos de atendimento socioeducativo.

O Sistema Socioeducativo é responsável, por meio das medidas socioeducativas [3], pela ressocialização de adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional — conduta equiparada a contravenção penal ou crime [4]. As medidas socioeducativas têm entre seus objetivos [5] a integração social e a garantia dos direitos individuais de adolescentes, bem como sua responsabilização, sendo obrigatórios o uso de métodos e técnicas pedagógicos [6].

A medida de internação em estabelecimento educacional, por consistir na absoluta privação da liberdade de adolescentes por tempo indeterminado, é a medida mais gravosa e danosa, tendo, portanto, princípios e regras específicas para sua aplicação [7] e execução [8]. Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas [9].

Segundo dados do Levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) [10], em setembro de 2019 havia no Brasil 18.086 adolescentes em privação de liberdade por tempo indeterminado, em 330 unidades socioeducativas em todo território nacional, e apenas 16.161 vagas. A distorção entre o número de adolescentes e de vagas deixa evidente o primeiro impacto da pandemia neste sistema: as dificuldades para o atendimento às recomendações da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde para prevenção da Covid-19 que compreendem o distanciamento físico, a não aglomeração de pessoas e a higienização constante podem levar mais gente a óbito no país pela doença.

A quebra das relações e vínculos familiares e comunitários nos chamam atenção para outros dois impactos: saúde mental das pessoas internadas [11] e descaracterização da socioeducação. Junto da necessidade de restrição e limitação às unidades de atendimento surge a urgência em criar novas estratégias para a manutenção dos princípios [12] da execução das medidas, incluindo o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo.

Em relação às adolescentes gestantes, lactantes e mães de crianças de até 12 anos ou de pessoa com deficiência, o Supremo Tribunal Federal [13], em fevereiro de 2018, reconheceu o direito ao cumprimento da medida em domicílio. Ainda, em decorrência da pandemia do coronavírus, o ministro Ricardo Lewandowski, relator do Habeas Corpus coletivo, determinou [14] à Coordenação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente que informe dados atualizados sobre as adolescentes nessas condições.

Por fim, considerando a importância de que cuidar de quem cuida é fundamental para assegurar direitos de crianças e adolescentes, destacamos os impactos causados pelo risco e medo da contaminação que enfrentam o corpo de agentes socioeducativos e funcionários que trabalham nas unidades socioeducativas, em especial aqueles que atuam diretamente com adolescentes. Necessário, portanto, garantir que haja equipamentos de proteção individual para estes profissionais e adolescentes.

A privação de liberdade por si só gera situação de vulnerabilidade, especialmente quando se trata de pessoa em desenvolvimento. Por isso, seus efeitos somados aos impactos do coronavírus poderão ser altamente desastrosos para adolescentes, agentes socioeducativos, educadores, familiares e para toda a sociedade.

Dessa forma, em tempos de pandemia, tão importante quanto a responsabilização de adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional é assegurar direitos e garantias fundamentais, desde a fase de investigação, com o devido respeito ao processo legal e condições especiais da área da infância e adolescência, até o final da execução da medida.

É preciso, ainda, garantir a aplicação plena da decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal no âmbito do Habeas Corpus coletivo nº 143.641.

Por último, é essencial garantir a eficácia dos direitos de adolescentes que permaneceram em privação de liberdade durante todo o período da pandemia, assim como princípios, objetivos e diretrizes do Sinase, com a plena execução da Política de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei (PNAISARI) [15], caso contrário estaremos diante de um sistema estritamente punitivo e violador de direitos paralelo ao sistema prisional.

 


[1] O artigo 227 da Constituição Federal determina que: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".

[2] "Ministério da Saúde lança campanha de prevenção ao coronavírus". Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46458-saude-lanca-campanha-de-prevencao-ao-coronavirus.

[3] O artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que as medidas socioeducativas podem acontecer em liberdade, em meio aberto ou, com privação de liberdade, sob internação.

[4] Conforme estabelece o artigo 103 da Lei nº 8.069 de 1992 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

[5] Conforme estabelece o §2º do artigo 1º da Lei nº 12.594 de 2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).

[6] Conforme estabelece artigo 11, inciso I, da Lei nº 12.594 de 2012 que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).

[7] Conforme estabelece os artigos 227, §3º, inciso III da Constituição Federal e 121 e seguintes da Lei nº 8.069 de 1992 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

[8] Conforme estabelece os artigos 67 e seguintes da Lei nº 12.594 de 2012 que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).

[9] Conforme estabelece o parágrafo único do artigo 124 da Lei nº 8.069 de 1992 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

[10] Levantamento do CNMP indica que há superlotação em unidades de atendimento socioeducativo no Brasil. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/12528-levantamento-do-cnmp-indica-que-ha-superlotacao-em-unidades-de-atendimento-socioeducativo-no-brasil.

[11] Artigo aborda demandas de saúde mental de jovens em unidades de internação. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/artigo-aborda-demandas-de-saude-mental-de-jovens-em-unidades-de-internacao.

[12] Conforme estabelece o artigo 35 da Lei nº 12.594 de 2012 que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).

[14] "Ministro determina que sistema prisional informe medidas para conter pandemia do coronavírus". Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=439958.

[15] Ministério da Saúde. Portaria nº 1.082, de 23 de maio de 2014. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/prt1082_23_05_2014.html.

Autores

  • é advogada do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, pós-graduada em Gestão de Políticas Públicas pelo Insper e em Legislativo e Democracia no Brasil pela Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo e ex-conselheira do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!