Opinião

A (des)informação na pandemia: segredos que matam

Autores

  • Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

    é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG mestre e doutor em Direito (UFMG) com estágio pós-doutoral com bolsa da Capes na Università degli Studi di Roma III e bolsista de produtividade do CNPq (1D).

  • Diogo Bacha e Silva

    é doutor em Direito pela UFRJ mestre em Direito pela FDSM (com estágio de pós-doutorado em Direito na UFMG) e membro do OJB/FND e da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano.

9 de junho de 2020, 15h21

Spacca
No dia 4 de junho de 2020, os dados constantes no sistema do Ministério da Saúde sofreram profundas modificações. Desde o começo da pandemia, o Ministério da Saúde divulgava até as 19 horas do dia respectivo os dados do coronavírus seguindo uma metodologia que levava em consideração a data dos registros fornecidos pelos órgãos Estaduais e Municipais. Assim, o Ministério da Saúde consolidava os registros e divulgava os números de infectados e óbitos ocorridos a partir dessas informações fornecidas pelos Sistemas Estaduais de Saúde.

No dia 5 de junho, questionado acerca da mudança no horário da divulgação dos dados do Ministério da Saúde que passaria a ser às 22h em vez de até as 19h do dia do registro, o Presidente da República atacou especificamente a Rede Globo de Televisão, dizendo que "Ninguém tem que correr para atender a Globo" e também que "Acabou matéria do Jornal Nacional".1 Sem uma explicação convincente acerca da mudança do horário na divulgação dos dados da Covid-19, já que o sistema do Ministério da Saúde era alimentado pelos órgãos estaduais até às 19 (dezenove) horas e, ainda, que durante todo o período da pandemia, o Ministério da Saúde cumpriu rigorosamente o horário para divulgação, a fala do Presidente da República sobre a alteração do horário de divulgação dos dados da pandemia soaria apenas como uma forma de “vendeta” contra a Rede Globo, todavia atingindo também vários outros telejornais e jornais que teriam o fechamento de suas edições prejudicadas, imprensa, essa, alvo de ataques quase diários por parte do Presidente da República.

Não custa, portanto, lembrar que os dados divulgados pelo Ministério da Saúde não são utilizados apenas por uma emissora de televisão. Todos os órgãos de imprensa, redes televisivas, mídia impressas e eletrônicas, canais nas redes sociais, utilizavam a base de dados do Ministério da Saúde para divulgação diária da situação da pandemia no Brasil. A modificação do horário, sem um motivo justificado, poderia levar a crer que o presidente da República apenas estaria pretendendo, de alguma forma, "punir" ou mesmo "censurar" um órgão de imprensa. Não seria à toa, portanto, que o Presidente da República se referiu de forma pejorativa à Rede Globo como "TV funerária", indicando que, para ele, Presidente, as informações veiculadas por essa emissora daria uma tônica excessiva aos óbitos em decorrência da Covid-19.

Assim, a conduta do presidente da República, e de outros agentes em concurso, sem nenhuma justificação a não ser atingir um órgão de imprensa, poderia configurar, em tese, o delito de prevaricação, previsto no art. 319 do Código Penal, na medida em que o retardamento dos dados sobre a pandemia levaria a um atraso indevido na divulgação das informações sanitárias constantes na base do Ministério da Saúde, apenas para satisfazer um sentimento pessoal contra a referida rede de televisão. A impessoalidade que deve marcar a conduta dos agentes públicos significa, inclusive, que a tais dados deve ser dado amplo acesso ao público e à imprensa, não servindo apenas à emissora do Jornal Nacional, mas a diversos outros veículos que se destinam, em um Estado Democrático de Direito, a informar a população em um dos momentos mais sensíveis da história republicana.

E, cabe registrar, em meio a tudo isso, no dia 5 de junho, a página do Ministério da Saúde sobre dados da pandemia saiu do ar2, somente sendo restabelecida, com perfil alterado, no final do dia seguinte.

Tão logo as demais autoridades perceberam a gravidade da fala do Presidente da República, houve uma série de reações por parte delas. O Ministério Público instaurou procedimento extrajudicial determinando que o interino do Ministério da Saúde explicasse os motivos técnicos que embasaram a decisão, a Defensoria Pública da União ajuizou demanda para que o Ministério da Saúde divulgasse dados integrais sobre a pandemia, além do Presidente da Câmara Federal, e mesmo de um Ministro do TCU, alertar que poderia criar bases próprias de dados. Já os secretários estaduais de saúde, em uma reação conjunta, criaram, no domingo, dia 7, um site paralelo para a divulgação dos dados da Covid-19.3 Por fim, a oposição, liderada pelos Partidos Rede Sustentabilidade, PSOL e PCdoB ajuizaram a ADPF 690 perante o Supremo Tribunal Federal para que se determinasse a divulgação integral dos dados.

Interessante observar que, após a modificação no sítio eletrônico do Ministério da Saúde, o primeiro balanço oficial ofertado foi no dia 7 de junho. E, curiosamente, ali, portanto duas divulgações oficiais. A primeira divulgação contava com o número de 1.382 mortes em decorrência do coronavírus. Horas depois, novo balanço foi divulgado com o número de 525 falecimentos. Um erro, portanto, que não seria de digitação. Um erro de 857 (oitocentos e cinquenta e sete) mortes a menos. O que houve, afinal?

A alegação do governo é de que o novo sistema visa compilar os dados que são notificados em 24 (vinte e quatro) horas, corrigindo duplicações que eventualmente seriam lançadas no sistema pelos órgãos estaduais. Entretanto, não custa lembrar a tipificação do art. 319-A do Código Penal.

A alteração de dados em sistema informatizado da Administração Pública, seja com o intuito de se beneficiar, seja para causar dano para a Administração Pública ou a outrem, é tipo penal que busca tutelar a integridade dos dados constantes em sistemas de informática da Administração Pública. Tais dados são extremamente relevantes para a formulação e execução de políticas públicas, além da proteção de direitos fundamentais de toda a população. Nem precisamos dizer, no entanto, que, em se tratando de uma pandemia, eventual violação a tais dados acarreta risco para a vida de toda a população.

Com base em tal norte, o Ministro Alexandre de Moraes acertadamente concedeu liminar na ADPF 690, para determinar que o Ministério da Saúde divulgasse diariamente o boletim epidemiológico, exatamente como o fez até a data de 4 de junho. A referida decisão concretiza não só o garante o direito à informação de toda a população, mas evita que mortes e infecções pelo coronavírus sejam retiradas do sistema de informática, a partir de uma suposta “mudança de metodologia”. No mesmo dia da decisão do ministro Alexandre de Moraes, o Ministério da Saúde recua e anuncia que irá publicar total de mortes e casos de Covid-194. Mas… e daí? O que isso muda do que já teria sido feito?

E afinal resta uma última questão. Para onde foram os dados das infecções e mortes que foram registradas pelos órgãos estaduais no sistema do Ministério da Saúde e, a partir de tal "mudança de metodologia", simplesmente não foram divulgadas?


1 Dispónivel em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/05/dados-do-coronavirus-bolsonaro-defende-excluir-de-balanco-numero-de-mortos-de-dias-anteriores.ghtml, acesso em 09 de junho de 2020.

2 https://istoe.com.br/ministerio-da-saude-tira-portal-com-dados-sobre-covid-do-ar/

3 http://www.conass.org.br/painelconasscovid19/.

4 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/ministerio-da-saude-agora-diz-que-vai-publicar-total-de-mortes-e-casos-de-covid-19.shtml?origin=folha

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