Opinião

É hora de dar um basta na atuação nociva dos aplicativos abutres

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9 de junho de 2020, 15h04

Com a crise desencadeada pela pandemia da Covid-19, a economia brasileira vem se deteriorando progressivamente. Diante desse novo e terrível cenário enfrentado pelos órgãos de defesa dos consumidores, o grande desafio é pacificar a grande massa de conflitos. Há nesse caso um duplo desafio: preservar os direitos dos consumidores ao lado da própria sobrevivência das empresas aéreas, que, como se sabe, são responsáveis por 2% do PIB do Brasil.

Após os cancelamentos em cascata dos voos nacionais e internacionais, e antes que houvesse uma nova judicialização em proporções gigantescas, as principais empresas aéreas brasileiras, em conjunto com a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) e o poder público, representado pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) assinaram em março um inédito termo de ajustamento de conduta (TAC), com inegável natureza jurídica de convenção coletiva de consumo (CDC, artigo 107).

O escopo desse TAC foi o de regular as consequências do flagelo da Covid-19 para as operações das empresas LATAM, Gol, Passerdo, Map e Azul e seus milhões de passageiros.

Importantíssimo destacar que a convenção coletiva de consumo, importantíssima (e desconhecida) forma de regular conflitos coletivos, está prevista no artigo 107 do Código de Defesa do Consumidor e, segundo Nelson Nery Júnior "é tratada como meio de solução de conflitos em que fornecedores e consumidores, por intermédio de suas entidades representativas, estabelecem condições para certos elementos da relação de consumo, de modo a atuarem nos contratos individuais" [1].

Além de trazer diversas regras sobre remarcação, reembolso e cancelamento dos voos afetados pela pandemia, a convenção prevê, no parágrafo 4º do item 2, a vedação de negociações e/ou cessões de créditos a que os passageiros fazem jus, as novas lawtechs que têm atuado ativamente na judicialização [2] dos direitos dos passageiros, muitas vezes em nome próprio, através da compra desses direitos (cessão de créditos futuros). Tais empresas são conhecidas no setor como "aplicativos abutres", embora prefiram se auto intitular pela inocente alcunha de civictechs, ou simplesmente lawtechs.

Cada vez mais numerosos, os aplicativos abutres muitos deles pertencentes a gigantescos fundos de investimento com sede em paraísos fiscais têm sido monitorados pelos órgãos de proteção aos consumidores e pelo Conselho Nacional de Justiça. Recentemente, essas empresas se organizaram, fundando uma Associação de Defesa dos Direitos dos Passageiros Aéreos (ADDPA) [3].

Visando a combater o mal infecto dos aplicativos abutres, a OAB do Rio de Janeiro promoveu uma ação civil pública contra estas civictechs.

Segundo alguns estudos, entre 15% a 20% dos processos judiciais movidos contra as empresas do setor de turismo em 2019 teriam sido fomentados por esses aplicativos, que despenderam uma enorme propaganda de seus préstimos junto às redes sociais. Nessas propagandas amplamente vedadas pela OAB —, os aplicativos abutres oferecem consultoria jurídica contenciosa aos passageiros, insuflando-os a propor demandas judiciais por motivos comezinhos, ao invés de direcioná-los ao SAC das empresas ou às modernas formas adequadas de solução de controvérsia.

E tem mais: após orientar o passageiro a preencher formulários e a enviar documentos, o aplicativo abutre muitas vezes oferece de forma robotizada valores antecipados ao seu cliente com o propósito de comprar o futuro direito de crédito contra as empresas de turismo. Tal valor corresponde, muitas vezes, a menos de 10% do montante a que o passageiro faria jus caso procurasse diretamente a empresa reclamada.

Em síntese, a nefasta e irregular atividade dos aplicativos abutres, além de inflar ainda mais a enorme massa de processos judiciais que entopem as cortes brasileiras, ainda abocanha grande parte dos direitos dos consumidores, enviando os lucros aos fundos internacionais sediados em paraísos fiscais.

Cientes dessa anomalia, pela primeira vez o poder público expressamente impediu a atuação dos aplicativos abutres ao proibir no TAC das empresas aéreas que os acordos derivados da Covid-19 pudessem ser cedidos a tais empresas.

O parágrafo 4º da cláusula 2.1 da convenção coletiva destaca expressamente que o crédito dos passageiros "não é transferível, sendo proibida a negociação de tais direitos com terceiros, inclusive, mas não se limitando às empresas de tecnologia (lawtechs) que adquirem esses direitos de passageiros e promovem a Judicialização". Como forma de fazer cumprir tal importante vedação, o parágrafo primeiro do artigo 8 da Convenção prevê que a Senacon dará ciência do TAC ao Conselho Nacional de Justiça, "a fim de contribuir com a política judiciária de desjudicialização dos conflitos".

Isso mostra haver uma convergência entre a OAB, a Senacon, o Ministério Público e o CNJ, visando a dar um basta na atuação nociva dos aplicativos abutres, que tanto mal fazem aos consumidores brasileiros, ao esforço conjunto de desjudicialização e à economia do país.

 


[1] NERY JÚNIOR, Nelson, Leis civis e processuais civis comentadas; 4º ed. rev. atual. e ampl.; São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 652

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