Opinião

Antes e depois da (in)validade da investigação de ofício do STF

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9 de junho de 2020, 17h45

A nossa hipótese é a de que a investigação de ofício do Supremo Tribunal Federal Inquérito 4781 será declarada válida, com os possíveis encaminhamentos ao final do artigo, embora os subscritores apontem as objeções legais e constitucionais de tal proceder [1], no âmbito do debate acadêmico e da liberdade de expressão.

Já há algum tempo, tem-se discutido no Direito e na política — o que nem sempre dá certo acerca da compatibilidade constitucional de o Supremo Tribunal Federal, por decisão de um dos seus integrantes (e esse fato, como se verá adiante, não importa muito, pois se a decisão é monocrática ou plenária, definitivamente não é disso que se trata), determinar de ofício a abertura de inquérito de natureza criminal para apurar suposta prática de infrações penais (aqui também não nos parece ser de muita relevância se a investigação criminal recai sobre alguém que possui ou não prerrogativa de função).

No geral, para respaldar a possibilidade e a legitimidade da Suprema Corte, e dos seus ministros, de determinar de ofício a abertura de um procedimento investigatório criminal (sem que tenha havido algum requerimento da polícia, do Ministério Público ou de um outro interessado, como a própria vítima), cita-se o Regimento Interno do STF.

Ressaltamos, no entanto, que o atual RISTF foi originariamente publicado no dia 27 de outubro de 1980, na edição de nº 205 do Diário da Justiça da União, prescrevendo que, "ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependências do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro", podendo, nos demais casos, "proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente" (artigo 43, § 1º).

Estávamos, como se sabe, em pleno regime de exceção, sob uma ordem constitucional ilegítima, antidemocrática, autoritária, cujo processo penal era de matriz nitidamente inquisitorial (como, aliás, ainda o é em suas práticas), concebendo-se a figura do juiz criminal como um verdadeiro protagonista da persecução penal, desde a sua fase inicial (na investigação criminal preliminar) até o seu final (no processo de execução penal, que deitava raízes nas regras de um procedimento de natureza administrativa).

Ainda nesse regimento, estabelece-se que "o Tribunal não processará comunicação de crime, devendo enviá-la à Procuradoria-Geral da República, nos termos do artigo 230-b" (incluído pela Emenda Regimental nº 44, de 2 de junho de 2011). Nesse caso, "instaurado o inquérito, a autoridade policial deverá em sessenta dias reunir os elementos necessários à conclusão das investigações, efetuando as inquirições e realizando as demais diligências necessárias à elucidação dos fatos, apresentando, ao final, peça informativa. O Relator poderá deferir a prorrogação do prazo sob requerimento fundamentado da autoridade policial ou do procurador-geral da República, que deverão indicar as diligências que faltam ser concluídas".

Ademais, "os requerimentos de prisão, busca e apreensão, quebra de sigilo telefônico, bancário, fiscal, e telemático, interceptação telefônica, além de outras medidas invasivas, serão processados e apreciados, em autos apartados e sob sigilo, pelo Relator" (artigo 230-c, incluído também pela Emenda Regimental nº 44).

Caso seja "apresentada a peça informativa pela autoridade policial, o Relator encaminhará os autos ao procurador-geral da República, que terá quinze dias para oferecer a denúncia ou requerer o arquivamento. As diligências complementares ao inquérito podem ser requeridas pelo procurador-geral ao Relator, interrompendo o prazo deste artigo, se deferidas" (artigo 231, igualmente com redação dada pela referida Emenda Regimental). Na hipótese de se tratar de crime cuja ação penal é de iniciativa privada, "o Relator determinará seja aguardada a iniciativa do ofendido ou de quem por lei esteja autorizado a oferecer queixa". (artigo 232, idem).

Substancialmente, tais dispositivos em nada diferem em absolutamente coisa nenhuma do que já se continha no regimento anterior, publicado no Diário da Justiça da União na edição de nº 167, no dia 4 setembro de 1970, quando nos porões da ditadura brasileira (comandada por militares das Forças Armadas) centenas de brasileiros e de brasileiras sofriam tortura, e outros tantos e tantas eram assassinados e assassinadas.

Veja-se, para ilustrar apenas, preservando-se a ortografia da época:

"Artigo 42 Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependências do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessôa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro. § 1º. – Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma dêste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente.

Artigo 45 – Sempre que tiver conhecimento de desobediência a ordem emanada do Tribunal ou de seus Ministros, no exercício da função, ou de desacato ao Tribunal ou a seus Ministros, o Presidente comunicará o fato ao órgão competente do Ministério Público, provendo-o dos elementos, de que dispuser para a propositura da ação penal.

Artigo 46 – Decorrido o prazo de trinta dias, sem que tenha sido instaurada a ação penal, o Presidente dará ciência ao Tribunal, em sessão secreta, para as providências que julgar necessárias (artigo 156, II)". [2]       

Bem, como se sabe, sob a égide da nova ordem constitucional, e segundo o que impõe o artigo 129, I e VIII, da Constituição da República, cabe ao Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, como também requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial. Goste-se ou não, foi uma opção do constituinte originário, certamente atento que estava ao princípio acusatório e para rechaçar qualquer iniciativa persecutória criminal de juízes mais afoitos, como ocorrera no período de exceção.

Aliás, desde a sua remota origem (nos anos 40), o próprio CPP já alertava que "quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia" (artigo 40). Ou seja: nada de iniciativas investigatórias de ofício.

Também o artigo 5º, II, do CPP não autoriza a abertura de ofício de inquérito por parte de juízes ou tribunais, devendo, se for o caso de um crime de ação pública, requisitar a sua instauração à autoridade de polícia judiciária; aqui, evidentemente, trata-se de um dispositivo incompatível com a nova ordem constitucional e com o modelo acusatório de processo, pois imiscui o juiz ou o tribunal em atividade eminentemente persecutória.

De mais a mais, muito recentemente foi acrescentado ao CPP o artigo 3º-A (cuja eficácia está suspensa temporariamente por força de uma liminar concedida pelo ministro Luiz Fux), segundo o qual "o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação". Eis o ponto.

Além desse dispositivo legal, foi alterada a redação do artigo 282, § 2º, do CPP (modificação feita pela Lei nº 13.964/19), estabelecendo que "as medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público". Nada de ofício!

É bem verdade que o artigo 242 do CPP permite uma inconstitucional (aqui estamos tratando de controle difuso de constitucionalidade) busca e apreensão de ofício pelo juiz ou tribunal, o que se nos afigura inteiramente inaplicável, seja à luz da Constituição, seja em razão do princípio acusatório, seja mesmo em razão das recentes modificações do CPP, acima referidas (artigos 3º-A e 282, § 2º).

Também é sabido que o Direito normatizado pode e deve contar com normas jurídicas que sancionem atos que firam ou desrespeitem as decisões e o próprio Poder Judiciário, prevenindo ou reprimindo, conforme o caso, atos atentatórios à reputação das instituições que compõem este poder da República.

No Código de Processo Civil, por exemplo, estabelece-se, no artigo 5º, que 'aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé", sendo deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo, entre outros, "cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação", sob pena de ser advertido "de que sua conduta poderá ser punida como ato atentatório à dignidade da justiça", além de constituir "ato atentatório à dignidade da justiça, devendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa de até vinte por cento do valor da causa, de acordo com a gravidade da conduta" (artigo 77, §§ 1º e 2º), ressalvando-se que "em relação aos advogados públicos ou privados e aos membros da Defensoria Pública e do Ministério Público eventual responsabilidade disciplinar deve ser apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria, ao qual o juiz oficiará". (§ 6º.).

Também no CPC, afirma-se, agora no artigo 139, que incumbe ao juiz, entre outras providências, "prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça", "determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária", "exercer o poder de polícia, requisitando, quando necessário, força policial, além da segurança interna dos fóruns e tribunais", "determinar, a qualquer tempo, o comparecimento pessoal das partes, para inquiri-las sobre os fatos da causa, hipótese em que não incidirá a pena de confesso".

Por fim, permite-se que o juiz, em qualquer momento do processo, determine o comparecimento das partes, advirta o executado de que seu procedimento constitui ato atentatório à dignidade da Justiça, determine que sujeitos indicados pelo exequente forneçam informações em geral relacionadas ao objeto da execução, tais como documentos e dados que tenham em seu poder, assinando-lhes prazo razoável (artigo 772).

Aliás, "considera-se atentatória à dignidade da justiça a conduta comissiva ou omissiva do executado que frauda a execução; se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos; dificulta ou embaraça a realização da penhora; resiste injustificadamente às ordens judiciais; intimado, não indica ao juiz quais são e onde estão os bens sujeitos à penhora e os respectivos valores, nem exibe prova de sua propriedade e, se for o caso, certidão negativa de ônus. Nestes casos, o juiz fixará multa em montante não superior a vinte por cento do valor atualizado do débito em execução, a qual será revertida em proveito do exequente, exigível nos próprios autos do processo, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material" (artigo 774).

Temos, também a propósito, por que não?, a própria reclamação constitucional, utilizada para a preservação da competência e garantia da autoridade das decisões dos tribunais, inclusive no âmbito da Suprema Corte.

Por fim, importa referir que o sistema jurídico brasileiro, desde a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, criou, no artigo 130-A, o Conselho Nacional do Ministério Público, órgão de controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público brasileiro, bem como do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo-lhe, dentre outras atribuições, zelar pela observância do artigo 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Ministério Público da União e dos Estados, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei.

Também é competência do CNMP receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Ministério Público da União ou dos Estados, inclusive contra seus serviços auxiliares, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional da instituição, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção ou a disponibilidade e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa.

Portanto, havendo desídia do Ministério Público no exercício de suas funções, inclusive no âmbito criminal, não pode o Poder Judiciário, arvorando-se polícia ou órgão acusador, determinar de ofício a instauração de investigação criminal, devendo, se for o caso, aguardar a iniciativa de quem se viu ofendido pela infração penal (exercendo a ação penal de iniciativa privada subsidiária), ou mesmo acionar o órgão de controle externo do Ministério Público.

Afinal, como já se disse outrora, o perigo é exatamente o "juiz da esquina"! [3]

P.S. De todo caso, nossa hipótese é a de que o STF, ao manter a dita autoridade, tende a: a) declarar a constitucionalidade/validade da investigação levada a efeito pelo ministro Alexandre de Moraes; b) declarar que o ministro Alexandre de Moraes não participará do julgamento das ações penais futuras; c) reconhecer a competência da turma de que o ministro investigador não fizer parte; d) encaminhar de modo fatiado parte da investigação ao procurador-geral da República e aguardar seu comportamento, tendo afirmado a constitucionalidade, ou seja, antes de o procurador dizer que fere a Constituição, o STF já superou o argumento, forçando-o a agir; e e) remeter a investigação fatiada aos membros do Ministério Público com competência para o exercício da ação penal isoladamente, em primeiro grau e tribunais, gerando um movimento de responsabilização autônomo.

 


[1] LOPES JR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. "Entenda a semana do Supremo e sua investigação de ofício". https://www.conjur.com.br/2019-abr-19/entenda-semana-supremo-investigacao-oficio

[2] "Artigo 156 – Além do disposto no artigo 129, serão reservadas as reuniões: I — quando algum dos Ministros pedir que o Plenário ou a Turma se reúna em Conselho; II — quando convocados pelo Presidente para assunto administrativo ou da economia do Tribunal (artigo 35, parágrafo único, b)".

[3] Atribui-se a Pedro Aleixo, vice-presidente do marechal Costa e Silva, uma frase famosa, que ele teria dito na reunião que decretou o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, quando se inaugura o período mais feroz da ditadura militar. "O problema deste ato, teria dito Aleixo, não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país, mas o guarda da esquina". A origem da frase é duvidosa, pois na gravação em áudio da reunião do AI-5, na qual Aleixo fala longamente e se coloca contra a adoção da medida, não há registro da frase. Não a encontrei também no capítulo dedicado ao assunto no livro de Zuenir Ventura (1968 – O Ano Que Não Terminou) nem em A Ditadura Escancarada, o segundo volume da obra clássica de Elio Gaspari. É possível que Aleixo tenha pronunciado a frase em outro contexto, é possível até que ela seja uma fake news pré-histórica.” (BARROS E SILVA, Fernando, disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/o-guarda-da-esquina-e-sua-hora/. Acesso em 8 de junho de 2020).

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