Opinião

O direito à ciência, a ADI 6.341 e a competência dos entes federados

Autor

  • Luisa Netto

    é procuradora do Estado de Minas Gerais professora de Direito Público na PUC-Minas Post-doc visting fellow na Universidade de Leiden doutora em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa e mestre em Direito Administrativo pela UFMG.

9 de junho de 2020, 19h33

A atual situação de nosso país levanta sérias preocupações. Presenciamos uma crise política e econômica, testemunhamos ataques persistentes às instituições democráticas e enfrentamos uma pandemia sem precedentes. Não obstante essas circunstâncias, diante da urgência imposta pela pandemia, seria razoável esperar a implementação de uma estratégia nacional, articuladora da colaboração e adaptações regionais e locais necessárias, equilibrando as demandas relativas à saúde pública e à economia. Infelizmente, o que vemos é o Brasil se tornar uma das maiores vítimas mundiais da Covid-19, enquanto o presidente minimiza a gravidade da situação, negando evidências científicas e desconsiderando o aconselhamento de experts.

Em face da ausência de resposta nacional articulada, respaldados pela decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 6.341, governadores e prefeitos têm assumido o protagonismo na luta contra o coronavírus, editando diversas medidas normativas e as implementando nos variados quadrantes do país.

O objetivo deste breve artigo, sem desconhecer a importância de analisar as atuais ameaças à democracia brasileira, centra-se em perquirir e expor as possíveis implicações jurídicas advindas do direito à ciência para enfrentar a situação vivenciada no Brasil.

Coronavírus no Brasil breve panorama
Desde que o Brasil registrou o primeiro caso de Covid-19, o país tem assistido a um rápido e letal alastramento da doença.

Em termos legislativos, diferentemente de diversos países em que se prescinde de embasamento legal para as medidas de combate à pandemia, houve a edição, entre uma série de outros diplomas normativos, da Lei federal nº 13.979/2020, destinada a disciplinar a situação de emergência de saúde pública causada pela disseminação do coronavírus. A lei cobre uma vasta gama de matérias, desde a previsão de medidas como quarentena, isolamento, realização compulsória de exames e restrições a atividades públicas, até a criação de exceções à regra da licitação e do dever de fornecimento de informação administrativa. A lei, no âmbito federal, foi seguida por decretos (10.282/2020 e 10.329/2020) que trazem a definição das atividades e serviços essenciais. Houve também a edição do Decreto Legislativo nº 6/2020, levantando restrições orçamentárias e possibilitando a alocação de recursos financeiros contra a pandemia. Editou-se, ainda, a Medida Provisória nº 936, autorizando a suspensão temporária de contratos de trabalho, a redução da jornada com consequente redução salarial e prevendo o pagamento de um auxílio emergencial.

Diante deste quadro normativo, poder-se-ia pensar que o Brasil tem os instrumentos necessários para enfrentar a caleidoscópica crise atual. No entanto, não há, até o momento, a implementação de estratégia que coordene, com base em opções cientificamente defensáveis, as ações nos planos nacional, regionais e locais para conjugar esforços voltados a objetivos comuns no enfrentamento do coronavírus. Essa ausência de ação federal articulada agrava-se pela sistemática negação à ciência e atuação contrária às evidências científicas, assim como pela ausência de divulgação de informações coerentes para a população.

Além disso, tem-se assistido ao discurso oficial do presidente de República de frontal negação da gravidade da doença causada pelo coronavírus, bem como da pandemia, somado a comportamentos refratários ao distanciamento social e a um mau uso das redes sociais. Contrariando as evidências médicas e o aconselhamento técnico da Organização Mundial da Saúde (OMS), o presidente determinou o aumento da produção de cloroquina, afirmando sua eficácia contra a Covid-19. Curiosamente, após dois ministros da Saúde deixarem o cargo em menos de dois meses em virtude de desentendimentos sobre o combate ao vírus e serem substituídos por militares interinos, o protocolo do Ministério da Saúde para o tratamento da Covid-19 foi alterado para incluir o uso de cloroquina e hidroxicloroquina.

Diante desse cenário desolador, governadores e prefeitos têm assumido o protagonismo no combate ao coronavírus, editando uma multiplicidade de instrumentos normativos e adotando diversas medidas concretas. Sem desconhecer a necessidade de medidas de enfrentamento da pandemia, é preciso anotar que, para além de eventuais questionamentos quanto à sua constitucionalidade em termos de conteúdo, as atuações estaduais e municipais suscitaram debate acerca da repartição constitucional de competências no arranjo federativo brasileiro.

O direito à ciência, a ADI 6.341 e a competência dos entes federados
A Constituição da República de 1988 não consagrou um direito à ciência de forma expressa, circunstância que não impede de reconhecer esse direito como pertencente à ordem jurídica brasileira por força das cláusulas de abertura previstas nos parágrafos 2 e 3 do seu artigo 5. O direito à ciência foi estabelecido no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigo 15) e na Convenção Americana de Direitos Humanos; sem olvidar a Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 27). Soma-se a esta consagração explícita de um direito humano à ciência em instrumentos internacionais a circunstância de a Constituição da República se referir inúmeras vezes à ciência, impondo consequentes obrigações ao Estado (especialmente nos artigos 23, V, 200, V, e 218), como tem sido afirmado em várias ocasiões pelo Supremo Tribunal Federal (aborto, células-tronco, homeschooling).

Malgrado as inegáveis dificuldades da aplicação de normas internacionais, mormente normas de direitos humanos em contextos de crise econômica e crescimento do populismo, o recurso ao Direito Internacional é fecundo. Em primeiro lugar, os instrumentos citados trazem a consagração explícita de um direito à ciência como direito humano autônomo, capaz de ingressar na ordem jurídica brasileira, nesta qualidade, por meio das cláusulas de abertura estabelecidas constitucionalmente. Em segundo lugar, o plano internacional oferece um fundamento normativo complementar para enfrentar a situação em face de eventuais falhas domésticas, buscando respostas globais como a pandemia exige. O direito humano à ciência, aliado ao princípio de due diligence, oferece parâmetros legais para o que se pode exigir dos Estados, fortalecendo suas obrigações na luta contra o coronavirus.

Os instrumentos do Direito Internacional e a dogmática jusinternacional possibilitam uma aproximação ao conteúdo normativo do direito à ciência, que engloba, entre outras facetas, o direito dos indivíduos de desfrutar dos benefícios do progresso científico e tecnológico e o direito dos cientistas de desenvolver livremente a pesquisa científica, com proteção para os seus resultados. O primeiro aspecto vinculante deste direito que vem à luz no contexto da pandemia é a obrigação do Estado de ativamente proteger a vida e a saúde de acordo com a ciência, tomar as medidas necessárias para enfrentar a pandemia baseadas nas evidências científicas, controlando o alastramento da doença e tratando as pessoas infectadas. Maiores desenvolvimentos devem levar a apoiar a pesquisa científica e a colaboração internacional visando a criar e produzir vacinas e estruturar estratégias para conter outras pandemias. Esses aspectos positivos do direito à ciência não afastam a imposição de uma proibição para o Estado de agir ou se negar a agir em dissonância com o conhecimento científico disponível.

O direito à ciência fornece o necessário embasamento jurídico para afirmar que o conhecimento científico, a ciência e suas evidências, têm que ser a razão fundante das escolhas políticas de enfrentamento da pandemia, sem desconsiderar os processos democráticos. O apetite contramajoritário dos direitos humanos e fundamentais não se confunde com qualquer ameaça à democracia ou às instituições políticas do Estado de Direito. Pelo contrário, direitos e democracia mantêm uma relação necessária e dialética.

Certamente a questão merece cautela. Não se trata de defender a epistocracia ou a tecnocracia, nem tampouco de advogar a substituição de agentes políticos democraticamente eleitos por experts no processo de tomada das decisões públicas. A ciência, como se sabe, está sujeita a vieses, falsificações e erros, exige desenvolvimento constante e não é apta a oferecer respostas nem soluções incontestáveis para os complexos desafios societais.

No momento, há diversos aspectos relativos à pandemia, à doença e ao vírus que são discutíveis e desconhecidos. Ademais, os impactos econômicos de uma pandemia também precisam ser levados em conta; diversos direitos dependem da economia. Não se deve, ainda, desconhecer que contextos diferentes podem demandar estratégias específicas.

Uma coisa é suficientemente clara: a pandemia exige ação estatal e global urgente. O vírus e a doença não são uma questão de opinião política ou posicionamento ideológico, são uma matéria científica. Ainda assim, a pandemia exige ação política.

As autoridades democraticamente legitimadas devem se valer do aconselhamento de experts para tomar suas decisões e implementar as ações necessárias. As estratégias estatais de combate à pandemia devem ser públicas e transparentes, sujeitando-se ao controle por meio das instituições políticas e da opinião pública informada, com a garantia da liberdade de imprensa e de expressão. Por óbvio, é vital manter o debate político-institucional como elemento fundacional integrante da democracia, o que exige que as medidas urgentes sejam talhadas de acordo com o arcabouço constitucional.

Por um lado, deve haver espaço para escolhas políticas de acordo com o que é, no momento, cientificamente defensável. Por outro lado, o direito à ciência autoriza afirmar que não há espaço legítimo para simplesmente ignorar ou negar o conhecimento e as evidências científicas.

Essa breve aproximação ao direito à ciência permite verificar que a situação atualmente vivenciada no Brasil não está de acordo com a proteção comandada por esse direito. No plano nacional, evidências científicas têm sido desconsideradas, não têm servido, malgrado a existência de legislação federal, de base para a implementação de uma estratégia consistente e articulada de combate à pandemia da Covid-19.

Considerando que o direito à ciência é vinculante no plano doméstico, seu conteúdo normativo, brevemente exposto, mostra-se extremamente relevante para avaliar juridicamente a atuação dos governos federal, estaduais e municipais durante a pandemia.

Em primeiro lugar, o Direito oferece desde já ao Supremo Tribunal Federal uma âncora normativa para acessar os resultados empíricos de outros campos científicos e desenvolver o controle constitucional das respostas à pandemia. Mesmo que esse aspecto se centre na análise das respostas normativas e não seja suficiente para enfrentar a ausência de ação nacional articulada de combate ao vírus nem as ações governamentais tomadas em frontal desacordo com as evidências científicas, parece-nos um relevantíssimo elemento para a atuação do STF e das demais instâncias do Poder Judiciário.

Em um cenário de instabilidade política, avulta a importância do nosso mais alto tribunal no zelo pela Constituição, buscando manter a necessária coexistência de direitos humanos e democracia. O argumento fornecido pelo direito à ciência parece-nos essencial no desempenho dessa missão institucional pelo STF, permitindo acessar a situação por um prisma jurídico, afastando-se na certa medida da crescente polarização política.

Para fornecer um exemplo concreto, poderíamos pensar em somar, à argumentação desenvolvida no julgamento da ADI 6.341, o direito à ciência como embasamento constitucional sólido a outorgar competência para a atuação regional e local. A sucinta argumentação desenvolvida na decisão — e justificada em face da fase crítica vivenciada — girou em torno da questão formal da exigência de lei complementar e da presença dos requisitos constitucionais para a edição de medida provisória. Para além disso, estendeu-se para considerar a competência concorrente e comum conferida pela Constituição aos entes federados em matéria de saúde. Não por acaso, na decisão são citados os artigos 198 e 200 da Constituição, preceitos que tratam da saúde e tangenciam o desenvolvimento científico e tecnológico a ela referenciado. A atuação de governadores e prefeitos no combate à pandemia certamente tem que se amoldar às demais balizas constitucionais do nosso Estado democrático de Direito. Respeitadas essas balizas, tal atuação encontra fundamento constitucional no direito à ciência, que socorre o direito à saúde.

O direito à ciência se associa frequentemente a outros direitos humanos, com destaque para o direito à saúde. Essa associação fortalece a competência concorrente e comum dos entes federados para proteger e promover a saúde com base nas evidências científicas disponíveis, seja no plano de fruição individual, seja pelo prisma da saúde pública. A força do argumento normativo torna-se patente; a proteção e promoção da saúde apenas se pode fazer de forma efetiva respeitando as evidências científicas e aplicando os resultados do desenvolvimento científico e tecnológico pertinente.

Nesse ponto, interessante invocar a decisão da ADPF 672, na qual houve expressa menção pelo requerente a "ações irresponsáveis e contrárias aos protocolos de saúde aprovados pela comunidade científica e aplicados pelos Chefes de Estado em todo mundo", solicitando-se ao STF que determinasse ao presidente se abster "de praticar atos contrários às políticas de isolamento social adotadas pelos Estados e municípios". Com fundamento nos artigos 23, II, IX, 24, XII, e 30, II, da Constituição, reafirmou-se a competência legislativa e administrativa de Estados e municípios para adotar medidas de enfrentamento da pandemia. O direito à ciência poderia participar desta acertada decisão emprestando-lhe vigor normativo, elemento de que carecem as recomendações da OMS referidas ao final.

Não se desconhece que o recurso pulverizado por autoridades regionais e locais ao que é cientificamente defensável pode levar a inconsistências e dilemas. O ideal é a atuação nacional articulada, como convém ao federalismo, ao sistema constitucional de repartição de competências e de distribuição de função entre os poderes, fazendo-se escolhas políticas afinadas com a ciência e as traduzindo institucionalmente em normas.

A ciência não pode nem deve substituir o debate e a ação política democraticamente legitimada. Ela pode, no entanto, emprestar ao nosso Supremo Tribunal Federal, na confluência necessária entre direitos e democracia, importante argumento normativo não para governar, mas para impedir o desgoverno.

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    é procuradora do Estado de Minas Gerais, professora de Direito Público na PUC-Minas, Post-doc visting fellow na Universidade de Leiden, doutora em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa e mestre em Direito Administrativo pela UFMG.

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