Opinião

Linguagem jurídica é a chave para o êxito nas demandas judiciais

Autor

  • Giovanna Martins Wanderley

    é advogada especialista em Processo Civil pela UNIRN pós-graduanda em Direito Marítimo e Portuário pela Maritime Law Academy e membro da Comissão de Direito Marítimo Portuário e Aduaneiro da OAB-RN.

9 de junho de 2020, 6h04

A relação entre linguagem e Direito é íntima, visto que através dela, seja escrita ou falada, é que as teses judiciais podem ser defendidas no processo [1]. Isto é, a linguagem (sentido amplo) não é senão a única ferramenta à disposição do operador jurídico para buscar, aplicar, explicar e até criar o Direito.

Assim como na semiótica [2], no Direito os sujeitos (ou as partes) envolvidos assumem uma postura "manipuladora ou manipulada", visto que no litígio apenas uma tese, ainda que parcialmente, é "aceita" como verdadeira pelo destinatário-julgador.

Essa manipulação [3] preliminarmente nos é imposta pela lei. A imperatividade da lei distingue a norma jurídica das leis físicas ou naturais. Com efeito, a lei sempre irá influenciar na linguagem empregada, seja para restringir, seja para ampliar o sentido dela extraído pelo manipulador. Mesmo com tais limitações, a linguagem utilizada no meio jurídico pode ter funções diversas da simples subsunção à lei.

Insta registrar que no cenário jurídico as discussões trazidas aos autos pelas partes sofrem limitações, sejam de tempo, de forma, hierarquia etc. Assim, o ato de peticionar não é totalmente livre, devendo ater-se não só aos vocábulos próprios, mas também às formas prefixadas em lei. Com efeito, o processo legiferante, as petições e as decisões seguem ritos preestabelecidos pelos regimentos e códigos, dos quais não se pode afastar sob pena de invalidade ou nulidade.

Para ilustrar como a linguagem jurídica limita-se aos moldes legais preconcebidos, vejamos como se desenvolve o processo após a provocação do Poder Judiciário através de uma petição inicial, que deve estar nos moldes dos artigos 319 e seguintes do Código de Processo Civil, sob pena de indeferimento:

"Artigo 319   A petição inicial indicará:

I o juízo a que é dirigida;

II os nomes, os prenomes, o estado civil, a existência de união estável, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o endereço eletrônico, o domicílio e a residência do autor e do réu;

III o fato e os fundamentos jurídicos do pedido;

IV o pedido com as suas especificações;

V o valor da causa;

VI as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados;

VII a opção do autor pela realização ou não de audiência de conciliação ou de mediação.

(…)

Artigo 321 O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos artigos 319 e 320 ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado.

Parágrafo único  Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição inicial".

Analisando os artigos acima transcritos, temos que a petição inicial deve atender ao rito preestabelecido pelo Código de Processo Civil, sob pena de indeferimento, o que denota que a linguagem desde o início já influencia no desenvolvimento regular do processo.

Sobre o formalismo insculpido no rito processual estabelecido no Código de Processo Civil, leciona Carlos Alberto Álvaro de Oliveira:

"O formalismo, ou forma em sentido amplo, não se confunde com a forma do ato processual individualmente considerado. Diz respeito à totalidade formal do processo, compreendendo não só a forma, ou as formalidades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e organização do processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais. A forma em sentido amplo investe-se, assim, da tarefa de indicar as fronteiras para o começo e o fim do processo, circunscrever o material a ser formado, e estabelecer dentro de quais limites devem cooperar e agir as pessoas atuantes no processo para o seu desenvolvimento" [4] (grifo da autora).

A obrigatoriedade da forma a ser seguida pelas peças judiciais (aqui, com enfoque na petição inicial), apesar de limitar a atuação dos operadores do Direito, não os impede de defender as suas teses da forma que melhor lhes aprouver. Através das técnicas de argumentação adequadas é possível conseguir a adesão dos destinatários àquilo que lhes é proposto na petição. A partir da adesão ou não desta peça, pode-se antever a probabilidade ou não êxito. Senão vejamos.

Ao formular a sua tese através da petição inicial, o advogado, seguindo um molde preestabelecido, inicia seu discurso narrando os fatos, enfraquecendo a pretensão da parte contrária e dando um embasamento legal para o seu Direito resistido. Ao final, ele pugna pelo acatamento da tese e o deferimento do pedido formulado.

A petição inicial nada mais é do que o instrumento de que o causídico lança mão para defender a sua tese e ao fim obter a prestação jurisdicional desejada. Nessa peça, os fatos são narrados sob o ponto de vista do seu subscritor, que, além de narrar, também seleciona o aparato legal que embasa os seus argumentos. Considerando que nem sempre ele conseguirá a adesão automática ao seu discurso, necessário que este manipule os dados informados com o fim de representar a realidade da forma que lhe é mais favorável.

A manipulação ou convencimento se inicia no momento da narrativa dos fatos. Atente-se que para que os fatos descritos assumam a relevância desejada pelo subscritor da peça, eles são enfatizados através da linguagem empregada. Da mesma forma, fatos irrelevantes ou prejudiciais ao autor, são "omitidos".

Na construção da argumentação-manipulação, não só os fatos são selecionados, mas também o excerto legal utilizado para ampará-la. Nessa fase, o contexto induzido na qual a interpretação do leitor se desenvolverá começa a ser construído. Acerca da importância do contexto linguístico para a construção da verdade, Wittgenstein afirmou que entre o pensar e o real há uma grande diferença [5]. Segundo o filósofo, em primeiro lugar há a transformação do mundo em pensamento e somente após isso se desenvolve a linguagem.

Em razão do exposto, pode-se concluir que a linguagem jurídica corretamente contextualizada constrói a "verdade processual", sendo determinante para adesão do manipulado (julgador) à tese discutida e emissão de decisão favorável.

 


[1] Sobre a relação entre Direito e Linguagem, Clarice Von Oertzen de Araújo, afirmou: ”Uma sentença, ao decidir em primeira instância sobre a procedência ou improcedência do pedido formulado na ação proposta, toma a petição inicial, assim como toda a argumentação expendida pelas partes processuais, como linguagem-objeto”. In. ARAUJO, Clarice Von Oertzen de. Semiótica do Direito. São Paulo: Quartier, 2005, p. 24.

[2] Ciência que estuda os signos e os processos de significação.

[3] Em semiótica esse termo tem sentido de persuasão.

[4] OLIVEIRA. Carlos Alberto Álvaro. O Formalismo-valorativo no confronto com o Formalismo excessivo. Disponível em: http://www.ufrgs.br/ppgd/doutrina/CAO_O_Formalismo-valorativo_no_confronto_com_o_Formalismo_excessivo_290808.htm. Acesso em 2/6/2020.

[5] Mais sobre o tema em: SEGATTO. Antonio Ianni. Tese (doutorado). Wittgenstein e a questão da harmonia entre linguagem, pensamento e realidade. Orientador Luiz Henrique Lopes dos Santos. – São Paulo, 2011. 170 f. Disponível em: http://filosofia.fflch.usp.br/sites/filosofia.fflch.usp.br/files/posgraduacao/defesas/2011_docs/2011_doc_antonio_segatto.pdf. Acesso em 2/6/2020.

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  • é advogada, especialista em Processo Civil pela UNIRN, pós-graduanda em Direito Marítimo e Portuário pela Maritime Law Academy e membro da Comissão de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro da OAB-RN.

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