Contas à Vista

A ADPF 198, a unanimidade do Confaz e o federalismo fiscal brasileiro

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

9 de junho de 2020, 8h00

Spacca
Está em julgamento pelo sistema de Plenário Virtual do STF a ADPF 198, a qual se configura como um dos mais importantes casos para o federalismo fiscal brasileiro. Trata-se de uma ação proposta em 2009 pelo Governador do Distrito Federal alegando a não-recepção pela Constituição de 1988 da regra da unanimidade do Confaz (Lei Complementar 25/75, art. 2º, §2º). A principal alegação é que exigir votação unânime viola a regra da maioria, cerne do princípio democrático.

Observando a tramitação da ADPF 198 constata-se que a manifestação da Câmara dos Deputados foi meramente formal, mencionando que a norma está vigente. Já o Senado alegou que tal regra "privilegia a vontade da maioria" e que respeita o princípio republicano. A Presidência da República também se manifestou pela constitucionalidade das normas impugnadas, pois isso preserva a Federação contra a guerra fiscal. A AGU e o MPF também opinaram pela constitucionalidade das normas atacadas.

O voto da Relatora, Ministra Cármen Lúcia, cita diversos autores, este escriba dentre eles. Destaca-se o seguinte trecho:

Nessa limitação ao poder de tributar, circunscrita ao imposto sobre circulação de mercadorias e serviços, o princípio democrático, consubstanciado na exigência constitucional da al. g do inc. XII do § 2º do art. 155, afirma o primado do equilíbrio da unidade federativa, inadmitindo a exclusão ou o desfavorecimento de qualquer dos entes federados, o que seria incompatível com critérios majoritários ou juízos de proporcionalidade

Ao final vota pela improcedência da ação. Até o presente momento apenas o Ministro Fux se manifestou, seguindo o voto da Relatora.

A despeito de ter sido citado pela ilustre Relatora, o que muito me honra, ouso discordar de seu voto e da unanimidade das manifestações exaradas nos autos.

Como escrevi, "a lógica de federalismo cooperativo deve ter por escopo o desenvolvimento conjunto das unidades federadas, de modo que todos tenham iguais condições de participar das oportunidades apresentadas no jogo econômico e de poder, e não de concorrência predatória, o que pode descambar em guerra fiscal. Incumbe ao federalismo cooperativo a redução das desigualdades regionais, a fim de que as pessoas possam efetivamente ter maiores oportunidades para o desenvolvimento de suas capacidades, morem no Estado de Pernambuco ou no de Mato Grosso" 1. Porém isso não implica em concordar com a regra da unanimidade do Confaz.

A alínea "g" do inc. XII do § 2º do art. 155 determina a necessidade de lei complementar para "regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados". Observe-se que não há uma única palavra impondo que tal norma deva prever unanimidade dos entes federados. Trata-se de uma disposição que existe apenas na Lei Complementar 24/75, não sendo uma exigência constitucional.

A guerra fiscal é predatória e deve ser evitada, mas esta regra da unanimidade não condiz com o princípio democrático. Exigir unanimidade transforma voto em veto. Uma das mais importantes expressões da democracia é a aprovação de Emendas Constitucionais, que exige 3/5 (três quintos) dos votos do Congresso. Por qual motivo as decisões do Confaz devem ser aprovadas por unanimidade? Trata-se inegavelmente de um resquício do autoritarismo do período militar — vale lembrar que a referida Lei Complementar 24 é de 1975.

Isso implica em forte abalo ao federalismo fiscal brasileiro, pois acarreta que a desoneração do ICMS próprio do Estado do Piauí para incentivar a produção de castanha de caju necessita de anuência do Estado do Rio Grande do Sul, onde jamais se produziu essa fruta. Basta que um único Estado da Federação vote contra para que o benefício fiscal não seja concedido. Na prática isso é um poder de veto, e não de voto, e viola diretamente o princípio democrático e abala as estruturas federativas brasileiras.

Escrevi sobre isso anteriormente nesta ConJur (ver aqui e aqui), e em textos acadêmicos2. Regis Fernandes de Oliveira também segue a mesma trilha.3

Mencionei que, pela lógica da unanimidade, o Confaz se torna o dono do ICMS e não cada Estado individualmente considerado. O Confaz tem um papel de harmonização fiscal em um Estado Democrático de Direito, e não de coação fiscal, própria do período em que foi criado. Durante o autoritarismo a regra da unanimidade possuía uma lógica interna ao sistema; durante o período democrático esta norma não pode prosperar, pois não encontra amparo em nenhuma norma constitucional.

O fato é que, entre a propositura da ADPF 198 e os dias atuais, foi aprovada a Lei Complementar 160/17, que pacificou a guerra fiscal então existente ao afastar, de forma transitória, a regra da unanimidade do Confaz.

O art. 2º da Lei Complementar 160/17 previa a elaboração de um Convênio Confaz para a aprovação e ratificação dos benefícios já concedidos, com o voto favorável de, no mínimo:

  • I – 2/3 (dois terços) das unidades federadas; e
  • II – 1/3 (um terço) das unidades federadas integrantes de cada uma das 5 (cinco) regiões do País

Esse quórum federativo para deliberação foi extremamente positivo, pois permitiu a formação de maiorias nas Unidades federadas, sendo também observado o critério regional. Daí surgiu o Convênio 190/17, que, de certa forma, pôs fim à guerra fiscal. Apenas o Estado do Amazonas se insurgiu judicialmente contra essa fórmula, em debate na ADI nº 5902.

Essa foi uma solução legislativa para o problema existente. Pena que foi transitória, pois apenas o Convênio 190/17 pode ser votado sob o afastamento da regra da unanimidade do Confaz, que permanece hígida.

Agiria bem o STF ao reconhecer a não-recepção da regra da unanimidade do Confaz, pois é de clareza solar que viola o princípio democrático, modulando os efeitos do julgamento para data futura, permitindo que o Congresso discuta e vote uma norma perene, semelhante à que aprovou na Lei Complementar 160/17, art. 2º. Isso destravaria o federalismo fiscal brasileiro, aliviaria as pressões sobre o STF e daria outra dinâmica ao processo econômico.

Fica a sugestão.


1 Trecho utilizado pela Ministra Cármen Lúcia em seu voto. SCAFF, Fernando Facury. Royalties do petróleo, minério e energia: aspectos constitucionais, financeiros e tributários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 250

2 SCAFF, Fernando Facury. Guerra Fiscal e Súmula Vinculante: entre o Formalismo e o Realismo. ROCHA, Valdir de Oliveira. Grandes Questões Atuais do Direito Tributário, v. 18. São Paulo: Dialética, 2014. p. 90-115. SCAFF, Fernando Facury. A responsabilidade tributária e a inconstitucionalidade da guerra fiscal. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2011. v. 15, p. 43-60.

3 Oliveira, Regis Fernandes de. Exigência da unanimidade na concessão e estímulos fiscais e a constitucionalidade da LC 24/75, (Sanções para quem descumpre a glosa de créditos). In: Congresso Nacional de Estudos Tributários – Sistema Tributário Nacional e a Estabilidade da Federação brasileira, Alcides Jorge Costa et all. SP: Noeses, 2012, págs. 848/849.

Autores

  • é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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