Opinião

Projeto de Lei 1.179 engessa ainda mais o que já era bastante rígido

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8 de junho de 2020, 16h07

Entre as inovações introduzidas para regular as relações de Direito privado afetadas pela pandemia da Covid-19, o Projeto de Lei no 1.179/2020, recentemente aprovado pelo Congresso Nacional, estabeleceu que não "se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário". Embora fundada em propósitos legítimos, buscando conferir maior segurança e estabilidade aos contratos, a norma engessou a aplicação da onerosidade excessiva, tornando desnecessariamente rígido o regime contratual.

Chega a ser redundante afirmar que contratos servem para ser cumpridos. De fato, uma das bases fundamentais do Direito privado consiste em vincular as partes aos compromissos assumidos, existindo vários mecanismos criados justamente para compelir o obrigado a cumprir a prestação assumida, ou a punir o inadimplente. São altamente excepcionais as hipóteses nas quais se admite o descumprimento do contrato sem a aplicação das consequências legais cabíveis.

De forma subjacente a esse regime legal, existe o propósito de conferir segurança jurídica ao tráfego negocial, proporcionando estabilidade às relações econômicas. Para a circulação de riquezas e a prosperidade econômica, é fundamental que as atividades empresariais se desenvolvam a partir de sistema sólido e confiável, tendo os agentes econômicos segurança quanto ao caráter vinculativo dos contratos.

Como contraponto à segurança do tráfego negocial, existem situações específicas nas quais o cumprimento da obrigação é inviável. São hipóteses de fortes abalos, nas quais a prestação contratual se torna inviável ou excessivamente custosa, tais como se verifica em catástrofes naturais ou abalos drásticos na conjuntura econômica.

O Direito Civil trata especificamente das prestações altamente custosas por meio da chamada onerosidade excessiva (artigos 478 a 480 do Código Civil). Em linhas gerais, esse mecanismo possibilita o encerramento do contrato sem quaisquer punições à parte inadimplente, desde que observadas determinadas condições. Cria-se verdadeira válvula de escape para situações de descumprimento contratual, para impedir que o contratante seja punido quando a prestação se tornou custosa a ponto se tornar impraticável.

Por estabelecer consequência excepcional, a onerosidade excessiva apenas pode ser aplicada em situações excepcionais, dependendo da ocorrência de prestação excessivamente onerosa, extrema vantagem para o outro contratante, e de "acontecimentos extraordinários e imprevisíveis". São raras as situações nas quais esses requisitos se verificam de forma concomitante.

É justamente nesse ponto em que o PL recentemente aprovado falha. Ao impedir que a onerosidade excessiva seja aplicada em casos de "aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário", a norma parte do pressuposto de que a instabilidade econômica, em certa medida, integra o contexto histórico da sociedade brasileira. Logo, o contratante não pode se furtar ao cumprimento do contrato alegando, por exemplo, que a prestação contratual se tornou inviável pela alta da inflação ou pelo aumento do dólar.

Sem prejuízo dos saudáveis ares de liberalismo que pretende conferir ao Direito contratual, e do apoio que confere à segurança jurídica, a norma exagerou na medida. Por mais que muitas das variações econômicas sejam parte da lógica negocial, não podendo ser consideradas extraordinárias ou imprevisíveis pelo contratante, é equivocado criar uma regra absoluta e imutável a esse respeito, sem permitir que o juiz sopese as situações do caso concreto.

Dentro do regime do PL, situações de verdadeira catástrofe econômica não conferem margem para o afastamento de penalidades pelo descumprimento contratual. Mesmo que se verificassem níveis extremos de recessão ou inflação, ou ainda que houvesse a inimaginável alteração da moeda nacional após décadas de estabilidade, os contratantes permaneceriam vinculados às respectivas obrigações.

Em última análise, o PL retirou do juiz a já limitada e salutar margem para analisar a aplicação da norma diante das circunstâncias do caso concreto, sem perceber que situações de "aumento da inflação", "variação cambial", "desvalorização" ou "substituição do padrão monetário" não são estanques, podendo atingir graus diversos de repercussão nas partes. Em suma, engessou-se ainda mais algo já bastante rígido.

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