Direito Civil Atual

As assembleias virtuais temporárias no direito de empresa durante a quarentena

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8 de junho de 2020, 16h18

O presente ensaio se dedica ao conjunto de dispositivos legislativos e executivos instaurados temporariamente em decorrência da pandemia de Covid-19, os quais afetam o regime dos conclaves das sociedades anônimas, limitadas e cooperativas. Em especial, aborda o Projeto de Lei do Senado nº 1.179, de 2020, denominado Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), durante o período da pandemia do novo coronavírus;[2] a Medida Provisória n.º 931, de 2020 — Funcionamento das assembleias de sócio e votação a distância[3]; e a Instrução Normativa DREI n.º 79, de 14 de abril de 2020[4].

ConJur
O exame das alterações legislativas para realização das assembleias das pessoas jurídicas de direito privado, objeto deste artigo, considera: (i) os propósitos do Regime Jurídico Emergencial e Transitório do PL 1.179/2020; (ii) as modificações introduzidas pela Medida Provisória 931/2020 nas leis de regência das sociedades empresariais e cooperativas, e as consequentes instruções normativas dos órgãos reguladores; (iii) as novas modalidades de assembleias quanto a participação e voto dos acionistas, sócios e associados; e, por fim, (iv) os pontos de encontro e desencontro entre as novas regulamentações de assembleias e reuniões de sociedades e cooperativas.

1. O Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Pessoas Jurídicas de Direito Privado — Projeto de Lei n.º 1.179, de 2020.

Após tramitar no Congresso Nacional, o Substitutivo da Câmara dos Deputados do Projeto de Lei nº 1.179/2020, cuja texto inicial é de autoria do Senador Antonio Anastasia (PSD/MG), foi remetido no dia 21 de maio de 2020 à sanção presidencial. Em sua própria redação, lê-se que o Projeto de Lei “institui normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de direito privado em virtude da pandemia da Covid-19; e altera a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018[5].

Períodos tão desafiadores como atual, de pandemia e isolamento social, exigem que atenção seja despendida não só a indivíduos, mas também a empresas, cooperativas, associações e fundações, as quais devem se adequar rapidamente a condições excepcionais e adversas.

A primeira orientação no Artigo 4º do RJET é relacionada à incolumidade dos partícipes em conclaves presenciais, exigindo que as recomendações sanitárias das autoridades locais sejam respeitadas. Em seguida, o art. 5º do referido texto legislativo, permite que as deliberações possam ser realizadas por meios eletrônicos e independentemente de previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica. Finalmente, o Projeto de Lei também admite que o administrador seja o personagem responsável por indicar o meio eletrônico para participação e o exercício do direito a voto nos conclaves, de maneira que lhe é oferecido maior protagonismo na condução das reuniões e assembleias.

Assim, o Projeto de Lei criou condições para que, em meio às mudanças ocasionadas pela pandemia, as deliberações dos órgãos das pessoas jurídicas tão somente não deixassem de ocorrer. As novas dinâmicas e ferramentas diferem daquelas que operam há décadas no país, mas a promissora lei pretende atender àqueles que desejem continuar operantes apesar do isolamento social. Incentiva, ainda, a atualização dos atos constitutivos para período pós-pandêmico, em um cenário otimista de a vigência da lei não se limitar até o dia 30 de outubro, de 2020.

2. Alterações da Medida Provisória n.º 931, de 2020.

Entrementes a tramitação do Projeto de Lei no Senado Federal e o início da tramitação na Câmara dos Deputados, o Poder Executivo editou a MP n.º 931, de 30 de março 2020.[6] Ela disciplina as modalidades de deliberações das sociedades anônimas, da sociedade limitada, e a sociedade cooperativa, deixando de regular as outras pessoas jurídicas de direito privado — associações e fundações.

Impera-se frisar que a Medida Provisória estabeleceu regras em duas categorias distintas: algumas possuem vigência temporária, e outras possuem intuito de eficácia permanente, caso venham a ser aprovadas pelo Congresso Nacional.

Os comandos normativos com caráter temporário da MP 931/2020 foram responsáveis por ampliar os prazos de diversas obrigações da sociedade anônima, limitada e cooperativas.

Especificamente em relação a mudanças atinentes a reuniões assemblares, a que se dedica esse ensaio, permitiu-se às Sociedades Anônimas — e tão somente a elas — que o Conselho de Administração delibere, ad referendum, assuntos urgentes de competência da Assembleia Geral e que o Conselho de Administração ou a Diretoria, independente de reforma estatutária, declare os dividendos nos termos do art. 204 da Lei das Sociedades Anônimas. Percebe-se que, o legislador não poupou esforços para afastar entraves burocráticos, viabilizar a gestão e propiciar flexibilidade dos atos societários, a despeito das restrições impostas pela pandemia.

Já em caráter permanente, a MP 931/2020 inovou  ao introduzir novas regras em três diplomas legislativos diferentes: no Código Civil (art. 1.80-A), na Lei das Sociedades Anônimas (alterações no art. 121, §§ 1.o e 2.o, § 2.o-A, e revogando o parágrafo único), e na Lei das Cooperativas (o art. 43-A). Com essas mudanças, seria facultado às sociedades anônimas, às sociedades limitadas e às cooperativas “a participação e o voto do sócio e do associado à distância”.

Além dessas marcas diretas no funcionamento e no regramento de diferentes sociedades, a Medida Provisória ainda desencadeou atuações de diversos órgãos reguladores, cujas consequências práticas na condução das pessoas jurídicas são sensíveis. Foi em razão da MP 931/2020 que o DREI (Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração) editou a Instrução Normativa nº 79, de 14 de abril de 2020,[7] a fim de disciplinar a forma de participação à distância das reuniões e assembleias das sociedades anônimas fechadas, sociedades limitadas e cooperativas.  Ainda, com o mesmo intuito de regulador, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) editou a Instrução CVM nº 622, de 17 de abril de 2020, disciplinando as assembleias de sociedades anônimas de capital aberto.

Nota-se, portanto, que a Medida Provisória editada pelo Poder Executivo, paralela ao Projeto de Lei nº 1.179/2020, também tomou como preocupação a atividade empresarial e o funcionamento das assembleias de pessoas jurídicas.

3. As novas modalidades de realização de assembleias.          

Como apresentado, por força da MP nº 931, de 2020 e consequentes regulamentações dos órgãos reguladores competentes (DREI e a CVM), mencionadas acima, diferentes modalidades de assembleias tornaram-se possíveis às sociedades e cooperativas. A depender dos atos constitutivos, agora elas poderão ser realizadas em três modalidades, no que se refere aos meios de participação dos sócios, acionistas ou associados:

a) Presencial: formato tradicional, em que os acionistas, sócios ou associados comparecem presencialmente à assembleia ou reunião, desde que respeitem as determinações sanitárias das autoridades locais;     

b) Semipresencial (Parcialmente digital): permite que os acionistas, sócios ou associados, participem e votem na assembleia ou reunião tanto presencialmente como à distância, mediante o envio de boletim de voto à distância e/ou comparecimento por meio eletrônico;      

c) Digital (assembleia virtual): permite que os acionistas, sócios ou associados participem e votem na assembleia exclusivamente de forma digital, mediante o envio de boletim de voto à distância e/ou comparecimento remoto por meio eletrônico.

Importante notar que apesar de haver novidades nas modalidades de assembleia, os atores privados ainda devem atender e seguir as regras, regulamentações, e sobretudo os atos constitutivos em sua integralidade, no que se refere à convocação, à instalação e à deliberação de assembleias, pois eles permanecem obrigatórios.

4. Convergências e divergências entre o PL 1.179/2020, a MP 931/2020 e a IN DREI 79/2020.

Uma tríade de dispositivos destinados a regular o mesmo assunto, forjada em tempos de crise e para tempos de crise, e cujos efeitos produzem consequências práticas de maneira rápida, senão imediata. Não surpreende que a comunidade jurídica aponta para possíveis antinomias aparentes e alerta para os desdobramentos sensíveis que podem surgir caso a técnica normativa não seja evocada.

É o caso do atento Prof.º Marcelo Vieira von Adamek,[8] ao frisar que a redação da MP 931/2020 não coincide com as modalidades de conclaves disciplinados na IN DREI 79/2020. O ponto levantado pelo comercialista é de extrema relevância para o ordenamento jurídico, uma vez que atinge o próprio fundamento de validade da normativa do órgão regulador.

Explico, o texto da MP 931/2020 prevê somente a faculdade de participação e voto à distância, para sociedades limitadas, para sociedades anônimas fechadas e para sociedades cooperativas.  Já o termo assembleia digital foi utilizado pela Medida Provisória exclusivamente para a sociedade anônima de capital aberto. Denotou-se, então, que as opções de participação e voto à distância diferem de assembleia digital.

No entanto, o parágrafo segundo do artigo 1o da IN DREI 79/2020 não se restringe a permitir a participação e o exercício do voto à distância dos acionistas, sócios ou associados mediante o boletim de voto à distância (BVD), como era autorizado pela Media Provisória para as pessoas jurídicas que ele regula. A Instrução Normativa vai além e elenca que essa participação poderá ser realizada também mediante atuação remota, via sistema eletrônico como modalidade de assembleia digital (ou virtual) — opção restringida na redação da MP 931/2020 exclusivamente para as Sociedade Anônimas de Capital Aberto, cuja competência regulatória é da CVM.

Com efeito, o dispositivo da Medida Provisória, ao permitir a faculdade de participação e do voto à distância, não estaria autorizando que as sociedades anônimas fechadas, as limitadas e as cooperativas realizassem seus conclaves na modalidade digital. Assim, o dispositivo do DREI que dispôs justamente essa hipótese não possuiria validade.

E não é só. Outro ponto a ser discutido é a obrigatoriedade de previsão nos atos constitutivos das modalidades de participação e de exercício do voto à distância para que sejam válidos. Apesar de a MP 931/2020 não afastar a necessidade da modalidade de participação estar prevista nos estatutos e contratos sociais, o caput do art. 5.o do PL 1.179/2020 vai exatamente no sentido contrário e permite a realização de assembleia por meio eletrônico, independentemente de previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica.

Ainda, vale apontar que o art. 4.o, do PL 1.179/2020 não limita aplicação às sociedades empresárias, abrangendo as associações e fundações. Assim, admite-se que estas modalidades de meios eletrônicos (semipresencial e exclusivamente digital) também possam ser aplicadas para as pessoas jurídicas sem fins lucrativos, mesmo que não haja qualquer previsão estatutária neste sentido.

Por fim, há que se colocar em questão a atuação dos administradores das sociedades, e o poder que as normativas lhes conferiram. O parágrafo único do Art. 5º do PL 1.179/2020 elege o administrador, e ele tão somente, para indicar o meio eletrônico de manifestação dos partícipes nos conclaves. Somada a essa atribuição, está a ampliação dos mandatos dos administradores autorizada pela MP 931/2020 e as respectivas regulamentações do DREI e da CVM, chegando ao resultado de que o administrador, sem necessidade de consulta a qualquer sócio ou órgão, pode decidir ou não convocar os conclaves e conduzi-los pelo meio eletrônico que ele mesmo selecionar. Lembre-se que, esses conclaves, por sua vez, poderão deliberar reformas nos estatutos e contratos sociais e destituir administradores, exemplificativamente.

Postas essas problemáticas, o núcleo das primeiras reflexões apontadas neste ensaio não é o de repúdio. Ao contrário. O fato de atores legislativos, executivos e reguladores estarem engajados e atentos às necessidades da disciplina empresarial perante a pandemia da Covid-19 é animador; e a possibilidade das Pessoas Jurídicas de Direito Privado poderem dar continuidade a suas atividades e deliberações mesmo com o regime de isolamento social é promissora.

O ordenamento jurídico brasileiro, com a MP 931/2020, a IN DREI 79/2020 e a esperada sanção do PL 1.179/2020, acertou ao garantir a acionistas, sócios e associados que as deliberações dos órgãos de gestão mantenham suas atividades na pandemia, utilizando-se dos meios eletrônicos. O único ponto negativo a ser levantado nesse momento, no entanto, é que o cenário promissor desenhado pelo trio aqui analisado possui, até então, data marcada para terminar: outubro de 2020.

Para que isso não aconteça, o que se espera desse período, das inovações legislativas e das novas modalidades de realização dos conclaves é que elas ultrapassem o período já determinado, demostrando que novas tecnologias e reuniões virtuais oferecem benefícios para além do enfrentamento à pandemia. A expectativa é de que comodidade, facilidade de acesso e tecnologias de comunicação instantânea de qualidade façam com que assembleias virtuais e participação à distância venham a incorporar os atos constitutivos das pessoas jurídicas de direito privado de forma permanente, mesmo após a vigência das regras transitórias.

Assim, uma vez sancionado o PL 1179/2020, e por força da Medida Provisória e da Instrução Normativa, será cumprido o propósito de minimizar os efeitos desencadeados pelo estado de calamidade social e econômica que afeta o país, e de garantir condições jurídicas seguras para enfrentar crises. Tudo isso com soluções flexíveis e inovadoras, as quais podem abrir um novo e estimulante caminho para empresários, administradores, sócios e reguladores, e cuja extinção esperamos que não seja definida por algo tão súbito, e esperançosamente próximo, que é a cura do coronavírus.

[3] Medida Provisória n.º 931, de 30 de março de 2020, altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, a Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971 – Lei das Cooperativas, e a Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 – Lei das Sociedades Anônimas, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv931.htm.

[4] A Instrução Normativa DREI NO 79, de 14 de abril de 2020, dispõe sobre a participação e votação a distância em reuniões e assembleias de sociedades anônimas fechadas, limitadas e cooperativas.             Disponível em:   http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-drei-n-79-de-14-de-abril-de-2020-252498337

[5] Trecho extraído do Projeto de Lei nº 1179, de 2020 (Substitutivo da Câmara dos Deputados). Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141962.

[7] A Instrução Normativa DREI NO 79, de 14 de abril de 2020, dispõe sobre a participação e votação a distância em reuniões e assembleias de sociedades anônimas fechadas, limitadas e cooperativas.             Disponível em:   http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-drei-n-79-de-14-de-abril-de-2020-252498337.

[8] “Com efeito, a interpretação sistemática da MP 931/2020, feita a partir do confronto e da análise conjunta de seus diversos comandos, revela que “assembleia digital” é hipótese prevista apenas para sociedades anônimas de capital aberto (no contexto do novo § 2°-A introduzido no art. 124 da Lei das S/A); para os demais tipos societários, o que se contemplou, apenas, foi “participar e votar à distância”, modalidade essa também prevista para as companhias abertas. Ora, se o legislador distinguiu – “assembleia digital” e “participar e votar à distância” – é seguramente porque são hipóteses distintas, ou então a distinção não faria sentido algum.” ADAMEK, Marcelo. Companhias abertas à parte, assembleias virtuais são realidade no Brasil? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-02/direito-civil-atualas-assembleias-virtuais-sao-realidade-direito-societario-brasileiro.

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