Opinião

'Pai, afasta de mim o tal poder moderador!'

Autor

  • Allan Thiago Barbosa Arakaki

    é promotor de Justiça do MPMS mestre em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e especialista em Direito Público pela Uniderp/Anhanguera e em Ciências Criminais e Segurança Pública pela Faculdade Cers.

8 de junho de 2020, 11h11

Em 28 de maio, na ConJur, o eminente jurista e professor Ives Gandra da Silva Martins publicou um artigo bem fundamentado em que imprime interpretação do artigo 142 da Constituição Federal para se conceber a existência do poder moderador. Destaca, para tanto, que, ao aludir à defesa da lei e da ordem, franqueia o texto constitucional a qualquer poder, acaso se sinta solapado de suas atribuições constitucionais, solicitar a atuação das Forças Armadas como poder moderador "para repor, naquele ponto, a lei e a ordem" [1].

Com a devida venia ao pensamento do douto jurista, não há como prosperar tal visão sob a égide da Constituição Cidadã. Com efeito, esta não faz referência à existência de nenhum outro poder, exceto o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, compreendidos como independentes e harmônicos (artigo 2º), daí porque não há como reconhecer outro.

Veja-se, ad argumentandum, que admitir a existência de um poder não explicitado pela Carta da República geraria verdadeiro caos sistêmico. Acaso fosse possível, demais órgãos de alta envergadura, como, por exemplo, o Ministério Público e o Tribunal de Contas, ante a nobre função fiscalizatória, com independência funcional de seus membros, deveriam ser alçados igualmente a poder, o que evidentemente não encontraria guarida constitucional. A função de um órgão, portanto, por mais nobre e relevante que seja, não endossa elevá-lo a poder, eis que os poderes já foram devidamente erigidos e individualizados pelo constituinte originário.

Ademais, é preciso que se tenha cautela extrema ao se cogitar do poder moderador. Isso porque, muito embora inexistente nas Cartas Republicanas que se sucederam no constitucionalismo brasileiro, havia sua previsão na Constituição Política do Império do Brazil (1824), outorgada pelo imperador Dom Pedro I.

Nela, consoante o artigo 10, enunciavam-se expressamente quatro poderes: Legislativo, Moderador, Executivo e Judicial. Cabia ao imperador privativamente o poder moderador, com o qual poderia nomear senadores, convocar Assembleia Geral extraordinariamente, sancionar decretos e resoluções da Assembleia Geral, aprovar e suspender as resoluções dos Conselhos provinciais, prorrogar ou adiar a Assembleia Geral e dissolver a Câmara dos Deputados, bem como convocar outra que a substituísse, nomear e demitir ministros de Estado, suspender magistrados, perdoar e moderar penas impostas a réus condenados por sentença e conceder anistia (artigo 101).

Destaque-se que a própria Carta de 1824 fora "marcada pelo centralismo administrativo e político tendo como agente o poder moderador" [2], o qual possuía atribuições nitidamente interventoras. Aliás, a própria definição daquele apregoava-o como "chave de toda organização política", delegando o seu exercício ao imperador como chefe supremo da nação e primeiro representante, para que velasse sobre a manutenção da independência, o equilíbrio e a harmonia dos demais poderes. Além disso, tornava o respectivo titular inviolável e sagrado (artigo 99), refratando a fórmula The King can do no wrong.

É de se ver que há um hiato intransponível entre o poder moderador, nascido nas reminiscências imperiais, e a República, cujo sacramento se balizou na tripartição de poderes, ligados pela harmonia e independência. Muito embora a história do constitucionalismo brasileiro seja permeada por períodos de exceção, não se ressuscitou, frise-se, em nenhuma das Constituições republicanas tal poder. Assim sendo, inexiste como conceber, sob os ventos republicanos e democráticos, a atuação de qualquer órgão estatal como poder moderador, cuja previsão não encontra eco legal ou constitucional.

Conveniente esclarecer que o artigo 142, caput, da atual Carta Cidadã atribui às Forças Armadas a defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. A leitura do enunciado, porém, não compreende a atuação como ente moderador, censor ou pacificador entre demais poderes, no meio do conflito de atribuições constitucionais destes.

O doutro professor, no artigo publicado, aduziu que, se o conflito e a invasão de competências constitucionais entre poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) envolvesse diretamente o Executivo federal, caberia não ao presidente, interessado na questão, mas aos comandantes das Forças Armadas o exercício do poder moderador para retificar onde guarnecesse o excesso [3].

Discorda-se novamente em tal ponto, posto que o artigo 142, caput, da CF confere a autoridade suprema das Forças Armadas ao presidente da República, destacando que o regime castrense se peculiariza pela hierarquia e disciplina. Ora, os comandantes das Forças Armadas se encontram em subordinação ao chefe do Executivo federal, não podendo, por conseguinte, ser titulares do exercício de um poder. Nesse eito, jamais haveria espaço ao exercício de outra função paralela, não prevista constitucionalmente e que influenciasse nos misteres de outros poderes, possuidores de substrato constitucional, sob pena de ofensa ao artigo 2º da CF/88.

Conveniente esclarecer, de igual forma, que a atuação das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem não é um cheque em branco. Nesse contexto, admitir que aquelas possam atuar como poder moderador nas invasões de competências constitucionais gera inevitáveis questões: a quem caberia avaliar a existência de um agir excessivo de um poder? Às próprias Forças Armadas, que são subordinadas ao Poder Executivo federal? O Poder Executivo, cuja função típica é administrar, julgaria o conflito entre Legislativo e Judiciário em que um alegue excessos no exercício das funções constitucionais do outro? Enfim, pensa-se que não se sustenta a tese defendida à luz da interpretação sistêmica da Carta Maior.

Não se pode olvidar que o artigo 15, caput, da LC nº 97/99 estatui a possibilidade do emprego das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem, sob a responsabilidade do presidente da República. Além disso, imperioso destacar que a empregabilidade daquelas decorre de decisão presidencial (artigo 15, §1º, LC nº 97/99), cuja competência é exclusiva (artigo 2º, caput, do Decreto nº 3.897/2001). O presidente da República, de igual forma, fixará diretrizes para a atuação das Forças Armadas quando for justificada na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes (artigo 15 §2º, LC nº 97/99).

A atuação das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem ocorre, por conseguinte, em virtude de questões atinentes à segurança pública e de forma excepcional e pontual: "Só subsidiária e eventualmente incumbe a defesa da lei e da ordem, porque essa defesa é de competência primária das forças de segurança pública" [4].

É crucial interpretar a Constituição Federal observando sua unidade e coerência [5]. Caracterizada por ser dogmática e analítica [6], nela se encontram diversos direitos e deveres, indo muito além da mera definição da organização política do Estado.

Sob esse prisma, a prolixidade da Carta Maior e a expansão da jurisdição constitucional redimensionaram o significado da interpretação constitucional [7], máxime em tempos de pós-modernidade baumaniana [8], caracterizada pelo dinamismo e pela liquidez das relações sociais. Ao tempo em que se sedimentaram diversos direitos constitucionalmente, sacralizou o princípio da inafastabilidade da jurisdição e a Corte Suprema como guardiã da Constituição.

Os contornos definidos pela Carta da República permitiram o acesso à jurisdição plena, veiculando nos pleitos submetidos ao Judiciário os mais diversos direitos. Dada a prolixidade, muitos assuntos se constitucionalizaram [9], desde a possibilidade de cobrança da Cosip na fatura de consumo de energia elétrica (artigo 149-A, caput, CF) e o fato de o Colégio Pedro II ser mantido na órbita federal (artigo 242, §2º, CF) até pontos de maior envergadura, como os direitos fundamentais e a organização do Estado.

Premido dessa ideia, ecoa clarividente que o Judiciário, no exercício de seu mister, ao julgar, diante da densidade normativa do texto constitucional, implicará por vezes efeitos em atos que aparentemente pertenceriam a outros poderes. Por expressa vocação, é papel do Judiciário julgar os atos que lhe são submetidos e, ao fazê-lo, seja de um modo ou de outro, receberá críticas, sobretudo, quando houver conflito entre os poderes.

Sucede que o inconformismo das interpretações adotadas nas decisões judiciais, por parte dos demais poderes, não pode fundamentar posições abruptas à normalidade institucional e muito menos o afastamento dos ditames da Constituição Federal, viga do ordenamento jurídico. Ao contrário, nela se alicerça o Farol de Alexandria que alumia a sociedade, cabendo, por conseguinte, aos poderes sua estrita observância e obediência.

A divergência entre a atuação dos poderes refrata inegável pluralismo de ideias, inerente ao jogo democrático, e os atritos gerados, por seu turno, possibilitam o amadurecimento institucional que decorre da época de crises. Porém, o descontentamento sempre deve ser dirimido dentro do compasso constitucional, o qual lega ao Judiciário, mais especificamente ao Supremo Tribunal Federal, o papel de guardião da Carta Democrática, possuidora de contornos plurais, densa em direitos e fecunda de projeções.

Não há fresta constitucional, portanto, com a devida venia, apta a permitir que as Forças Armadas ou o Executivo analisem divergências sobre invasões de atribuições constitucionais dos poderes e muito menos poder moderador. Ademais, judicializada a questão e julgado eventual conflito nesse contexto pelo Judiciário, a deliberação, bem ou mal, deve ser respeitada, porquanto o acatamento aos provimentos judiciais é fundamento basilar civilizacional. Enfim, adaptando Chico Buarque à realidade, apregoa-se: "Pai, afasta de mim o tal poder moderador!".

 


[1] MARTINS, Ives Gandra. "Cabe às forças armadas moderar os conflitos entre os poderes". Publicado em 28/05/2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/ives-gandra-artigo-142-constituicao-brasileira Acesso em 30/5/2020.

[2] ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrado. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 91

[3] MARTINS, Ives Gandra. Ibidem.

[4] SILVA. José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 784.

[5] CALLEJÓN, Francisco Balaguer. A projeção da Constituição sobre o ordenamento jurídico. São Paulo: Saraiva, 2014.

[6] MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

[7] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

[8] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

[9] BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit.

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    é promotor de Justiça do MPMS, mestre em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e especialista em Direito Público pela Uniderp/Anhanguera e em Ciências Criminais e Segurança Pública pela Faculdade Cers.

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