Segunda leitura

Pedido de refúgio de estrangeiro não suspende processo de extradição

Autores

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

  • Bernardo de Almeida Tannuri Laferté

    é coordenador-geral do Comitê Nacional para os Refugiados do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

7 de junho de 2020, 10h37

Spacca
O Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados, celebrada em 1951, conhecida como Convenção de Genebra de 1951, e, subsequentemente, editou a Lei nº 9.474, de 1997, que trata da matéria, que permite aos imigrantes que procuram abrigo em nosso país a possibilidade de formular solicitação de reconhecimento da condição de refugiado.

Para tanto, nos termos do art. 1º, o pedido deve ser feito em razão de fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país, inclusive por ele encontrar-se em situação de grave e generalizada violação de direitos humanos.

A extradição, que nada tem a ver com o refúgio, pode ser definida como uma “medida de cooperação internacional entre o Estado brasileiro e outro Estado pela qual se concede ou solicita a entrega de pessoa sobre quem recaia condenação criminal definitiva ou para fins de instrução de processo penal em curso” e está prevista nos artigos 81 e seguintes da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. A extradição é analisada e decidida pelo Supremo Tribunal Federal, conforme art.102, I, alínea “g”, da Constituição Federal.

Na Lei de Refúgio, o legislador brasileiro adotou o princípio da não devolução, consagrado no Direito Internacional, através do qual, segundo Susen Leite, “os países estão proibidos de expulsar uma pessoa para um território onde possa estar exposta à perseguição.i

O artigo 34 da Lei nº 9.474, de 1997 dispõe que a “solicitação de refúgio suspenderá, até decisão definitiva, qualquer processo de extradição pendente, em fase administrativa ou judicial, baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio”. Pode-se dizer que seria a materialização, em lei, dos princípios da concessão de asilo político e da prevalência dos direitos humanos, tratados no art. 4º de nossa Constituição. No entanto, isto fez com que o número de pedidos de refúgio tivesse um aumento significativo, parte deles com finalidade diversa da perseguida na Convenção de 1951.

Nos últimos anos o mundo voltou os olhos ao refúgio, não apenas pelo conflito no território sírio e a diáspora para a Europa, mas também pela eclosão de outros conflitos na África e a deterioração da situação econômica e social na Venezuela. O Brasil não ficou ao largo desse assunto, tendo disparado, ano a ano, as solicitações de reconhecimento da condição de refugiado formuladas ao nosso país. Nada de errado nisto. Nosso país recebeu gente de todos os continentes que aqui vive em harmonia.

Mas, por força do art. 34 da Lei do Refúgio, cada vez de forma mais frequente, tem o STF se deparado com suspensão de processo de extradição por ter sido requerido refúgio pelo extraditando.

Tal realidade acaba impondo situações das mais diversas. Há casos em que o extraditando entra com o requerimento de pedido administrativo junto à Polícia Federal às vésperas do julgamento da extradição, em um, inclusive, o extraditando deu início ao processo de refúgio após a publicação do Acórdão do STF que deferiu a extradição.

Fácil é ver que referidos pedidos desviam-se da nobre finalidade da Lei do Refúgio e são utilizados como estratégia de defesa por estrangeiros condenados por graves crimes comuns em seus países de origem. Por tal motivo, é preciso identificar tais requerimentos, a fim de que não se confundam com aqueles que traduzem legítimos anseios de verdadeiros refugiados.

A primeira questão que se impõe é a análise do ordenamento jurídico brasileiro, sob a ótica da hierarquia das leis. E aqui é imperativo lembrar que, em tese, seria possível argumentar que a mera solicitação de reconhecimento da condição de refugiado obstaria o seguimento de processo extradicional. Entretanto, sabidamente deve ser evitada a interpretação gramatical do texto e a lição de Carlos Maximiliano: “Nada de exclusivo apego aos vocábulos. O dever do juiz não é aplicar os parágrafos isolados, e, sim, os princípios jurídicos em boa hora cristalizados em normas positivas”.ii

Além disto, a condição de refugiado é matéria de ordem pública, podendo ser analisada pelo Poder Judiciário, no caso a Suprema Corte de Justiça, a qualquer momento. No próprio processo de extradição no STF pode-se verificar a presença dos requisitos necessários para o reconhecimento da condição de refugiado, inclusive as hipóteses de aplicação do princípio da não devolução. Óbvio que esta é uma análise perfunctória e destinada a evitar fraudes. Por exemplo, pedir refúgio enquanto tramita o processo de extradição pode, em certas situações, ser uma burla tão notória que não dependa de prova (CPC (art. 374, I).

Se assim não fosse, a competência para analisar e decidir extradições, expressamente conferida pela Constituição ao STF (art. 102, I), estaria sendo retirada deste órgão máximo da jurisdição nacional para passar a uma manifestação de vontade do extraditando. E aí encaixa-se como uma luva o brocardo: “Adote-se a interpretação que evite o absurdo”. iii

Ainda, estaria o STF impedido de analisar e decidir sobre a natureza do crime atribuído ao extraditando, ou seja, se o caso é de crime político ou crime comum, além de outras questões atinentes ao processo de extradição. Ao fim e ao cabo, seria a admissão de que a lei infraconstitucional poderia afastar, suprimir ou mitigar a competência conferida pelo texto constitucional à Corte.

Desta maneira, entende-se que a Lei nº 9.474, de 1997, deve ser interpretada conforme a Constituição, pois não pode o legislador infraconstitucional afastar competência conferida ao STF diretamente pelo texto constitucional, reiterando que o ordenamento jurídico deve ser interpretado de forma harmônica, utilizando os conceitos de proporcionalidade e de regras de ponderação propostos por Robert Alexy, mormente o primeiro deles, a Adequação.iv

Sobre a possibilidade de valer-se do princípio da adequação, registra-se que o conteúdo emanado dos artigos 33 e 34 da Lei nº 9.474, de 1997 são princípios jurídicos e não regras, razão pela qual comportam ponderações. Observa-se que o conteúdo dos citados artigos, ou seja, a determinação da sustação do processo extradicional sem qualquer tipo de análise ou critério, leva a crer, s.m.j., que o meio empregado para atingir a finalidade não é adequado para a finalidade do princípio e ainda produz interferências em outros princípios. Na situação em questão, o meio corresponderia à sustação do processo extradicional.

Ainda sobre a aplicação da adequação na interpretação dos artigos 33 e 34 da Lei nº 9.474, de 1997, recorda-se outro elemento prático do sistema extradicional adotado pelo Brasil, bem como do sistema de refúgio, como estão postos em nosso ordenamento jurídico.Registre, também, que ambas as decisões finais dos processos – autorização de entrega, no âmbito da extradição, e reconhecimento da condição de refugiado – são inerentes e privativas do Poder Executivo Federal, e ambas estão incluídas na competência do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Nelas sobressai-se a função do Secretários Nacional de Justiça, que pode agir por delegação na primeira e como presidente Comitê Nacional para os Refugiados (Conare, órgão responsável para decidir sobre a condição de refugiado) na segunda.

Portanto, na prática, a autoridade competente para autorizar a entrega é exatamente a mesma que dispõe da presidência do Conare, o que demonstra harmonia em nosso ordenamento jurídico e evita decisões antagônicas ou contraditórias do Poder Executivo Federal em um mesmo caso concreto.

Neste sentido entende o STF que, muito embora sendo o órgão que admite a extradição de cidadão estrangeiro, reconhece que o ato que autoriza a entrega cabe ao Poder Executivo Federal, o mesmo responsável por analisar e declarar o reconhecimento da condição de refugiado no Brasil.

Isto ficou bem claro no processo de Extradição 1.085, do nacional italiano Cesare Battisti (Ext 1.085-DF).v O direito ao refúgio foi concedido pelo Poder Executivo, porém declarado nulo pelo STF, que considerou os delitos praticados pelo extraditando crimes comuns e não políticos e deferiu o pedido de extradição feito pela Itália. Entretanto, reconheceu a Corte Supremavi que o ato de autorização de entrega é um ato de soberania da República Federativa do Brasil, exercido pelo Chefe do Poder Executivo Federal.

Isto posto, pelo raciocínio adotado afigura-se inadequado afastar a jurisdição do STF, pela simples solicitação de reconhecimento da condição de refugiado. A melhor solução é a intermediária, ou seja, enquanto não analisada a decisão sobre o reconhecimento da condição de refugiado pelo Conare, fique suspensa apenas a autorização de entrega do estrangeiro ao país de origem. Se o Conare lhe negar o direito ao refúgio, ele será entregue às autoridades estrangeiras. Se lhe for concedido refúgio, ele poderá permanecer no Brasil, mesmo que tenha sido decretada a sua extradição.

Tal conclusão resguardará a competência originária do STF atribuída pela Carta Magna e dará ao processo de extradição maior efetividade, exatamente como recomenda o princípio da eficiência administrativa previsto no art. 37 da Constituição.

Ademais, será um passo à frente para poupar o Brasil da descrença dos países com os quis celebramos Tratados de Extradição, fato este exteriorizado com clareza no 4º Capítulo da série italiana “O Processo”,vii expondo-nos de forma vergonhosa.


i LEITE, Susen Quelle A. F. Leite. O princípio de non-refoulement (não-devolução) x refugiados humanitários. Jus.Com. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51131/o-principio-de-non-refoulement-nao-devolucao-x-refugiados-humanitarios#:~:text=Dentre%20as%20normas%20imperativas%2C%20encontra,possa%20estar%20exposta%20%C3%A0%20persegui%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 5/6/2020.

ii MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 9ª. ed., 1981, p. 119.

iii Interpretatio illa sumenda quae absurdum evitetur.

iv ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 111-115.

v BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição nº 1.085-DF. Estado requerente: Itália. Extraditando: Cesare Battisti. Relator: Min. CEZAR PELUSO. Plenário (5×4), ausentes os Min. Celso de Mello e Dias Toffoli. Brasília, 18 de novembro de 2009.

vi BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem na Extradição nº 1.085-DF. Estado requerente: Itália. Extraditando: Cesare Battisti. Relator: Min. CEZAR PELUSO. Plenário (5×4), ausentes os Min. Celso de Mello e Dias Toffoli. Brasília, 16 de dezembro de 2009.

vii O Processo, Diretor Alessandro Fabri, com Vittória Puccini no papel principal, Netflix, 2020. Informações disponíveis em: https://www.omelete.com.br/netflix/criticas/o-processo-1a-temporada-netflix-critica. Acesso 5/6/2020.

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    é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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    é coordenador-geral do Comitê Nacional para os Refugiados do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

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