Opinião

Um debate qualificado sobre os custos do Judiciário - parte 2

Autores

  • Fernando Mendes

    é advogado administrador de empresas mestre em Direito Administrativo (PUC-SP) e sócio no escritório Warde Advogados. Foi juiz federal procurador do Estado de São Paulo e presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

  • Alberto Malta

    é sócio-fundador do escritório Malta Advogados professor de Direito Imobiliário da Universidade de Brasília (UnB) presidente da Comissão de Direito Imobiliário da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional do Distrito Federal mestre em Direito Estado e Constituição com ênfase em Direito Imobiliário Registral pela UnB pós-graduado do programa de Master in Business Administration em Gestão de Negócios de Incorporação Imobiliária e Construção Civil pela Fundação Getulio Vargas (MBA/FGV) pós-graduado em Direito Imobiliário pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e árbitro da Câmara Brasileira de Arbitragem na Administração Pública (Cambraap).

  • Lazarini de Almeida

    é sócio do escritório Malta Advogados.

7 de junho de 2020, 9h18

Continua parte 1

III.3 Efetividade das leis: o caso da litigância em temas de direito previdenciário

A efetivação de disposições legais, com o devido cumprimento pelo Poder Executivo e pelos particulares do que a lei discrimina, constitui elemento também imprescindível para que se reduza a judicialização e, consequentemente, os gastos em termos de manutenção da prestação jurisdicional.

Uma dimensão importante nessa reflexão quanto à efetividade das disposições legais envolve a análise da litigância em temas de direito previdenciário — tema predominante nos processos que ingressam na Justiça Federal. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[26], desde 2014 o número de casos novos por ano envolvendo direito previdenciário abrangeu de 44,35% a 48,37% do total.

Figura 7 – Despesas da Justiça Federal, em R$ bilhões, e participação das ações em direito previdenciário sobre total de casos novos (CNJ)

ConJur

Valendo-se do ano de 2019, que é aquele para o qual há informações disponíveis, do acervo de 6.078.831 de casos novos recebidos pela Justiça Federal, cerca de 46,37% eram casos tratando de matérias do direito previdenciário, de maneira que a seguinte aproximação é factível: de um orçamento previsto em R$ 12,436 bilhões para 2019, cerca de R$ 5,767 bilhões teriam sido direcionados apenas para a litigância envolvendo questões previdenciárias.

Em estudo envolvendo os custos da judicialização contra o Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS), o Tribunal de Contas da União (TCU)[27] fez algumas estimativas que também dão a dimensão do impacto das demandas judiciais envolvendo matéria previdenciária.

Alcançou-se a estimativa, para 2016, de que cerca de 38,2% do custo operacional da Justiça Federal decorre dos processos envolvendo a matéria previdenciária. Por sua vez, no que diz respeito aos servidores, estima-se que 37,7% dos servidores da Justiça Federal estejam absorvidos pelas demandas previdenciárias. Essa estimativa para os Magistrados é ainda maior: cerca de 59,6% dos Magistrados encontram-se absorvidos com ações previdenciárias.

Nesse caso envolvendo demandas previdenciárias, evidencia-se uma excessiva litigância que trata do conflito envolvendo o acesso ao orçamento da Seguridade Social, que alcançou mais de R$ 874 bilhões em 2018[28], e a dificuldade do Estado de fazer valer as disposições tratando de seus benefícios. Seja por insuficiência de recursos materiais e humanos para fazer frente à demanda da sociedade, seja por uma política de redução nos dispêndios de benefícios (como os recorrentes programas de “pente-fino” em programas sociais e auxílios previdenciários).

Ante a perspectiva de uma disposição legal que confere o direito e, simultaneamente, um Estado incapaz de dar efetividade a esse direito – ou mesmo não disposto a tanto, notadamente em razão de restrições orçamentárias — a judicialização é caminho inevitável. Dimensão, portanto, que elucida uma das grandes razões para que o Poder Judiciário esteja sobrecarregado, aumentando a necessidade de dispêndio com seus membros, seus servidores e toda a estrutura material e humana para seu funcionamento.

III.4 Subsídios da magistratura: sua dimensão e a sobrecarga de trabalho
Outra circunstância recorrentemente apontada como fulcral para as alegações que posicionam o Poder Judiciário brasileiro como excessivamente custoso à sociedade se alicerça nos subsídios da Magistratura: aponta-se que, supostamente, o Magistrado brasileiro receberia em descompasso com seus pares no âmbito internacional, supostamente auferindo subsídios excessivamente vultosos.

Entretanto, a análise do subsídio dos magistrados brasileiros em contraste a de outros países, como Estados Unidos[29] e França[30], atesta absolutamente o contrário: convertendo-se os valores para a mesma unidade monetária[31], evidencia-se que o subsídio da Magistratura brasileira, em verdade, não se apresenta em qualquer descompasso com o quanto percebido nesses outros países.

Tabela 4 – Valores comparados de subsídios de Magistrados, em 2019

ConJur

Seja em início de carreira (US$ 5.776,79) ou ao seu término (US$ 7.092,44), o subsídio dos Magistrados brasileiros não se afigura em descompasso ao que se verifica internacionalmente (de US$ 3.277,00 a US$ 10.733,80 para França e de US$ 17.575,00 a US$ 22.558,33 para EUA). Algo que reposiciona o problema: esse dispêndio com recursos humanos, que encampou cerca de 90,8% das despesas do Poder Judiciário em 2019, não tem uma relação com o quanto cada membro do Poder ganha individualmente, mas sim, com a quantidade de membros e servidores necessários para fazer frente à demanda jurisdicional.

Esse excesso de demanda, por sua vez, atesta-se na grave sobrecarga de trabalho dos Magistrados brasileiros: enquanto o juiz brasileiro recebe, em média, 2.000 processos anualmente, o juiz português, por exemplo, recebe 400 processos; o italiano 670 processos e o espanhol 680 processos.

Não há, assim, uma relação direta entre os subsídios dos Magistrados e o custo supostamente excessivo do Poder Judiciário brasileiro. A relação que esse custo tem com os recursos humanos, em vez de ser uma relação vinculada a quanto cada membro ou servidor percebe individualmente pelo serviço prestado, estabelece-se em relação ao quantitativo total de agentes que precisam integrar o quadro efetivo do Poder.

E nem sequer há possibilidade de se alegar eventual “inchaço” da máquina jurisdicional: a sobrecarga de processos atesta, mais uma vez, que o problema envolve a litigância excessiva. A qual, por si só, encontra fundamentos em problemas estruturais da própria sociedade brasileira, incluindo-se suas instituições — tanto aquelas que produzem as normas quanto aquelas responsáveis pelo seu cumprimento. [32]

IV. Considerações finais
Necessário, portanto, trazer luz ao debate a respeito dos custos do Poder Judiciário brasileiro, de modo a demonstrar a insuficiência dos comparativos que o projetam percentualmente sobre o PIB. O comparativo per capita revela que o custo do Sistema de Justiça brasileiro, ainda que elevado, assemelha-se ao de países de forte tradição democrática.

Outrossim, não obstante o Poder Judiciário brasileiro — e o Sistema de Justiça como um todo — apresentar uma média de despesas relativamente alta, o debate não pode se restringir a essa valoração sem que se estabeleça uma discussão acerca das razões que contribuem fundamentalmente para essa realidade. Dentre os principais elementos envolvidos nesse custo do Poder Judiciário brasileiro, evidenciam-se:

  1. excessiva judicialização, que pressiona a um quantitativo grande de membros e servidores nos Tribunais, os quais, mesmo nesse número, ainda se encontram sobrecarregados quando posta sua situação em paralelo a de seus pares internacionais;
  2. estrutura de arrecadação própria ainda bastante tímida, com custas judiciais e emolumentos em valores baixos, algo que tanto estimula a judicialização ante o valor relativamente baixo para a propositura de uma ação quanto, por sua vez, termina por posicionar mais no contribuinte do que no usuário o custo para manutenção da máquina jurisdicional;
  3. a qualidade normativa erigida tanto pelo legislador quanto pelo regulador, a qual culmina por estabelecer um arcabouço legal que, em vez de aclarar e simplificar a vida do cidadão, repercute em sentido recorrentemente adverso, impulsionando-o ao Judiciário para dirimir controvérsias; e
  4. baixa efetividade das disposições legais e normativas, algo que constrange os cidadãos a se valerem recorrente e excessivamente do Poder Judiciário para fazerem valer direitos reconhecidos pelo legislador.

As discussões envolvendo novas formas de incremento de receitas próprias para o Poder Judiciário, que tanto aumentem sua arrecadação quanto atuem de maneira a incentivar os jurisdicionados a buscarem métodos autocompositivos; a clareza, simplificação e transparência na edição de leis e normativos, de maneira que as controvérsias dispensem o escrutínio constante do Poder Judiciário; e o imperativo para que o Poder Público faça valer os direitos dos cidadãos assegurados por lei — essas são três premissas essenciais para que o Poder Judiciário possa, enfim, reduzir o volume de recursos necessários para seu funcionamento.

V. REFERÊNCIAS


[1] ESTADÃO. “Desembolso com Judiciário chega a 2% do PIB no País”. 02/12/2018. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,desembolso-com-judiciario-chega-a-2-do-pib-no-pais,70002629765. Acesso em 05/04/2020.

[2] DA ROS, Luciana. O custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória. The Observatory of Social and Political Elites of Brazil. Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira da Universidade Federal do Paraná. V. 2, Nº 9, julho/2015. Disponível em: http://observatory-elites.org/wp-content/uploads/2012/06/newsletter-Observatorio-v.-2-n.-9.pdf. Acesso em 05/04/2020.

[3] UOL. “Brasil é o 7º país mais desigual do mundo, melhor apenas do que africanos”. 09/12/2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2019/12/09/brasil-e-o-7-mais-desigual-do-mundo-melhor-apenas-do-que-africanos.htm. Acesso em 05/04/2020

[4] G1. “Brasil tem 2ª maior concentração de renda do mundo, diz relatório da ONU”. 09/12/2019. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/12/09/brasil-tem-segunda-maior-concentracao-de-renda-do-mundo-diz-relatorio-da-onu.ghtml. Acesso em 05/04/2020

[5] IBGE. Dados disponíveis em: https://sidra.ibge.gov.br/Tabela/6784. Acesso em 05/04/2020.

[6] CNJ. Disponível em: https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%2FPainelCNJ.qvw&host=QVS%40neodimio03&anonymous=true&sheet=shResumoDespFT. Acesso em 05/04/2020.

[7] CEPEJ. “European judicial systems: Efficiency and quality of justice”. European Comission for the Efficiency of Justice, CEPEJ Studies nº 26, 2018. Disponível em: https://www.coe.int/en/web/cepej/special-file-publication-2018-edition-of-the-cepej-report-european-judicial-systems-efficiency-and-quality-of-justice. Acesso em 05/04/2020.

[8] Ver nota nº 7.

[9] Ver nota nº 6.

[10] Agregado envolvendo as despesas do Poder Judiciário, de acordo com o CNJ, e aquelas do Ministério Público e da Defensoria Pública, de acordo com os portais virtuais de transparência de cada um desses órgãos.

[11] CNJ. “Justiça em Números 2019”, disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em 05/04/2020.

[12] Ver nota nº 11.

[13] Ver nota nº 6.

[14] Dados disponíveis em: http://www.justice.gouv.fr/statistiques.html#statistique-judiciaire. Acesso em 05/04/2020.

[15] Dados disponíveis em: https://www.destatis.de/EN/Themes/Government/Justice/Tables/judicial-proceedings.html. Acesso em 05/04/2020.

[16] Dados disponíveis em: http://www.poderjudicial.es/cgpj/es/Temas/Estadistica-Judicial/Estadistica-por-temas/Datos-penales–civiles-y-laborales/Civil-y-laboral/Asuntos-Judiciales-Sociales/. Acesso em 05/04/2020.

[17] Ver nota nº 6.

[18] Ver nota nº 7.

[19] Diagnóstico das Custas Processuais praticadas nos Tribunais. Conselho Nacional de Justiça, 2019, p. 24. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/11/relat_custas_processuais2019.pdf. Acesso em 05/04/2020.

[20] Ver nota nº 19.

[21] CNJ. “100 maiores litigantes nacionais”. 2012. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/100_maiores_litigantes.pdf. Acesso em 05/04/2020.

[22] G1. “Lucro dos maiores bancos do Brasil cresce 18% em 2019 e soma R$ 81,5 bilhões”. 13/02/2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/02/13/lucro-dos-maiores-bancos-do-brasil-cresce-18percent-em-2019-e-soma-r-815-bilhoes.ghtml. Acesso em 05/04/2020.

[23] Disponível em: https://twitter.com/RodrigoMaia/status/1225418909030985731. Acesso em 05/04/2020.

[24] Correio Braziliense. “Complexo sistema do país leva à judicialização excessiva”. 28/08/2019. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2019/08/28/internas_economia,779468/complexo-sistema-do-pais-leva-a-judicializacao-excessiva.shtml. Acesso em 05/04/2020.

[25] Ver nota nº 6.

[26] Ver nota nº 6.

[27] TCU. TC nº 022.354/2017-4. Relator Ministro-Substituto André Luís de Carvalho. Plenário. Levantamento realizado de 09/08/2017 a 30/05/2018.

[28] ANFIP. Análise da Seguridade Social em 2018. 19ª Edição. Setembro/2019. Disponível em: https://www.anfip.org.br/?mdocs-file=11617. Acesso em 05/04/2020.

[29] Dados disponíveis em: https://www.uscourts.gov/judges-judgeships/judicial-compensation. Acesso em 05/04/2020.

[30] Dados disponíveis em: https://www.enm.justice.fr/sites/default/files/grille_des_traitements_01-01-2019.pdf. Acesso em 05/04/2020.

[31] Conversão baseada nas cotações de abril de 2020.

[32] Material desenvolvido em conjunto com a assessoria Malta Advogados.

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