Opinião

A teoria da imprevisão não é uma panaceia jurídica

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7 de junho de 2020, 7h12

No atual momento de crise provocada por evento inédito e extraordinário como a pandemia da Covid-19, autoriza a lei civil a possibilidade de revisão dos contratos por força da chamada teoria da imprevisão. A teoria reconhece que um evento estranho e extraordinário ao negócio pode tornar uma relação tão onerosa para uma ou ambas partes que, para devolver o equilíbrio, só mesmo a sua revisão ou seu término.

Essa teoria, admitida no ordenamento jurídico, é que autoriza a revisão ou rescisão do contrato, conforme artigo 478 e seguintes do Código Civil. No entanto, não é cabível a todas as categorias de contrato como pode parecer, especialmente àquelas designadas no Código Civil como aleatórias, conforme disposto nos artigos 458 a 461. 

A palavra aleatória provém do latim alea, que significa sorte, perigo, azar, incerteza de fortuna. Desse modo, o contrato aleatório é aquele em que a prestação de uma ou de ambas as partes dependeriam de um risco futuro e incerto, não se podendo antecipar o seu montante.

Sendo o risco futuro e incerto objeto e natureza dessa modalidade de contrato, torna-se inaplicável a teoria da imprevisão, posto que não há previsibilidade a ser respeitada.

Como espécie de contratos aleatórios, temos, por exemplo, o contrato de seguro. Nessa modalidade, o evento danoso (sinistro) não é desejado pelo contratante e tampouco previsível. Só é vantajosa ao contratado (seguradora), conquanto o evento imprevisível (cobertura) não ocorra dentro do período de proteção, ou seja, a segurada lucro como risco alheio (daí a parcela paga pelo contratante ser denominada como "prêmio").

Desta sorte, não faria nenhum sentido que a seguradora invocasse o fato extraordinário e imprevisível para deixar ressarcir o segurado. Afinal, ela recebeu um "prêmio" pelo risco assumido.

Outra modalidade de contrato aleatório é a dos contratos derivativos, próprios do mercado financeiro e de capitais. Chamam-se derivativos porque "derivam" a maior parte um ativo subjacente, taxa de referência ou índice, que poder ser físico (café, ouro etc.) ou financeiro (ações, taxas de juros etc.).

Os derivativos podem ser classificados em contratos a termo, contratos futuros, opções de compra e venda, operações de swaps, entre outros, cada qual com suas características. Em linhas gerais, visam a proteger o contratante acerca da instabilidade comum ao preço de cotação (ex: preço da ação, variação cambial, variação da saca de soja no mercado futuro etc.).

Por exemplo, temos o chamado hedge cambial, que seria uma forma de "seguro contra o risco de mercado, especificamente no que refere ao preço da moeda". O hedge é a operação na qual se fixa antecipadamente o preço de uma mercadoria ou ativo financeiro de forma a neutralizar o impacto de mudanças no nível de preços.

Ora, veja-se que o contratante tem como vantagem a estabilização do preço da cotação, que está vinculada ao preço do contrato firmado em moeda estrangeira que vencerá em um momento futuro. Por outro lado, o contratado, assume o risco de obter lucro ou prejuízo, caso a cotação entabulada no hedge cambial seja maior ou menor quando ocorrer o pagamento do preço do contrato principal. 

Ora, sendo a flutuação cambial um risco assumido, a variação da cotação a patamares extremos não é uma escusa para aplicação da teoria da imprevisão. Inclusive, quanto ao tema em voga, os contratos derivativos, a jurisprudência é unânime quanto à inaplicabilidade da teoria da imprevisão. Nesse sentido, já se posicionou, inclusive, o Superior Tribunal de Justiça:

"RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E BANCÁRIO. CONTRATOS DE DERIVATIVOS. SWAP CAMBIAL SEM ENTREGA FÍSICA. COBERTURA DE RISCOS (HEDGE). CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. NÃO INCIDÊNCIA. CLÁUSULA LIMITATIVA DE RISCO. VALIDADE. TEORIA DA IMPREVISÃO. INAPLICABILIDADE. ONEROSIDADE EXCESSIVA. REVISÃO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nº 2 e 3/STJ). 2. Hipótese em que a parte autora, empresa fabricante de produtos de madeira para fins de exportação, busca a reparação de prejuízos que afirma ter sofrido na liquidação de contrato de swap cambial. Alegação de imprevisibilidade e inevitabilidade da crise mundial, da qual teria resultado a maxidesvalorização do real em relação ao dólar no segundo semestre de 2008. 3. Nos contratos de derivativos, é usual a liquidação com base apenas na diferença entre o valor do parâmetro de referência verificado na data da contratação e no vencimento, sem a anterior entrega física de numerário. 4. As normas protetivas do direito do consumidor não incidem nas relações jurídicas interempresariais envolvendo contratos de derivativos. 5. É válida a cláusula que prevê a rescisão antecipada do contrato de derivativo firmado com instituição financeira na eventualidade de ser alcançado limite previamente estabelecido de liquidação positiva para o cliente. 6. A exposição desigual das partes contratantes aos riscos do contrato não atenta contra o princípio da boa-fé, desde que haja, ao tempo da celebração da avença, plena conscientização dos riscos envolvidos na operação. 7. A aferição do dever de apresentar informações precisas e transparentes acerca dos riscos do negócio pode variar conforme a natureza da operação e a condição do operador, exigindo-se menor rigor se se fizerem presentes a notoriedade do risco e a reduzida vulnerabilidade do investidor. 8. Os contratos de derivativos são dotados de álea normal ilimitada, a afastar a aplicabilidade da teoria da imprevisão e impedir a sua revisão judicial por onerosidade excessiva. 9. Recurso especial não provido (RECURSO ESPECIAL Nº 1.689.225 – SP (2017/0120440-5.  Data de Julgamento: 21/5/2019)".

Nesta mesma linha, com respeito a chamados a termo futuro:

"Civil. Recurso Especial. Ação revisional de contratos de compra e venda de safra futura de soja. Ocorrência de praga na lavoura, conhecida como 'ferrugem asiática'. Onerosidade excessiva. Pedido formulado no sentido de se obter complementação do preço da saca de soja, de acordo com a cotação do produto em bolsa que se verificou no dia do vencimento dos contratos. Impossibilidade. Direito Agrário. Contrato de compra e venda de soja. Fechamento futuro do preço em data a ser escolhida pelo produtor rural. Ausência de abusividade. Emissão de Cédula de Produto Rural (CPR) em garantia da operação. Anulação do título, porquanto, o adiantamento do preço consubstanciaria requisito fundamental. Reforma da decisão. Reconhecimento da legalidade da CPR. Precedentes – Nos termos de precedentes do STJ,  a ocorrência de 'ferrugem asiática' não é fato extraordinário e imprevisível  conforme exigido pelo artigo 478 do CC/02. A Lei 8.929/94  não impõe, como requisito essencial para a emissão de uma Cédula do Produto Rural, o prévio pagamento pela aquisição dos produtos agrícolas nela representados. A emissão desse título pode se dar para financiamento da Safra, com o pagamento antecipado do preço, mas também pode ocorrer numa operação de 'hedge', no qual o agricultor, independente do recebimento do pagamento, pretende apenas se proteger contra os riscos de flutuação de preços no mercado futuro. Recurso Especial conhecido e provido. (STJ Resp: 858785 GO 2006/010 6587-4.  Relator Ministro Humberto Gomes de Barros. Data de Julgamento: 8/6/2010. T3 – Terceira Turma. Data de Publicação DJe. 3/8/2010)".

Por isso, ainda que seja tentadora, a teoria da imprevisão não é uma panaceia jurídica. Afinal, a sua aplicabilidade não é ilimitada.

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    é advogado no escritório Diamantino Advogados Associados, especializado em Contract Law: from trust to promise to contract pela Universidade de Harvard e pós-graduado em Direito Empresarial e Direito de Empresa pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).

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