Opinião

Decisão do Supremo no RE 607477 zelou pela autoridade da Constituição

Autores

  • Radson Rangel Duarte

    é juiz do trabalho da 18ª Região professor universitário mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo-USP e autor do livro "Segurança jurídica no Direito e Processo do Trabalho" (2020. No prelo).

  • Jair Aparecido Cardoso

    é professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (DFRP/USP).

7 de junho de 2020, 16h35

O presente texto busca analisar, de forma pontual, a decisão tomada pelo STF no último dia 22 de maio tornando prescindível que seja realizado o depósito recursal caso a parte pretenda interpor o recurso extraordinário. Pretende-se demonstrar que tal decisão foi acertada, mas não cabe sua ampliação em outros recursos durante a jurisdição trabalhista.

Uníssono que o exercício do direito de ação não se afigura absoluto, antes, podem ser fixadas determinadas balizas que dizem respeito à sua própria regularidade. Por isso, a existência de regras sobre competência, perempção, patrocínio advocatício etc., conquanto estabeleçam condicionantes ao exercício do direito de ação, na realidade, concorrem para que essa garantia constitucional seja concretizada de uma forma regular. Por outro lado, esse condicionamento ao exercício do direito de ação não pode desbordar determinados limites, pois, se assim o fizerem, traduzir-se-iam em efetivo óbice no acesso ao Judiciário. Como exemplos de condicionantes que violam o direito de ação, no processo do trabalho, podemos citar: a) a obrigatoriedade de submissão de litígios a instâncias não jurisdicionais (como as CCPs, tendo o STF realizado leitura conforme do artigo 625-D, caput, da CLT, para tornar facultativa a submissão das demandas a tais comissões [1]); ou b) as regras de competência territorial que sejam materialmente impeditivas (v.g., exigir que pessoa sem maiores posses residente em Curitiba tenha que se deslocar a Altamira-PA para ajuizar ação relativa a período no qual trabalhou na Usina de Belo Monte, cuja distância, superior a três mil quilômetros, e tempo de deslocamento tornariam uma mera promessa, ao final descumprida, de acesso ao Judiciário).

Um outro condicionante que a legislação estabelece ao exercício do direito de ação, especialmente no âmbito do processo do trabalho, consiste na fixação de depósito recursal para que a parte condenada possa interpor os recursos ordinário, de revista, embargos, agravo de instrumento e recurso extraordinário. O depósito, portanto, possui o caráter de pressuposto recursal extrínseco. Além dessa característica, a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido ao depósito recursal também outra finalidade, qual seja, assegurar a execução [2]. Esta última perspectiva tem colaborado, em diversas situações, para antecipar, parcial ou totalmente, a satisfação do credor, com a liberação do depósito após fixação de crédito superior ao seu valor. Ademais, a exigência do depósito recursal apresenta uma externalidade, qual seja, reduzir a interposição de recursos meramente protelatórios (GIGLIO, 2000, p. 410), pois ou o valor ficaria imobilizado ou a pessoa teria que arcar com o valor gasto para obter fiança bancária ou seguro garantia judicial (artigo 899, § 11, CLT). Embora seja um instituto de marcada predominância no âmbito do processo do trabalho, como pressuposto recursal, o depósito existe também na ação rescisória, tanto aquela ajuizada no âmbito cível (CPC, artigo 968, II) quanto no trabalhista (CLT, artigo 836, caput). Note-se que no processo do trabalho, o valor do depósito para o ajuizamento da ação é superior ao exigido no processo comum justamente em face da natureza dos créditos normalmente discutidos na Justiça do Trabalho, de predominante caráter alimentar, o que exige, portanto, um tratamento diverso do legislador.

Observe-se que, ao contrário de argumento às vezes apresentado, não há de se imputar como inconstitucional a exigência de depósito para a interposição de recursos trabalhistas, pois tal requisito caminha no sentido de concretizar todo um arcabouço protetivo dos créditos trabalhistas [3]. Observe que, a par desse fundamento constitucional, a simples existência do depósito recursal não viola a ampla defesa e o direito de ação pois os empregadores que, em razão de suas dificuldades financeiras devidamente comprovadas, fizerem jus à gratuidade da justiça, ficam dispensados de seu recolhimento (CLT, artigo 899, § 10), além do que determinadas pessoas jurídicas (micro e pequenas empresas, empreendedores individuais), em relação às quais a Constituição (artigo 179) assegura um tratamento especial, devem recolher apenas a metade do valor do depósito recursal (CLT, artigo 899, § 9º).

Deste modo, o depósito recursal trata-se, na verdade, de um condicionamento imposto validamente ao exercício do direito de ação.

O STF, de seu lado, em ambas as suas turmas, sempre teve firme jurisprudência no sentido de impossibilidade de analisar esse pressuposto recursal porque a sua fixação é realizada em sede de legislação infraconstitucional. Nesse sentido, citam-se:

"Trabalhista. Depósito recursal. Lei nº. 8.177/91. Alegada contrariedade ao artigo 5º., II, da Constituição. A discussão em torno do depósito recursal na Justiça do Trabalho e da ocorrência da deserção cinge-se ao âmbito da legislação ordinária, sendo inadequada a apreciação pelo Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental improvido" (AI 153269. Rel. Min. Ilmar Galvão. 1ª T. Dt. Julg.: 07/06/1994. Pub.: DJ 10.2.95).

"AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRABALHISTA. INSUFICIÊNCIA DO DEPOSITO RECURSAL. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. A controvérsia acerca do depósito recursal há de ser dirimida através da legislação ordinária que disciplina os pressupostos extrínsecos e intrínsecos para a interposição de recurso trabalhista. A violação a norma constitucional, se houvesse, seria indireta e reflexa, o que não viabiliza a instância extraordinária. Agravo regimental improvido" (AI 138965. Rel. Min.: Maurício Corrêa. Dt. Julg.: 16.5.95. Dt. Pub.: 8.9.95).

Não obstante esse posicionamento prevalecente por longo período, houve uma inflexão por parte do STF que, em 2013, entendeu tratar-se de matéria constitucional a exigência de depósito recursal em recurso extraordinário, tanto que desafiou sua análise sob o regime de repercussão geral (Tema 679). Em 22 de maio, houve publicação da decisão, tendo prevalecido por maioria o entendimento de que é "incompatível com a Constituição Federal exigência de depósito prévio como condição de admissibilidade do recurso extraordinário" (RE 607447. Pleno virtual. Rel. min.: Marco Aurélio). Em razão disso, declarou-se a "inconstitucionalidade do § 1º do artigo 899 da Consolidação das Leis do Trabalho, sendo inconstitucional a (exigência) constante na cabeça do artigo 40 da Lei nº 8.177 e, por arrastamento, no inciso II da Instrução Normativa nº 3/1993 do Tribunal Superior do Trabalho".

Assim, como decidiu o STF, não se exige o depósito recursal para a interposição de recurso extraordinário. A despeito de críticas quanto a essa interpretação, em especial porque importaria em autorizar interposição de recurso meramente protelatório ou que alteraria todo o manto protecionista conferido aos créditos trabalhistas, não nos parece que a conclusão do STF tenha incorrido em atecnia, especialmente porque não cabe a ampliação desse entendimento para os demais recursos interpostos na jurisdição trabalhista.

Com efeito, o recurso extraordinário, ainda que cabível em um processo trabalhista, tem as suas balizas constitucionalmente fixadas, quais sejam, "julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; e b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal" (CF, artigo 102, III). A legislação infraconstitucional, ao estabelecer como pressuposto processual um requisito, extrínseco ou intrínseco, não estabelecido pela Constituição quanto ao cabimento do recurso extraordinário, quer nos parecer, incorreu em uma violação ao texto constitucional. Não se queira argumentar, todavia, que a partir dessa premissa poderia haver a alegação de que os demais pressupostos estabelecidos por lei sejam inconstitucionais, por exemplo, o prazo (15 dias), a representação por meio de advogado etc. Tal leitura soaria incorreta, com a devida vênia, uma vez que esses outros requisitos (prazo, representação etc) são pressupostos ontologicamente vinculados à própria existência do instituto "recurso", ou seja, a existência de um determinado prazo, ou a sua representação por meio de advogado, ou a delimitação do tema sob análise, são exigências estabelecidas para o cabimento de qualquer recurso e, portanto, essenciais à manifestação de discordância da parte quanto à decisão. Disso decorre que se se tratam de requisitos essencialmente vinculados a qualquer recurso, de forma que a previsão desses pressupostos, também para o recurso extraordinário, afigura-se lícita. Diferente é, porém, da fixação de pressupostos que não são ontologicamente vinculados aos recursos, mas sim ao recurso extraordinário, hipótese em que somente a Constituição pode estabelecê-los. Em realidade, o recurso extraordinário não é um recurso trabalhista ainda que contingencialmente possa ser apresentado em um processo trabalhista: trata-se de um recurso constitucional.

Deste modo, ao fixarem para o recurso extraordinário pressupostos que não são ontológicos aos recursos e que não estão previstos na Constituição Federal, os textos normativos mencionados na decisão do STF violam a Constituição Federal, razão pela qual podemos afirmar que o entendimento sufragado pelo STF busca preservar a autoridade da Constituição Federal enquanto texto normativo básico do ordenamento brasileiro.

Note-se, por outro lado, não ser lícito estender o entendimento do STF para os demais recursos interpostos durante a jurisdição trabalhista. Pretendido elastecimento violaria todo o sistema jurídico em diversos aspectos: primeiro, importaria em uma hecatombe de todo o arcabouço processual trabalhista, habilmente construído para que haja uma forma de garantir a satisfação de créditos trabalhistas a partir de um determinado estágio processual e, como tal, permitir a satisfação dos credores de uma forma mais célere; ignoraria a necessidade de uma tutela diferenciada assentada na ideia de acesso efetivo à Justiça; afastaria a concretização das normas constitucionais que tutelam os direitos dos trabalhadores. Mas, além da violação ao sistema trabalhista como um todo, tal pretensão violaria a própria decisão ora tomada pelo STF, no sentido de que "para a interposição de recurso ao Supremo, não se pode cogitar de pagamento de certo valor" [4], uma vez que, diferentemente dos demais recursos trabalhistas, o recurso extraordinário é um recurso com sede constitucional, que lhe fixa os seus requisitos específicos, o que não se vislumbra nos demais recursos, cujas regras são integralmente fixadas pela legislação infraconstitucional. Daí, em relação ao recurso ordinário, ao recurso de revista e as embargos, porque não são dirigidos ao STF, pela própria decisão do STF, subsiste o ônus de realizar o depósito recursal.

A única possibilidade de elastecimento da decisão do STF refere-se ao agravo de instrumento interposto contra decisão que não admite o recurso extraordinário. Embora esse recurso não seja expressamente previsto no âmbito constitucional, premissa de nossa exposição acima, ao concluir que "para a interposição de recurso ao Supremo, não se pode cogitar de pagamento de certo valor", o STF realça o seu papel de guardião da Constituição.

Deste modo, é possível concluir que, na decisão tomada no RE 607477, o STF zelou pela autoridade da Constituição, que não estabelece pressupostos de natureza financeira para a admissão do recurso extraordinário. Todavia, não cabe estender a premissa para todos os recursos trabalhistas pois, contrariamente ao extraordinário e do agravo de instrumento para destrancar ao recurso extraordinário, não possuem previsão e requisitos estabelecidos no texto constitucional nem possuem como órgão julgador o STF.

 

Referência bibliográfica

 

GIGLIO, Wagner. Direito Processual do Trabalho. 11ªed. São Paulo: Saraiva, 2000.

 


[1] Na ADI 2139 o STF reconheceu a inconstitucionalidade dessa exigência.

[2] Por isso a Fazenda Pública não precisa realizá-lo, ante o procedimento especial de sua execução; não há se fazer depósito recursal para a interposição de agravo de petição pela parte executada; de forma idêntica, não cabe realizá-lo se não houver condenação em pagamento, como nas ações para anotação da CTPS, mandamentais etc.

[3] Em grande parte, os direitos trabalhistas são previstos constitucionalmente. Assim, exige-se a adoção de medidas que visam a concretizá-los em razão da força normativa da Constituição.

[4] Trecho da decisão, transcrita na notícia publicada na página do STF na rede mundial de computadores: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443985&ori=1. Acesso em 25 de maio de 20.

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