Opinião

Carta aos acadêmicos e às acadêmicas de Direito

Autor

  • Adriana Cecilio

    é professora de Direito Constitucional advogada especialista em Direito Constitucional mestra em Direito e autora da obra A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos.

6 de junho de 2020, 11h14

No último dia 19 comemorou-se o Dia do Acadêmico de Direito. Vale tecer algumas considerações, aos alunos e às alunas, acerca da motivação que os leva aos bancos acadêmicos dos cursos de Direito em 2020, pontuando alguns de seus principais desafios e suas responsabilidades.

Segundo dados oficiais do MEC, o Brasil possui atualmente 1755 [1] cursos de Direito. O número de estudantes alcança a marca de 879.234 pessoas, um número superior à população do Estado de Roraima (605.701 habitante) e à do Amapá (845.731). É necessário comentar a respeito da qualidade de algumas dessas instituições de ensino e propor ao alunado reflexões sobre qual deve ser a razão última de se propor a cursar Direito.

A abertura de novos cursos jurídicos foi questionada recentemente pelo Conselho Federal da OAB, por meio da ADPF 682 [2], que de forma muito bem embasada demonstrou o panorama dos cursos de Direito no Brasil na atualidade. A leitura da peça aduz uma preocupação legítima em relação à qualidade dos cursos de Direito. Por oportuno, iremos transcrever os achados mais comuns que permeiam os 652 pareceres exarados pelo CFOAB entre 2017 e 2019 acerca das avaliações realizadas em diversas instituições de ensino:

Inexistência de biblioteca;

Ausência de instalações do Núcleo de Práticas Jurídicas;

Ausência dos conteúdos obrigatórios preconizados nas DCNs (Diretrizes Curriculares Nacionais);

Corpo docente com formação deficiente e carga horária incompatível com as funções;

Quadro docente domiciliado em local divergente da oferta do curso;

— Ausência de projetos de pesquisa e extensão.

A peça relata a existência de cursos em que para cem alunos havia apenas seis professores e, em outro, 154 alunos com apenas nove ou dez professores. Ou seja, é possível depreender que um mesmo professor leciona praticamente todas as disciplinas. É consabido que muito dificilmente um mesmo profissional poderá possuir um conhecimento substancioso a ponto de poder compartilhá-lo com segurança em relação a todas as áreas jurídicas.

O Direito, tal como a Medicina, exige cada vez mais especialização e aprofundamento em sua área de atuação. Quando alguém sofre uma fratura, não procura um dermatologista, mas um ortopedista. Ambos são médicos, mas cada um detém o conhecimento necessário para atuar dentro da sua área. De igual forma, um professor cuja área de formação em seu mestrado e doutorado, bem como em seu exercício profissional, for inteiramente voltado ao Direito Tributário, por exemplo, é razoável afirmar que ele não dominará temas como Família e Sucessões ou Legislação Penal Especial. Cada uma dessas disciplinas importa em um universo de saberes que demanda tempo e dedicação para se amealhar. É certo que podem existir profissionais que excepcionem essa regra, mas é preciso que se tenha presente que se trata de casos pontuais, exceção, não regra.

É dizer o óbvio. Contudo, o alunado que "não sabe o que não sabe" [3] não reúne condições de identificar eventuais irregularidades na ministração das aulas. Aquilo que lhes é proposto pela instituição de ensino é tido como algo seguro. E, por certo, é assim que deve que ser. Contudo, os altíssimos índices de reprovação no exame da Ordem [4] revelam uma insuficiência em relação a conhecimentos básicos, o que coloca em xeque a qualidade do conteúdo que vem sendo oferecido aos estudantes em muitas instituições de ensino [5].

É fundamental esclarecer que a OAB não é contra a ampliação do alcance dos cursos jurídicos. E que as presentes considerações não visam a atacar ou desmerecer as instituições de ensino. "Toda democratização do acesso ao ensino precisa e deve ser festejada. A preocupação da Ordem é em relação a qualidade dos cursos jurídicos, esta precisa ser observada com total rigor" [6].

Considerando que não temos a intenção de exaurir o tema, dada a sua complexidade, entendemos que o primeiro ponto a que nos propomos analisar no presente artigo, os desafios que se apresentam aos estudantes, foi minimamente delineado, oferecendo elementos para a necessária reflexão por parte dos leitores.

Acerca do segundo ponto, as responsabilidades, é preciso encetar com uma pergunta dirigida aos próprios estudantes.

Por que você está estudando Direito?

Ante o contexto que estamos vivendo em nosso país, revela-se urgente que esse contingente de quase 880 mil pessoas reflita com seriedade a respeito do caminho que escolheu trilhar. Estar em um ambiente acadêmico, que é um espaço voltado à construção do pensamento crítico, do conhecimento, da busca honesta pelo saber, demanda uma grande responsabilidade por parte daqueles que ocupam os bancos da academia. Sobremaneira neste passo histórico.

Estamos presenciando uma luta pelo direito de ostentar com orgulho e soberba a própria ignorância. Tem sido assustadoramente corrente ouvir discursos que desmerecem a ciência, que visam a invalidar saberes que se amparam em séculos de estudo e pugnam por impor o senso comum com base em manifestações desprovidas de qualquer embasamento, seja teórico ou empírico.

Cabe ao aluno e à aluna de Direito dedicar-se a combater esse estado de coisas que depõem contra tudo que o Direito visa a tutelar. É preciso louvar o estudo, a construção legítima do conhecimento pautado na ciência, reforçando sua inegável importância para o desenvolvimento civilizatório da humanidade.

É motivo de imensa tristeza ouvir estudantes reproduzindo jargões falaciosos propalados através de redes sociais. Não raro, professores têm sido confrontados por alunos que se filiam de forma acrítica a discursos rasos, invariavelmente inverídicos, que abertamente contestam a importância de direitos e valores fundamentais estabelecidos constitucionalmente. Eles o fazem ao arrepio de qualquer resquício de bom senso. É relevante dizer que o aluno ou a aluna que assim se porta está se voltando contra as bases do Direito.

A única resposta possível a nossa pergunta inicial é: "Você está estudando para defender o Estado democrático de Direito", que se pauta na Constituição e em todo o ordenamento jurídico. Uma estrutura construída a partir da vontade do povo, escorada em um conhecimento secular que não deve ser aviltado ou relativizado de maneira leviana. Defender abertamente preceitos incivilizados para a solução de conflitos sociais, tais como a violência contra os que divergem de sua forma de pensar, a naturalização do desrespeito às liberdades, o negacionismo científico, entre outros, trata-se de advogar em prol de teses que violam um sistema que, por obrigação lógica, o estudante precisa proteger.

É preciso dedicar-se aos estudos com afinco e seriedade para não fazer parte da turba de incautos. Tomando por empréstimo o pensamento de Henry David Thoreau: "Construamos um arco de sabedoria sobre o abismo escuro da ignorância que nos isola" [7]. Quem luta por lapidar em si o conhecimento não se verga ao pensamento curto dos néscios. Pelo contrário, quem se propõe a caminhar pela senda do saber defende a ciência com inabalável certeza e segurança.

Rudolf Von Ihering, em sua obra "A Luta pelo Direito" [8], explica que um povo que não luta pelo Direito é como criança trazida pela cegonha, um abutre ou uma raposa pode facilmente levá-la; mas uma mãe que gestou seu filho com todas as dificuldades e sentiu as dores do parto não permitirá que ninguém o leve. Você defende com a força devida aquilo que lutou para conquistar. Traçando uma comparação, quem estuda verdadeiramente gesta um saber que lhe é precioso e, em razão disso, vai defendê-lo com galhardia em face desse estado de indigência intelectual que temos assistido se propagar tal erva daninha.

Assim, buscando não tornar cansativa a leitura, nós nos resignamos a dizer que o intento do texto foi provocar o pensamento, a necessária reflexão acerca do propósito que precisa ser perseguido por um acadêmico e acadêmica de Direito ao longo de sua graduação. Direito é a disciplina da convivência [9]. É moldar-se para bem defender o Estado democrático de Direito, jamais para atacá-lo temerariamente. Criticar, sim, desde que de forma fundamentada e embasada por saberes testados e verificados cientificamente.

No dizer do Professor Goffredo Telles Jr., "quem fizer, com seriedade, o curso de uma faculdade de Direito, e obtiver o conhecimento científico da Disciplina Convivência, estará pronto para a vida. Estará superiormente formado para enfrentar as exigências do quotidiano" [10]. Esperamos que os alunos e as alunas acatem com muita seriedade esse processo de edificação interna do conhecimento. O resultado dele, invariavelmente, será unir-se em prol da defesa das instituições e da manutenção de nossas balizas civilizatórias.

É pleno sucesso o que podemos lhes desejar. Que saibam o que estão fazendo e por que estão fazendo. E, assim, alcancem bom êxito em sua jornada acadêmica. Que compreendam o seu papel e a importância do lugar que ocupam, principalmente neste delicado momento histórico. Nós, seus futuros colegas, contamos com vocês na trincheira pela luta em prol da Constituição, dos direitos fundamentais e da democracia.

 


[1] Dados colhidos na inicial da ADPF 682, proposta pelo Conselho Federal da OAB, que buscava a declaração de um estado de coisas inconstitucional ante a autorização desenfreada de abertura de novos cursos de Direito no Brasil.

[3] Parafraseando Confúcio: "saber o que não se sabe é a verdadeira sabedoria".

[4] A reprovação já alcançou o patamar recorde de 92%: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2611200435.htm

[5] Apenas 161 Faculdades receberam o selo OAB Recomenda: Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-fev-01/veja-faculdades-receberam-selo-oab-recomenda

[6] Fala do Presidente da OAB SP, Dr. Caio Augusto Silva dos Santos.

[7] Desobediência Civil. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2003, p. 83.

[8] A Luta pelo Direito. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2000, p. 34.

[9] "O diplomado em Curso de Direito sabe o que é permitido e o que é proibido pelas leis. Possui, pois, o conhecimento básico de como se deve conduzir nos encontros e desencontros, nos acertos e desacertos, de quem é feita a trama da comunidade humana". Estudos, ed. Juarez de Oliveira, 2005, p. 5.

[10] Estudos. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2005, p. 5.

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