Opinião

Suspensões de prazo sem análise do juízo não são boas para a advocacia

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5 de junho de 2020, 16h06

No dia 25 de maio, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu, interpretando o artigo 3º, § 2º, de sua Resolução 314 de 2020 que basta a comunicação pelo advogado da impossibilidade de cumprir um prazo para impedir a preclusão temporal [1]. O relator concluiu que se trata de comunicação, não de pedido. O juízo não pode, portanto, apreciar a razoabilidade da justificativa. O pedido de providências foi formulado pela Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal (OAB-DF) e comemorado por ela como vitória da advocacia [2].

Em tempos normais, em que se procura aplicar o Código de Processo Civil, a justa causa para não praticar o ato processual também evita a preclusão. É o disposto no artigo 223 e parágrafos. A parte tem o ônus de provar esse fato, alheio à sua vontade, que a impede de cumprir o prazo. O juízo deve, por consequência, indeferir o pleito de novo prazo e declarar a preclusão temporal em três hipóteses: a) quando a parte não se desincumbir do ônus de provar o evento; b) quando o evento não for alheio à vontade da parte; e c) quando o evento não impedir efetivamente a prática do ato.

A regra de crise instituída pelo CNJ exclui a possibilidade de indeferimento: a comunicação do evento impeditivo pelo advogado basta. Exclui, portanto, a necessidade de provar. Mais: como esses elementos também não estão sujeitos à apreciação judicial, os requisitos de que o fato seja externo e efetivamente impeditivo também desapareceram. Basta a comunicação. Mas, como seu conteúdo não pode ser analisado, é uma comunicação sem referente. O requisito da suspensão do prazo, na prática, é apenas o ato volitivo do advogado. Por fim, se o indeferimento é vedado, o Poder Judiciário não poderá apreciar nem sequer os casos de má-fé e abuso de direito. A resolução, na sua mais recente interpretação, cria ainda outro requisito divergente do CPC, e curiosamente mais restrito: a comunicação precisa ser feita antes do fim do prazo.

É evidente que o CNJ criou um poderosíssimo instrumento protelatório. Nenhum advogado ignora que algumas partes têm interesse na inefetividade da Justiça. No processo, como muitos autores têm apontado [3], o tempo é um ônus: quem o suporta — em regra, o autor — é privado de usufruir do bem-da-vida em disputa enquanto o litígio durar. A duração excessiva do processo de qualquer natureza costuma beneficiar o demandado que não tem razão. Pior: o demandado, quando sabe que não tem razão, não raro lança mão de todos os expedientes suspensivos e impeditivos que puder para adiar a solução do caso. Nos processos de natureza cível, em particular, o demandante que tem razão, que tem direito ao bem-da-vida, mas não pode gozá-lo, é o prejudicado pelo curso do tempo.

Com a regra de crise, o réu sem razão, o executado que não quer pagar (algum executado quer pagar?), aqueles, enfim, que têm o ônus do tempo em seu favor poderão adiar indefinidamente a solução dos conflitos e a efetivação dessas soluções pela simples prática de atos potestativos por seus advogados.

Isso é bom para a advocacia? Talvez para aquela com clientes que ocupam com mais frequência a posição de demandados do que a de demandantes — como é o caso de vários agentes econômicos de maior expressão, como companhias telefônicas, companhias aéreas e instituições financeiras. E isso apenas até que precise ir à Justiça cobrar seus honorários. Para a advocacia que patrocina quem tem o ônus do tempo contra si, vitória são processos rápidos e efetivos, sem dilações indevidas.

Do ponto de vista normativo, a interpretação atribuída pelo CNJ à sua resolução viola a Constituição Federal. Formalmente, porque cria hipótese inovadora de suspensão de prazo, violando a competência privativa da União para legislar sobre Direito Processual (artigo 22, I, da Constituição). Materialmente, porque a garantia da razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII) não é compatível com um instrumento de protelação processual segundo o arbítrio de uma das partes. Ou, por outra, se um processo sem dilações indevidas é direito do jurisdicionado, excluir da apreciação jurisdicional a avaliação de se a dilação provocada por seu adversário é indevida viola a própria garantia de acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV).

Para garantir a efetividade da Justiça diante da decisão do CNJ, o juiz tem três opções: a) afirmando sua independência, dar à resolução interpretação diversa daquela atribuída e apreciar a adequação da justificativa no caso concreto; b) admitindo a interpretação dada pelo CNJ, fazer a declaração incidental de inconstitucionalidade da resolução e apreciar a adequação da justificativa no caso concreto; ou c) inverter o ônus do tempo mediante a concessão de tutela provisória, retirando o incentivo para as manobras protelatórias. Nos tribunais, em que o controle difuso se submete à reserva de plenário (artigo 97 da Constituição), as duas providências são necessárias: a declaração de inconstitucionalidade e a tutela provisória enquanto o jurisdicionado aguarda a manifestação do colegiado.

Com os inconvenientes da pandemia, os eventos que impedem o cumprimento dos prazos se tornaram, é claro, mais numerosos. Mas para essas situações a regra dos tempos normais dá solução: se a justificativa for adequada, o juiz poderá afastar a preclusão ou estender o prazo. Se não, não. A crise mudou muitas coisas, mas não é preciso inventar sempre um novo Direito. Em época de calamidade, mais do que nunca a sociedade precisa de um Direito efetivo. E se o sistema é o da vedação da autotutela, não há efetividade do Direito fora do Poder Judiciário. Em tempos como estes é que as ideias que tornam a Justiça inefetiva mais devem ser rechaçadas.

 


[1] Pedido de Providências nº 0003594-51.2020.2.00.0000. Essa decisão, aliás, está em contradição com a proferida na Consulta nº 0003155-40.2020.2.00.0000, a qual, interpretando o mesmo texto em relação ao caso específico dos Núcleos de Prática Jurídica (NPJs), concluiu que a justificativa deve ser avaliada pelo magistrado no caso concreto.

[2] https://www.oab.org.br/noticia/58162/oab-df-atua-e-prazos-de-determinados-processos-serao-suspensos-por-solicitacao-do-advogado

[3] Ver, por exemplo, MARINONI, Luiz Guilherme. La necesidad de distribuir la carga del tiempo en el processo. THEMIS: Revista de Derecho. n. 43, 2001, p. 45-51.

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