Opinião

Os impactos da Súmula Vinculante nº 58 do STF na Zona Franca de Manaus

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5 de junho de 2020, 20h07

Em sessão virtual, o plenário do Supremo Tribunal Federal aprovou por maioria a Súmula Vinculante nº 58, com o seguinte teor: "Inexiste direito a crédito presumido de IPI relativamente à entrada de insumos isentos, sujeitos à alíquota zero ou não tributáveis, o que não contraria o princípio da não cumulatividade".

O referido enunciado decorre da Proposta de Súmula Vinculante nº 26, formalizada desde 14 de abril de 2009, tendo por objeto a ausência de direito ao crédito de IPI em relação à aquisição de insumos não tributados ou sujeitos à alíquota zero, em respeito ao princípio da não-cumulatividade (artigo 153, §3º, II, CF), cuja origem do debate remonta aos julgamentos dos Recursos Extraordinários 353.657/PR e 370.682/SC.

Destaca-se que o enunciado sugerido inicialmente não incluía no verbete os insumos isentos, o que ocorreu no curso da tramitação da Proposta de Súmula Vinculante 26. Adicionalmente, o ministro Marco Aurélio destacou que os recursos ensejadores da consolidação do entendimento do plenário do Supremo Tribunal Federal não levaram em consideração o advento do artigo 11 da Lei nº 9.779, de 1999, dispositivo normativo que teria o condão de inovar o ordenamento jurídico e prejudicar a produção de um enunciado sumular em potencial conflito com um texto legal superveniente. Assim, o ministro manifestou-se contrariamente à edição da súmula.

Após amplo debate, o ministro Teori Zavascki pediu vista, em sessão realizada em 11 de março de 2015. Finalmente, agora em 2020, com nova composição, o tema voltou a julgamento do plenário, com a apresentação do voto-vista do ministro Alexandre de Moraes, que acompanhou a maioria dos ministros e gerou a aprovação da edição da Súmula Vinculante nº 58.

Diante da superveniência e amplitude do enunciado sumular, seria razoável questionar se a referida súmula superou o entendimento consolidado na tese de repercussão geral (Tema 322), fixada em 25 de abril de 2019 pelo mesmo órgão julgador, no sentido de que: "Há direito ao creditamento de IPI na entrada de insumos, matéria-prima e material de embalagem adquiridos junto à Zona Franca de Manaus sob o regime de isenção, considerada a previsão de incentivos regionais constante do artigo 43, § 2º, III, da Constituição Federal, combinada com o comando do artigo 40 do ADCT”. Entendemos que não é razoável prevalecer tal entendimento.

Inicialmente, destaca-se que durante toda a tramitação da proposta de súmula vinculante não houve debate acerca da aquisição de insumos originários da Zona Franca de Manaus.

Em verdade, a única referência ao tema decorreu de um aparte do ministro Toffoli, ainda em 2015, ao votar pela inconveniência da aprovação da proposta, pois se encontrava pendente 'de análise a questão dos insumos originários da Zona Franca de Manaus, cuja matéria teve sua repercussão geral reconhecida no RE nº 592.891/SP". Mesmo diante do questionamento, o tema não foi aprofundado ou objeto de apreciação do plenário do Supremo Tribunal Federal.

Assim, a aquisição de insumos originários da Zona Franca de Manaus e o precedente formado no Recurso Extraordinário nº 592.891/SP não foram objeto de apreciação do plenário do Supremo Tribunal Federal e, portanto, não são abarcados pela Súmula Vinculante nº 58. Até porque, como alerta Luiz Guilherme Marinoni "se a súmula vinculante é um enunciado escrito a partir da ratio decidendi de precedentes ou, excepcionalmente, de precedente que versaram uma mesma questão constitucional, é indesculpável pensar em adotá-la, revisá-la ou cancelá-la como se fosse um enunciado geral e abstrato, ou mesmo tentar entendê-la considerando-se apenas as ementas ou a parte dispositiva dos acórdãos que lhe deram origem" [1].

A tese de repercussão geral (Tema 322) está fundamentada em preceitos constitucionais distintos dos debatidos na Súmula Vinculante nº 58, especialmente os artigos 43, § 2º, III, e o artigo 40 do ADCT, enunciados que consagram a tutela constitucional da Zona Franca de Manaus.

A instituição da Zona Franca de Manaus teve por objetivo promover o desenvolvimento econômico da região, conforme determinação da Constituição Federal, que consagrou em seu artigo 3º, III, "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" como um dos objetivos fundamentais da República. Para tanto, a Constituição contemplou diversos meios para implementação do referido objetivo, dentre eles os incentivos regionais, que compreenderão "isenções, reduções ou diferimento temporário de tributos federais devidos por pessoas físicas ou jurídicas" [2] (artigos 43, 151 e 170, todos da CF/88).

Portanto, os casos são distintos, "seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante no precedente, seja, porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente" [3].

No julgamento do Recurso Extraordinário nº 592.891/SP prevaleceu a tese de que "o fato de os produtos serem oriundos da Zona Franca de Manaus reveste-se de particularidade suficiente a distinguir o presente feito dos anteriores julgados do Supremo Tribunal Federal sobre o creditamento do IPI quando em jogo medidas desonerativas" [4]. Adotou-se a técnica de distinção para estabelecer cláusula de exceção à orientação geral firmada pelo Supremo Tribunal Federal quanto à não cumulatividade do IPI, agora também refletida na Súmula Vinculante nº 58.

Ressalte-se, ainda, que a súmula vinculante pode versar sobre questão com repercussão geral reconhecida, conforme estabelece o artigo 354-E do RISTF: "A proposta de edição, revisão ou cancelamento de Súmula Vinculante poderá versar sobre questão com repercussão geral reconhecida, caso em que poderá ser apresentada por qualquer ministro logo após o julgamento de mérito do processo, para deliberação imediata do Tribunal Pleno na mesma sessão". Todavia, apesar se ser posterior ao julgamento do Recurso Extraordinário nº 592.891/SP, essa não foi a hipótese da edição da Súmula nº 58, que consolidou a orientação geral firmada pelo Supremo Tribunal Federal quanto à não cumulatividade do IPI em uma acepção lata, sem prejuízo da regra de exceção.

Assim, visando à unidade do Direito Constitucional, deve-se concluir que o conteúdo da Súmula Vinculante 58 convive harmonicamente com a tese de repercussão geral (Tema 322), fixada após julgamento do Recurso Extraordinário nº 592.891/SP, que trata especificamente da aquisição de insumos, matéria-prima e material de embalagem adquiridos junto à Zona Franca de Manaus, afastando questionamentos sobre o tema e a total insegurança jurídica.

Além dos efeitos jurídicos relacionados ao direito em vigor, o debate sobre o tema é relevante e atual, especialmente diante das propostas de emendas constitucionais que visam a simplificar a tributação do consumo. A PEC 45/2019 (Câmara dos Deputados) propõe a gradual redução dos incentivos da ZFM no prazo de transição de convivência do regime antigo com o novo regime simplificado a ser instituído. Por sua vez, a PEC 110/2019 (Senado Federal) anuncia a sua integral manutenção.

 


[1] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

[2] GRECO, Marco Aurélio. Reedição de medidas provisórias e abuso do poder de legislar – Incentivos à informática e ZFM (Parecer). Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 66, São Paulo: Dialética, mar/2001, págs. 130 e segs.

[3] DIDIER Jr., Fredie. BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil, vl. 2. 15 ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p. 611.

[4] Cf. a íntegra do acórdão no Link: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750909416

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