Direito do agronegócio

Armazenagem de produtos agropecuários pode ser tratada como insumo

Autor

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV-Direito SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

5 de junho de 2020, 8h00

Um tema interessante diz respeito ao direito de crédito a título de insumo, nos termos do art. 3º, II, das Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003, no tocante ao regime não cumulativo de PIS/Cofins, na contratação de seguro por empresas de armazéns gerais de produtos agropecuários.

Spacca
Como é de conhecimento, a Constituição Federal estabelece em seu  artigo 195, § 12 que: "a lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão não-cumulativas".

Ora, sendo a matriz constitucional do PIS e Cofins a receita[1], a não cumulatividade e o sistema de abatimento de créditos necessariamente deve restar atrelado também a esta. Deve existir para fins de PIS e Cofins uma não-cumulatividade em função da receita (artigo 195, I, "b", § 12).                   

A não-cumulatividade há de estar pautada em função da receita. E mais: como a noção de receita no regime não-cumulativo é ampla, não se restringindo ao faturamento (venda de mercadorias e/ou prestação de serviços), amplos serão também os reflexos de sua noção na não-cumulatividade para o PIS e Cofins para o reconhecimento de créditos[2].

Dentro desta perspectiva, a não cumulatividade constitucional há de ser por meio da: (i) — neutralidade fiscal, impedindo a cumulatividade (‘efeito cascata’), de sorte que inexista o gravame sobre a mesma operação nas etapas do ciclo produtivo, quando se trata de tributos plurifásicos; (ii) — a concessão de créditos, por meio de metodologia, que, efetivamente elimine a cumulatividade, cumprindo-a fielmente em sua plenitude, levando em consideração todas as etapas do ciclo de produção do contribuinte (perspectiva interna: todas as fases de sua atividade produtiva)  e do produto (perspectiva externa do bem, mercadoria ou serviço: todas as fases que envolvem o ciclo de elaboração até o consumidor final).

Além de o texto constitucional impor ao legislador a necessidade de cumprimento da não cumulatividade com a persecução da neutralidade fiscal e concessão de créditos, não se deve olvidar que este regime de tributação se tornou para o PIS/Pasep e Cofins regra geral. Equivale dizer: o regime não cumulativo, com a natural concessão de créditos visando à neutralidade fiscal se tornou a regra, como se constata a partir dos arts. 8º e 10, das Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003, respectivamente.    

Daí consequentemente dispor a legislação a respeito da possibilidade de créditos a serem abatidos para o recolhimento de tais contribuições.

Para a análise da questão do contrato de seguro, nos termos do art. 3º, das Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003, temos o inciso II, que trata do insumo:

Art. 3o Do valor apurado na forma do art. 2o a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a:

(…)

II – bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda, inclusive combustíveis e lubrificantes, exceto em relação ao pagamento de que trata o art. 2o da Lei no 10.485, de 3 de julho de 2002, devido pelo fabricante ou importador, ao concessionário, pela intermediação ou entrega dos veículos classificados nas posições 87.03 e 87.04 da Tipi”.     

A partir das premissas estabelecidas quanto a não cumulatividade à luz da Constituição, é possível afirmar que a expressão insumos, como o disposto no art. 3º, inciso II, das Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003, não comporta uma interpretação restritiva, mas, ao contrário, abrangente a fim de, realmente, dar cumprimento a finalidade objetivada pelo texto constitucional e a própria lei no sentido de impedir um tributo oneroso e cumulativo.

Por sua vez, quanto a insumo, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso repetitivo, nos autos do recurso especial n. 1221170/PR (temas 779 e 780), reconheceu a ilegalidade das Instruções Normativas da SRF ns. 247/2004 e 404/2005, restringiam de forma indevida os créditos no regime não cumulativo para PIS e COFINS no tocante ao insumo, nos termos do art. 3º, inciso II, das Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003:

TRIBUTÁRIO. PIS E COFINS. CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS. NÃO-CUMULATIVIDADE. CREDITAMENTO. CONCEITO DE INSUMOS. DEFINIÇÃO ADMINISTRATIVA PELAS INSTRUÇÕES NORMATIVAS 247/2002 E 404/2004, DA SRF, QUE TRADUZ PROPÓSITO RESTRITIVO E DESVIRTUADOR DO SEU ALCANCE LEGAL. DESCABIMENTO. DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE INSUMOS À LUZ DOS CRITÉRIOS DA ESSENCIALIDADE OU RELEVÂNCIA. RECURSO ESPECIAL DA CONTRIBUINTE PARCIALMENTE CONHECIDO, E, NESTA EXTENSÃO, PARCIALMENTE PROVIDO, SOB O RITO DO ART. 543-C DO CPC/1973 (ARTS. 1.036 E SEGUINTES DO CPC/2015). 1. Para efeito do creditamento relativo às contribuições denominadas PIS e COFINS, a definição restritiva da compreensão de insumo, proposta na IN 247/2002 e na IN 404/2004, ambas da SRF, efetivamente desrespeita o comando contido no art. 3o., II, da Lei 10.637/2002 e da Lei 10.833/2003, que contém rol exemplificativo.

2. O conceito de insumo deve ser aferido à luz dos critérios da essencialidade ou relevância, vale dizer, considerando-se a imprescindibilidade ou a importância de determinado item — bem ou serviço — para o desenvolvimento da atividade econômica desempenhada pelo contribuinte.

3. Recurso Especial representativo da controvérsia parcialmente conhecido e, nesta extensão, parcialmente provido, para determinar o retorno dos autos à instância de origem, a fim de que se aprecie, em cotejo com o objeto social da empresa, a possibilidade de dedução dos créditos realtivos a custo e despesas com: água, combustíveis e lubrificantes, materiais e exames laboratoriais, materiais de limpeza e equipamentos de proteção individual-EPI.

4. Sob o rito do art. 543-C do CPC/1973 (arts. 1.036 e seguintes do CPC/2015), assentam-se as seguintes teses: (a) é ilegal a disciplina de creditamento prevista nas Instruções Normativas da SRF ns. 247/2002 e 404/2004, porquanto compromete a eficácia do sistema de não-cumulatividade da contribuição ao PIS e da COFINS, tal como definido nas Leis 10.637/2002 e 10.833/2003; e (b) o conceito de insumo deve ser aferido à luz dos critérios de essencialidade ou relevância, ou seja, considerando-se a imprescindibilidade ou a importância de terminado item — bem ou serviço — para o desenvolvimento da atividade econômica desempenhada pelo Contribuinte.”[3]

Esta decisão do Superior Tribunal de Justiça, em nossa visão, fixa parâmetros para aplicação e interpretação do artigo 3º, II, das Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003: (i) — a noção da expressão insumo e o direito ao crédito decorrente de bens e serviços utilizados como tal não se restringe aos critérios do IPI, tendo maior amplitude; (ii) — as Instruções Normativas n. 247/2004 e 404/2005 são ilegais por restringirem esta amplitude; (iii) — seriam insumos aqueles bens e serviços que, direta ou indiretamente, por aspectos de essencialidade e/ou relevância participam do processo produtivo (atividade empresarial — antes durante e depois), conforme o caso concreto; (iv) — não há de se aplicar ao referido dispositivo o art. 111, do Código Tributário Nacional.

Levando em consideração a amplitude normativa concedida pelo Superior Tribunal de Justiça ao conceito jurídico indeterminado “insumo”, é preciso, assim, avaliar os desdobramentos deste posicionamento, sobretudo, pelo fato de que, como bem posto nesta mesma decisão, a casuística ainda se torna um aspecto importante para se reconhecer a essencialidade e/ou relevância.

Na mesma linha, a Procuradoria da Fazenda Nacional editou em cumprimento ao posicionamento do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA a Nota SEI nº 63/2018/CRJ/PGACET/PGFN-MF e PARECER NORMATIVO COSIT/RFB n.05, de 17 de dezembro de 2018.

Em tais condições, impossível se torna a legitimidade na interpretação restritiva ao conceito de insumos diante do claro equívoco metodológico e da ilegalidade existente, sendo forçosa a conclusão no sentido de que o conceito de insumo para fins de PIS e Cofins é abrangente (amplo), comportando todos os custos, despesas, gastos e dispêndios que contribuam de forma direta ou indireta para o exercício da atividade econômica (produção, industrialização, prestação de serviço e comércio) visando à obtenção de receita[4], salvo expressa previsão legal em sentido contrário.[5]

Equivale dizer: é reconhecido como insumo aquele bem e/ou serviço, adquirido de pessoa jurídica estabelecida no Brasil, que, visando à obtenção de receita que: (i) — seja utilizado direta ou indiretamente na atividade econômica do contribuinte; (ii) — com a finalidade de viabilizar a prestação de serviços, ou fabricação de bens ou ainda produtos destinados à venda; (iii) — possui uma relação relevância ou essencialidade (o que não significativa obrigatoriedade e/ou indispensabilidade) e inerência com a atividade econômica destinada à prestação de serviço, fabricação de produtos ou ainda venda; (iv) — relacionado a qualquer parte do ciclo ou etapa do processo produtivo do contribuinte.

Partindo de tais premissas, entendemos que as pessoas jurídicas que contratam seguro no exercício de sua atividade de armazenagem de produtos agropecuários, podem manter crédito de PIS/Cofins a título de insumo.

O sistema de armazenagem de produtos agropecuários está regido pela Lei n. 9.973/2000, a qual enuncia em seu art. 1º que:“As atividades de armazenagem de produtos agropecuários, seus derivados, subprodutos e resíduos de valor econômico ficam sujeitas às disposições desta Lei.”

Por sua vez, o art. 6º, da Lei n. 9.973/2000 preceitua que:

“Art. 6o O depositário é responsável pela guarda, conservação, pronta e fiel entrega dos produtos que tiver recebido em depósito.

§ 1o O depositário responderá por culpa ou dolo de seus empregados ou prepostos, pelos furtos, roubos e sinistros ocorridos com os produtos depositados, bem como pelos danos decorrentes de seu manuseio inadequado, na forma da legislação específica.

§ 2o O presidente, o diretor e o sócio-gerente da empresa privada, ou o equivalente, no caso de cooperativas, assim como o titular de firma individual, assumirão solidariamente com o fiel responsabilidade integral pelas mercadorias recebidas em depósito.

  • 3o O depositário e o depositante poderão definir, de comum acordo, a constituição de garantias, as quais deverão estar registradas no contrato de depósito ou no Certificado de Depósito Agropecuário – CDA. (Redação dada pela Lei nº 11.076, de 2004)

§ 4o A indenização devida em decorrência dos casos previstos no § 1o será definida na regulamentação desta Lei.

§ 5o O depositário não é obrigado a se responsabilizar pela natureza, pelo tipo, pela qualidade e pelo estado de conservação dos produtos contidos em invólucros que impossibilitem sua inspeção, ficando sob inteira responsabilidade do depositante a autenticidade das especificações indicadas.

§ 6o Fica obrigado o depositário a celebrar contrato de seguro com a finalidade de garantir, a favor do depositante, os produtos armazenados contra incêndio, inundação e quaisquer intempéries que os destruam ou deteriorem.

Referida legislação, sobretudo, no art. 6º, § 6º, expressamente, impõe ao depositário — aquele que exerce atividade de armazenagem — a responsabilidade pelos produtos e, deste modo, a necessidade de celebrar contrato de seguro.

Sendo a atividade voltada para o serviço de armazenagem, a contratação de seguro está totalmente relacionada ao seu objeto social e finalidade econômica, além de ser uma imposição legal expressa da Lei que regula as atividades de armazenagem de produtos agropecuários.

Deste modo, além de ser essencial, é relevante ao exercício de sua atividade, uma vez que, além de a contratação do seguro participar da própria prestação de serviço, a Lei n. 9.973/2000 exige expressamente nos termos do art. 6º, § 6º.

Um serviço contratado por imposição legal que se relaciona diretamente à prestação do serviço de armazenagem há de ser considerado insumo.

Em tais condições, possível concluir que a contratação de seguro permite o crédito de PIS/Cofins, no regime não cumulativo, por ser considerado insumo, conforme art. 3º, II, das Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003, eis decorre de imposição legal ("relevância"- art. 6º, § 6º, da Lei n. 9.973/2000) e está diretamente relacionado à prestação de serviço de armazenagem.

Apesar de tais conclusões, cabe esclarecer que a CÂMARA SUPERIOR DE RECURSOS FISCAIS DO CONSELHO ADMINISTRATIVO DE RECURSOS FISCAIS — CARF — possui decisões no sentido de impedir o crédito no tocante ao seguro na armazenagem:

“CONTRIBUIÇÃO PARA O FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL (COFINS)
Período de apuração: 01/04/2008 a 30/06/2008
PIS E COFINS. REGIME NÃO CUMULATIVO. CRITÉRIO DA ESSENCIALIDADE E RELEVÂNCIA. DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE INSUMOS À LUZ DOS CRITÉRIOS DA ESSENCIALIDADE OU RELEVÂNCIA.
(…)
CRÉDITOS. NÃO CUMULATIVIDADE. DESPESAS INCORRIDAS SEGUROS PARA ARMAZENAGEM DE MERCADORIAS. IMPOSSIBILIDADE.Despesas de seguros na armazenagem de mercadorias não são insumos do processo produtivo, pois são arcadas após o seu encerramento.”[6]

Segundo posicionamento da Câmara Superior não seria possível o crédito da contratação do seguro como insumo, de forma autônoma, não embutido no serviço de armazenagem, eis que tal despesa se dá após o "encerramento" do processo produtivo.

Este precedente não se aplica à hipótese em que a pessoa jurídica é prestadora de serviço de armazenagem e contrata o seguro, seguindo a legislação regulatória do setor. Esta situação concreta é diversa do precedente do Carf, o qual é inaplicável para restringir o crédito da consulente.

Concluímos, assim, pela possibilidade de crédito de PIS e Cofins, no regime não cumulativo, quanto à contratação de seguro para prestação de serviço de armazenagem de produtos agropecuários, uma vez que se trataria de insumo, conforme art. 3º, II, das Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003.


[1] – Não se olvide, ainda, conforme Leis ns. 10.637/2002 e 10.833/2003, que a legislação se utiliza de um amplo conceito de receita (art. 1º).

[2] –  O que se quer afirmar é que se fosse a tributação somente sobre o faturamento (sentido estrito), isto implicaria em reflexos no regime não-cumulativo e os créditos. Obviamente, se fosse com base somente no faturamento, seria mais restrita, mas como se trata de receita, a amplitude de abrangência é claramente maior.

[3] – STJ, Resp. 1221170/PR, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/02/2018, DJe 24/04/2018.

[4] – CALCINI, Fábio Pallaretti. PIS e Cofins não-cumulativo. Algumas ponderações. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, v. 176, 2010. p. 41-64.

[5] – A fim de evitar equívocos na interpretação, as vedações expressas de créditos estão no art. 3º, §§  1º, 2º e 3º, das Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003.

[6] – CARF, CSRF, Ac. 9303-009.991, CSRF / 3ª Turma, j. 22/01/2020. Neste sentido precedente anterior: CARF, CSRF, Ac. 9303-006.875, j. 12/06/2018.

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    é advogado tributarista, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. É doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex–membro do Carf.

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