Opinião

Pandemia e conflito, com esperança

Autor

  • Néfi Cordeiro

    é ministro do Superior Tribunal de Justiça presidente da 6ª Turma (matéria criminal) doutor e mestre em Direito pela UFPR com concentração na área criminal.

4 de junho de 2020, 18h07

A pandemia da Covid-19 surpreende pela gravidade da doença e, especialmente em nosso país, pela evolução dos conflitos — pessoais e institucionais.

Spacca
A teoria da mediação há muito esclarece que conflito é diferença, é a reação ao diferente agir, ao diferente pensar, como chance de amadurecimento, de aprimoramento e evolução — pessoal e coletiva.

É a moderna teoria do conflito, admitindo que sendo ele inevitável a todas relações humanas, não pode ser tido como necessariamente negativo, mas através de um exame neutro ser admitido como a mera constatação das diferenças entre opiniões ou interesses. Pode, assim, o conflito ser usado como algo benéfico, para a compreensão e admissão das diferenças, para o progresso: "Todo polimento é feito por atrito. Pegamos a música do violino por atrito e saímos do estado selvagem quando descobrimos o fogo por atrito" (Follett, M. P. Mary Parker Follett prophet of management. 2003: Beard Books).

Essa é reflexão necessária em momento social de confronto de poderes, de invasões de competência, de intolerância pessoal e funcional. É preciso relembrar nossos mandamentos fundamentais de vida, a tolerância e compreensão do outro, a admissão de que somos sociedade e evoluímos justamente por nossas diferenças.

Se normalmente já é tormentosa a concretização de nossa democracia participativa e republicana, fundada na liberdade e igualdade entre os cidadãos, pelas dificuldades de serem ouvidas as vozes das minorias, pelo formato de eleições dos mais visíveis (ainda que com forte apoio em custosa propaganda), pela precária prestação de contas dos mandatários do poder, em momento de pandemia a igualdade mesmo formal tende a desaparecer, a representatividade esmaece ainda mais.

Embora presente expressamente em nossa Carta Magna a liberdade do mercado, já nosso preâmbulo torna clara a opção pela democracia republicana de Habermas (HABERMAS, Jürgen. Três modelos de democracia. Sobre el concepto de una política deliberativa. El ojo del Huracan, 1993), voltada à promoção dos direitos sociais, em uma sociedade fraterna, fundada na harmonia social [1].

A divisão de competências é repartição de trabalho, mas também é definição de limites e de necessários controles a que todos agentes se encontram vinculados. Ninguém é maior do que sistema constitucionalmente estruturado de gestão pública; nem pode ser.

Se a tendência ao abuso é natural ao ser humano [2], precisamos todos de contenção.

Nossa realidade nestes tempos de pandemia é repleta de exemplos preocupantes. O Judiciário decide monocraticamente questões de soberania nacional e intervém na execução de políticas públicas, sem conhecer orçamento ou parâmetros técnicos mesmo assistido por peritos, jamais o juiz terá o alcance de conhecimento do gestor especialista. O Legislativo demora na função condutora da sociedade, com exagerado cuidado a prejuízos eleitorais, preocupando-se em excesso com controvérsias internas do poder (poder pelo poder) e relutando na plena fiscalização do Executivo. O Executivo prefere o isolamento da gestão e o confronto para demonstração de sua prevalência funcional [3].

A sociedade replica essas condutas. Juízes do Brasil, cautelarmente, e até sem ouvida da parte contrária, determinam a paralisação de relevantes serviços públicos, determinam a concessão de medicamentos experimentais e gerem o funcionamento de atividades na pandemia. Gestores decidem medidas terapêuticas sem fundamentação científica e sem uniformização. Os homens não aceitam as diferenças.

É triste constatar que pessoas de todas origens e pensamentos se igualam na intolerância. Agridem, literalmente, o diferente, mesmo numa sociedade que se proclama constitucionalmente "fraterna", "fundada na harmonia social". Admitir o diferente pensar e o diferente agir é princípio de existência social mesmo porque ninguém é igual.

Na Justiça, não somente se ataca o diferente, como se forma dele compreensão apenas pelo interesse nos resultados e, de novo, isso não se dá apenas com pessoas que pouco compreendem o sistema constitucional de competências [4]

Mesmo entre juristas, muitos defendem o ativismo judicial no casamento homoafetivo, mas o criticam na criminalização da homofobia; elogiam a rapidez da decisão democrática que lhe dá a vitória processual, mas repudiam esse formato apenas na hipótese denegatória. Justiça exige segurança de procedimentos e seu resultado não é por si mostra de qualidade ou defeitos do julgador.

A crítica social e, inclusive, ao Judiciário é necessária. Não se alteram compreensões jurídicas por reclamos do momento, mas o repensar coletivo estável deve influenciar também a definição do justo. Seja a crítica provinda de mandatários do poder, seja por movimentos sociais espontâneos, é sempre louvável exercício de preocupação por melhorias sociais.

Menos válida, porém, é a pessoalização ofensiva a quem cumpre o dever de julgar. Quando um dignitário diz que o ministro é um abusador, o investigado se vê com igual direito de ofender e de não acatar a decisão judicial; se a qualidade do juiz é medida pelo resultado a mim benéfico de sua decisão, a ele admiro hoje e detesto amanhã. A validade e necessidade da crítica a todos agentes do poder não se confunde com a realização de ofensas, prejudiciais à harmonia e ao exercício pleno das funções públicas.

Se o abuso é natural a todo poder humano, limites e controles são imprescindíveis a todos — pessoas e instituições. Os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo não possuem apenas competências formais, mas áreas específicas de atuação, sujeitas a controle interno e externo, que em nada lhes diminui — ao contrário, a todos eleva como sistema estruturado de competências da gestão do poder nacional.

Já sendo admitida como difícil a harmonia entre poderes, entre instituições e mesmo entre pessoas da elite intelectual e social , ainda mais complexa é a democracia para os necessitados sociais.

A coculpabilidade proposta por Zaffaroni [5] como coparticipação estatal na responsabilização por crimes quando deixa de permitir iguais condições sociais entre os cidadãos, induzindo os menos favorecidos à pratica de crimes, torna-se especialmente preocupante em nossos dias. Na pandemia o "fique em casa" é morte por fome a quem vive do pão ganho a cada dia, que mesmo com comércios reabertos sente a redução da população compradora, que mesmo com auxílio emergencial tem dificuldades para obtê-lo. É a proteção, sem novidades, à elite.

Ainda pior a é situação dos apenados. A acumulação de pessoas em pequeno espaço, as dificuldades de higiene e de tratamento médico, tornam o ambiente prisional local de grande risco de contaminação e de precárias condições de tratamento. Há recomendação de cautela e flexibilização do Conselho Nacional de Justiça [6], os gestores do sistema carcerário têm procurado isolar contaminados e tratar doentes, as decisões judiciais afastam das prisões condenados admitidos como de menor risco social [7], mas ainda é enorme a quantidade de presos confinados em precárias condições para o enfrentamento da Covid-19.

Nessa crise de tolerância, a mídia informa e conforma a opinião popular. De mídias interessadas e quais (por critérios publicitários ou ideológicos) não seriam? a maiorias inventadas (até por "robôs" nas redes sociais), as pessoas registram o diferente como inimigo, reproduzem a desinformação e proliferam o ódio.

Se não é simples às instituições do poder admitir limites e aceitar controles, se as pessoas odeiam o diferente pensar, se as mídias sociais acabam por replicar e fazer crescer o isolamento e não pela pandemia há de existir saída, há de existir esperança.

A fé no futuro é a motivação da humanidade.

Desde as ações do homem isolado aos movimentos coletivos em sociedade, a esperança nos une em ideais. Se o otimismo é a convicção do resultado positivo, a esperança é admiti-lo mesmo quando improvável. Não é racional, não é tampouco idealismo sonhador, é a felicidade por simples perspectiva.

Em tempos de pandemia e conflito, é preciso renovar esperanças na força e harmonia das instituições, na tolerância entre as pessoas. Esperança em que se cumpram os mandamentos constitucionais de limites e controles institucionais, esperança na sociedade fraterna e harmoniosa. Esperança no homem.

Em interessante motivação, Peter Susemihl, relata uma história vinda da América do Norte:

Uma noite, o velho índio Cherokee contava ao seu neto sobre a luta que acontece dentro das pessoas.

"A luta é entre dois lobos dentro de nós".

"Um é mau: raiva, inveja, arrependimento, ganância, arrogância, autocomiseração, culpa, ressentimento, inferioridade, mentira, falso orgulho, superioridade e ego".

"O outro é bom: alegria, paz, amor, esperança, serenidade, humildade, bondade, benevolência, empatia, generosidade, verdade, compaixão e fé".

O neto pensou por um minuto, e então perguntou: "Que lobo ganha?".

O velho índio simplesmente respondeu: "Aquele que você alimentar".

Entre tantos princípios constitucionais a serem neste momento relembrados para a melhoria da sociedade, talvez um único, uniformizador, baste: humanismo. É o homem perceber-se e aos demais como iguais em dignidade e opções de vida, é o juiz admitir seu erro, passível de reforma recursal, é o legislador cumprindo em plenitude o mandado cívico recebido, é o executivo instrumentalizando impessoalizadamente a concreção do bem comum.

Serve a pandemia como momento de um repensar universal humano. Nos afastamos do vizinho, mas nos aproximamos do mundo na tecnologia; nos distanciamos pelo trabalho e entretenimento online, mas talvez nunca tenhamos nos aproximado tanto daqueles com que coabitamos. Nos preocupamos em sobreviver, mas sentimos a dor de outros que sequer possuem opção de isolamento…

A democracia participativa republicana precisa, por todos, ser garantida e avolumada. A responsabilidade cívica é imprescindível como dever de agir da função: todos agentes públicos limitados na lei, mas cumprindo-a à inteireza, tendo o bem público como permanente propósito.

É momento de esperança baseada na humanidade, concretizando a sociedade constitucionalmente idealizada como fraterna e harmônica. As diferenças de pensar e agir apenas nos identificam, não nos afastam.

Em tempos de pandemia, seja o isolamento social o único admitido, não o isolamento de compreensões, de tolerância e da boa vontade.

Sonho? Esperança.

 


[1] PREÂMBULO

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

[2] O poder tem a tendência a se corromper e o absoluto poder corrompe absolutamente… Meu dogma é a geral maldade dos homens portadores de autoridade; são os que mais se corrompem. (Lord Acton, 1843-1902)

[3] Tratando do Presidente Donald Trump, a análise feita por Levitsky e Ziblatt é válida para nossa realidade brasileira:

"Enquanto negócios familiares e esquadrões de exércitos podem ser governados por ordens, democracias exigem negociações, compromissos e concessões. Reveses são inevitáveis, vitórias são sempre parciais. Iniciativas presidenciais podem morrer no Congresso ou ser bloqueadas por Tribunais. Todos os políticos se veem frustrados por essas restrições, mas os democráticos sabem que têm de aceitá-las. Eles são capazes de vencer a torrente constante de críticas. Para os outsiders, porém, sobretudo aqueles com inclinações demagógicas, a política democrática é com frequência considerada insuportavelmente frustrante. Para eles, freios e contrapesos são vistos como uma camisa de força. Como o presidente Fujimori, que não tinha estômago para a ideia de ter de almoçar com líderes do Senado toda vez que quisesse aprovar uma lei, os aspirantes a autoritários têm pouca paciência com o dia a dia da política da democracia. E, como Fujimori, querem se libertar".

(LEVITSKY, Steven. ZIBLATT, Daniel, Pg. 80)

[4] Ainda de Levitsky e Ziblatt:

"Para melhor compreender como autocratas eleitos minam sutilmente as instituições, é útil imaginarmos uma partida de futebol. Para consolidar o poder, autoritários potenciais têm de capturar o árbitro, tirar da partida pelo menos algumas das estrelas do time adversário e reescrever as regras do jogo em seu benefício, invertendo o mando de campo e virando a situação de jogo contra seus oponentes.

É sempre bom ter os árbitros do seu lado. Estados modernos possuem várias agências com autoridade para investigar e punir delitos tanto de funcionários ou mandatários públicos como de cidadãos comuns. Entre elas figuram o sistema judiciário, os órgãos de imposição da lei, os serviços de inteligência e as agências reguladoras e tributárias. Em democracias, essas instituições são destinadas a servir como árbitros neutros. Para autoritários potenciais, as instituições judiciárias e policiais representam, assim, tanto um desafio quanto uma oportunidade. Se elas permanecem independentes, tem a capacidade de denunciar e punir abusos governamentais. Este é o trabalho do árbitro, impedir fraudes. Não obstante, se controladas por sectários, essas instituições podem servir aos objetivos do aspirante a ditador, protegendo o governo de investigações e processos criminais que possam levar ao seu afastamento do poder. O presidente pode infringir a lei, ameaçar direitos civis e até violar a Constituição sem ter que se preocupar (…)".

(LEVITSKY, Steven. ZIBLATT, Daniel. Pg. 81)

[5] "Todo sujeito age numa circunstância dada e com um âmbito de autodeterminação também dado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘co-culpabilidade’, com a qual a própria sociedade deve arcar. Tem-se afirmado que este conceito de coculpabilidade é uma ideia introduzida pelo direito penal socialista. Cremos que a coculpabilidade é herdeira do pensamento de Marat e, hoje, faz parte da ordem jurídica de todo Estado Social de Direito, que reconhece direitos econômicos e sociais, e, portanto, tem cabimento no Código Penal mediante a disposição genérica do artigo 66".

Zaffaroni e Pierangelli (p. 545, 2019)

[6] RECOMENDAÇÃO No 62, DE 17 DE MARÇO DE 2020.

Recomenda aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo.

[7] Excepcionalmente até de modo coletivo, como no HC 575.495/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Jr, julgado 6/6/20:

'4. A revogação dos benefícios concedidos aos reeducandos elencados na petição inicial configura flagrante ilegalidade, sobretudo diante do recrudescimento da situação em que estavam na execução da pena, todos em regime semiaberto, evoluídos à condição menos rigorosa, trabalhando e já em contato com a sociedade.

5. Diversos Juízos da Execução Penal de comarcas mineiras adotaram medidas preventivas de combate à pandemia da Covid-19 extremamente restritivas, as quais não levaram em conta os princípios norteadores da execução penal (legalidade, individualização da pena e dignidade da pessoa humana), bem como a finalidade da sanção penal de reinserção dos condenados ao convívio social.

6. A suspensão do exercício do trabalho externo aos reeducandos do regime semiaberto trouxe uma degradação à situação vivida por esses custodiados, que diariamente saíam do estabelecimento prisional para trabalhar, mas, agora, foram obrigados a nele permanecer em tempo integral, o que manifestamente representa uma alteração na situação carcerária de cada um dos atingidos pela medida de extrema restrição.

7. O recrudescimento da situação prisional somente é admitido em nosso ordenamento jurídico como forma de penalidade, em razão de cometimento de falta disciplinar, cuja imposição definitiva exige prévio procedimento disciplinar, com observância dos princípios constitucionais, sobretudo da ampla defesa e do contraditório.

8. É preciso dar imediato cumprimento à citada recomendação do Conselho Nacional de Justiça, como medida de contenção da pandemia mundialmente causada pelo referido coronavírus (Covid-19), notadamente o disposto no inc. III do art. 5º da citada Resolução n. 62/CNJ, que dispõe sobre a concessão de prisão domiciliar em relação a todas as pessoas presas em cumprimento de pena em regime aberto e semiaberto, mediante condições a serem definidas pelo Juiz da execução.

9. Ordem concedida para impor o regime domiciliar, especificamente aos reeducandos do sistema prisional do Estado de Minas Gerais que cumprem pena em regime semiaberto e aberto, que tiveram suspenso o exercício do trabalho externo, como medida preventiva de combate à pandemia, desde que não ostentem procedimento de apuração de falta grave. A ordem deve ser implementada pelos Juízos de Execuções de cada comarca de Minas Gerais, que deverão fixar as condições do regime domiciliar, considerando a ressalva aqui definida, bem como a situação daqueles que têm contrato de trabalho vigente, de modo a permitir-lhes a sua continuidade. Ficam ratificadas as medidas liminares deferidas nos autos. Deferido o pedido de extensão constante da Petição de n. 268.094/2020, apresentado pela Defensoria Pública do Distrito Federal, em virtude da comprovação da similitude fático-jurídica com o caso do sistema prisional ora julgado, nos termos do art. 580 do Código de Processo Penal. Parecer ministerial acolhido".

Autores

  • é ministro do Superior Tribunal de Justiça, presidente da 6ª Turma (matéria criminal), doutor e mestre em Direito pela UFPR, com concentração na área criminal.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!