Opinião

O interesse público já não repele o privado

Autor

  • Felipe Herdem Lima

    é mestre em Direito da Regulação pós-graduado em Direito Empresarial autor dos livros: Liquidação Extrajudicial e seu devido processo administrativo Direito Bancário: Conceitos básicos Sistema Financeiro Nacional Contemporâneo: regulação e desafios; Resolução Bancária: Aspectos controversos e Novas Tendências do Sistema Financeiro Nacional; e sócio do escritório Herdem & Latini Advogados.

4 de junho de 2020, 14h05

Na vigência do modelo de Estado liberal, reconheceu-se que, em determinadas situações, era necessário e útil à Administração Pública recorrer à forma contratual para realizar algumas de suas funções [1]. Entretanto, essa circunstância não permitiu, de imediato, a aceitação de uma categoria contratual no Direito Administrativo brasileiro [2]. A literatura, em especial a francesa, tratou os contratos celebrados com a Administração como atos de gestão, devendo estar submetidos ao Direito privado, concepção que valeu até a teoria do serviço público [3].

De modo que o recuo do Estado-providência e, por conseguinte, a devolução à sociedade de um papel ativo na condução dos negócios públicos demandaram o desenvolvimento de novas formas de concretizações das relações administrativas, posto que "os modelos autoritários de execução da função administrativa, centrados no ato administrativo, já não comportavam mais a integralidade do fenômeno administrativo" [4]. Em sentido semelhante, Eduardo García de Enterría observa que o ato administrativo, embora assegure eficazmente a submissão, "é incapaz de suscitar o entusiasmo e o desejo de colaboração" [5].

Destarte, em uma sociedade fragmentada, não existe espaço para a crença em um único interesse público superior, fato que tornou possível a abertura para avaliação e consideração dos diversos interesses existentes, característica da complexidade da sociedade atual. Como observa Ernesto Sticchi Damiani, "o interesse público já não repele o privado" [6].

Parcela da literatura trabalha a consensualidade administrativa como uma alternativa à imperatividade e à unilateralidade [7]. Costuma-se realizar um paralelo também com um incremento da participação, eficiência e transparência administrativa.           

Tratando sobre o desenvolvimento do fenômeno consensual no Direito Administrativo, Diogo de Figueiredo Moreira Neto parte de uma reconstrução de uma visão menos autoritária, menos arrogante e mais humana, e por isso mais próxima, mais eficiente e socialmente controlada. Diretamente influenciado por Paolo Grossi, o autor é parte de uma premissa social e ética e trabalha com os conceitos da supremacia da identidade, da integridade e da liberdade. Adota-se uma premissa de que a Justiça é um valor capital, tendo a sua origem na sociedade, não devendo, portanto, ser monopolizada pelo Estado [8]. Sobre o tema, o autor destaca a afirmação (após a Segunda Guerra) de quatro vetores principiológicos: os direitos fundamentais, a subsidiariedade, a participação e a Constituição como ordem de valores que influenciaram diretamente a abertura do fenômeno consensual [9].

Assim, para o autor em referência, os direitos fundamentais exerceram um papel determinante na promoção do reequilíbrio das relações entre Estado e sociedade, a subsidiariedade como fator fundamental para uma redistribuição dos papéis do indivíduo, dos grupos sociais e das instituições políticas em um processo contínuo de desmonopolização do poder, o aumento da participação da sociedade nas relações estatais, principalmente como fonte legitimadora desta última e a contribuição da Constituição como ordem de valores e estrutura jurídica das novas relações entre sociedade e Estado [10].

Por conseguinte, a consensualidade deve ser vista como uma técnica de gestão administrativa [11]. Nesse sentido, Juliana Bonacorsi Palma reforça que "a consensualidade consiste em uma técnica de gestão cujo instrumento de formalização corresponde ao acordo administrativo" [12] e conclui que " o acordo administrativo consiste em um dos meios para satisfação das finalidades públicas que a Administração tem ao seu dispor" [13].

Fenômeno muito trabalhado pela doutrina e associado como um efeito positivo do consensualismo é o incremento da participação administrativa, em especial em relação a abertura procedimental, que torna o processo mais harmônico e eficiente, já que permite que o interesse público dialogue com a satisfação de outros interesses privados envolvidos. Outra contribuição da consensualidade usualmente apontada é a transparência das atividades administrativas, uma vez que é "preferível, por óbvio, que os interesses privados associados à Administração Pública sejam devidamente identificados em um acordo formal do que, como ocorre por vezes, acertados em prévias negociatas de bastidores" [14].

Por fim, a legitimação também é outra consequência, já que o consenso, por sua vez, supostamente garante a autoridade que nele busca o seu fundamento, colaborando para a construção de uma nova legitimação da Administração Pública. Também aliada à legitimidade, pode-se destacar a estabilidade das relações administrativas, tendo como consequência uma maior segurança jurídica.

 


[1] BAPTISTA, Patrícia. Transformações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 31.

[2] Id.

[3] Id.

[4] Id.

[5] ENTERRIA, Eduardo García de; RODRÍGUEZ, Tómas Ramón Fernández. Curso de Derecho Administrativo. vol. I. 14ª ed. Madrid: Civitas, 2008, p. 662.

[6] DAMIANI, Ernesto Sticchi. Attivitá Amministrativa Consensuale e Accordi di Programma. Milano: Giuffrè, 1992.

[7] Neste sentido ver BAPTISTA, Patrícia. Op. cit. p.263 e PALMA, Juliana Bonacorsi. Sanção e Acordo na Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 39

[8] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Poder, Direito e Estado: o direito administrativo em tempos de globalização. Belo Horizonte: Fórum, 2011. (Capítulo 3-2º e 3º Ensaios).

[9] Id.

[10] Ibid. p. 320-324.

[11] BAPTISTA, Patrícia. Op. cit. p. 273.

[12] PALMA, Juliana Bonacorsi. Op. cit. p.112.

[13] Id.

[14] BAPTISTA, Patrícia. Op. cit. p. 273.

Autores

  • Brave

    é sócio do escritório GFX Advogados, professor do FGV Law Program, doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

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