Opinião

Sociedade espera do Supremo a modulação dos efeitos das decisões judiciais

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4 de junho de 2020, 9h04

A questão não é nova, mas sempre atual. A modulação dos efeitos de decisões judiciais se trata de faculdade ou obrigação? Contextualizando, o assunto se encontra na pauta do Supremo na discussão do Tema 992, na seara do Recurso Extraordinário (RE) nº 960.429/RN, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes.

Em março de 2020, o STF decidiu, por maioria de votos — vencido o ministro Edson Fachin que "compete à Justiça Comum processar e julgar controvérsias relacionadas à fase pré-contratual de seleção e de admissão de pessoal e eventual nulidade de certame em face da administração pública direta e indireta, nas hipóteses em que adotado o regime celetista de contratação de pessoal". Nos termos da ata de julgamento, não participou da votação da tese a ministra Carmen Lúcia. Ausentes, justificadamente, o ministro Roberto Barroso e, por motivo de licença médica, o ministro Celso de Mello. Isto é, dos 11 ministros do Supremo, três deles não se manifestaram acerca da questão debatida em plenário.

Segundo a notícia veiculada no site da corte, a matéria está sendo discutida no Recurso Extraordinário (RE) nº 960.429/RN, com repercussão geral reconhecida no Tema 992, e a solução definitiva será aplicada em mais de 1,5 mil casos semelhantes sobrestados em outras instâncias. Além disso, orientará juízes e tribunais de todo o país [1].

Em que pese o acórdão ainda não ter sido publicado, o amicus curiae Associação Nacional dos Advogados da Caixa Econômica Federal (ADVOCEF) já opôs embargos de declaração com pedido urgente de efeito suspensivo, com o argumento de que muitos juízes e tribunais do Brasil têm aplicado o entendimento da corte no Tema 992, tão logo tomaram ciência do respectivo julgamento pelos meios de comunicação. Não é o objeto deste artigo discutir os pressupostos de admissibilidade do respectivo recurso, dado que apresentado antes da publicação do acórdão. Essa é outra discussão.

O que se busca averiguar é o argumento lançado pelo amicus curiae no sentido de que cabe ao STF realizar a modulação dos efeitos da decisão judicial colegiada tomada no Tema 992, haja vista que teria ocorrido uma mudança abrupta da jurisprudência do Supremo (mutação constitucional). Para tanto, citou nos aclaratórios os seguintes julgados, entre outros de ambas as turmas da corte, que fixam a competência da Justiça do Trabalho, e não da Justiça Comum, para casos desse jaez tratados no Tema 992:

"DIREITO MATERIAL E PROCESSUAL DO TRABALHO. RECURSO DE REVISTA. EMPRESA PÚBLICA. CONCURSO PÚBLICO. FASE PRÉ-CONTRATUAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DO CPC/1973. CONSONÂNCIA DA DECISÃO RECORRIDA COM A JURISPRUDÊNCIA CRISTALIZADA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO QUE NÃO MERECE TRÂNSITO. REELABORAÇÃO DA MOLDURA FÁTICA. PROCEDIMENTO VEDADO NA INSTÂNCIA EXTRAORDINÁRIA. AGRAVO MANEJADO SOB A VIGÊNCIA DO CPC/2015. 1. O entendimento da Corte de origem, nos moldes do assinalado na decisão agravada, não diverge da jurisprudência firmada no Supremo Tribunal Federal. Compreensão diversa demandaria a reelaboração da moldura fática delineada no acórdão de origem, a tornar oblíqua e reflexa eventual ofensa à Constituição, insuscetível, como tal, de viabilizar o conhecimento do recurso extraordinário. 2. As razões do agravo regimental não se mostram aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão agravada. 3. Agravo regimental conhecido e não provido, com aplicação da penalidade prevista no art. 1.021, § 4º, do CPC/2015, calculada à razão de 1% (um por cento) sobre o valor atualizado da causa. (STF – ARE: 969.781 DF, Relatora: Min. Rosa Weber, Data de Julgamento: 29/11/2016, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-259 DIVULG 05/12/2016 PUBLIC 06-12-2016)

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. FASE PRÉCONTRATUAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. CURSO DE FORMAÇÃO. RECONHECIMENTO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO. LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA REFLEXA. FATOS E PROVAS. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. É pacífico o entendimento, nas duas Turmas da Corte, de que compete à Justiça laboral o julgamento das controvérsias nas quais se discutem questões afetas à fase pré-contratual relativas às pessoas jurídicas integrantes da administração indireta. 2. Para dissentir das conclusões do Tribunal de origem no tocante ao reconhecimento do vínculo empregatício, seria necessário o reexame da legislação infraconstitucional pertinente, assim como dos fatos e das provas dos autos, o que é inviável em recurso extraordinário. Incidência das Súmulas nºs 279 e 636/STF. 3. Agravo regimental não provido. 4. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC, pois não houve fixação prévia de honorários advocatícios na causa (ARE 972.204-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 29.8.2016)".

A par dessa discussão, o Código de Processo Civil (CPC) prevê no seu artigo 926 que "os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente". Aqui se vê o uso do verbo "manter", o que, evidentemente, recomenda um dever e não uma faculdade. Noutras palavras, a jurisprudência deve ser uniformizada e mantida estável, íntegra e coerente.

Igualmente, o artigo 927, § 3º, da norma processual, prescreve: "Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica".

Essa perspectiva também é encontrada na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB)  Decreto-Lei nº 4.657/1942 —, segundo a qual: "Artigo 23 A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais. (…) Artigo 30 As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas".

O próprio Supremo, ao julgar o Tema 335 no Recurso Extraordinário nº 630.733/DF, também sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, decidiu assim:

"SEGURANÇA JURÍDICA

No caso concreto, no entanto, o recorrido realizou a prova de aptidão física de segunda chamada em razão de liminar concedida pelo poder judiciário em 2002, confirmada pela sentença (fl. 215-218) e pelo acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (fl. 289-297), tendo sido empossado há quase dez anos.

Em casos como este, em que se altera jurisprudência longamente adotada, parece sensato considerar seriamente a necessidade de se modularem os efeitos da decisão, com base em razões de segurança jurídica. Essa tem sido a praxe neste Supremo Tribunal Federal, quando há modificação sensível de jurisprudência.

(…)

Ressalte-se, neste ponto, que não se trata aqui de declaração de inconstitucionalidade em controle abstrato, a qual pode suscitar a modulação dos efeitos da decisão mediante a aplicação do art. 27 da Lei 9.868/99. O caso é de substancial mudança de jurisprudência, decorrente de nova interpretação do texto constitucional, o que impõe ao Tribunal, tendo em vista razões de segurança jurídica, a tarefa de proceder a ponderação das consequências e o devido ajuste do resultado, adotando a técnica de decisão que possa melhor traduzir a mutação constitucional operada.

(…)

Nesses casos, fica evidente que o Tribunal não poderá fingir que sempre pensara dessa forma. Daí a necessidade de, em tais casos, fazer-se o ajuste do resultado, adotando-se técnica de decisão que, tanto quanto possível, traduza a mudança de valoração. No plano constitucional, esses casos de mudança na concepção jurídica podem produzir uma mutação normativa ou a evolução na interpretação, permitindo que venha a ser reconhecida a inconstitucionalidade de situações anteriormente consideradas legítimas.

(…)

Todas essas considerações estão a evidenciar que as mudanças radicais na interpretação da Constituição devem ser acompanhadas da devida e cuidadosa reflexão sobre suas consequências, tendo em vista o postulado da segurança jurídica como subprincípio do Estado de Direito.

(…)

Registre-se que, na hipótese, não se trata de referendar a teoria do fato consumado, tal como pedido pelo recorrido, mas de garantir a segurança jurídica também nos casos de sensível mudança jurisprudencial".

Compreende-se, nessa linha de raciocínio, que o julgamento do Tema 992 na seara do Recurso Extraordinário (RE) nº 960.429/RN demandaria a mesma regra de modulação do Tema 335, visando à garantia da segurança jurídica e do interesse social.

Após esta nova orientação jurisprudencial que definiu competir à Justiça Comum, e não mais à Justiça do Trabalho, processar e julgar controvérsias relacionadas à fase pré-contratual de seleção e de admissão de pessoal e eventual nulidade de certame em face da administração pública direta e indireta, nas hipóteses em que adotado o regime celetista de contratação de pessoal, inegavelmente também deveriam ter sido estabelecidos os efeitos ex-nunc (sem retroação) ou mesmo pro futuro (data futura).

No entanto, é preocupante que o Supremo não tenha modulado os efeitos da decisão judicial colegiada do Tema 992 até esta data, causando o retorno de milhares de ações à primeira instância da Justiça Comum. Muitos desses casos, aliás, tramitando há mais de uma década no âmbito da Justiça do Trabalho, amparados nas próprias decisões do STF que reconheciam a competência da referida justiça especializada. Alguns sobrestados neste mesmo Supremo desde 2018, quando houve a admissibilidade da repercussão geral.

O caso é de evidente mutação constitucional.

Ademais, há um imenso prejuízo aos próprios trabalhos do Poder Judiciário na busca pela racionalização dos custos operacionais deste, pois, a permanecer o quadro atual sem modulação —, milhares de atos processuais necessitarão ser repetidos, ofendendo a prestação jurisdicional efetiva e em tempo razoável (artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal).

Por outro lado, os jurisdicionados são diretamente prejudicados, pois o desgaste pessoal e profissional com a alteração abrupta de posicionamento do STF causa abalo em diversas áreas de suas vidas, uma vez que desenvolveram a legítima confiança na manutenção de um entendimento reiterado do Supremo ou, na remota hipótese de mudança, ao menos acreditaram na razoável adoção de regras de modulação.

Em suma, é de se dizer que "fidelidade ao Estado de Direito requer que se evite qualquer variação frívola no padrão decisório de um juiz ou corte para outro" [2]. O sistema jurídico necessita de previsibilidade, não de aleatoriedade. É justamente esse dever (obrigação) de modulação dos efeitos das decisões judiciais, em casos patentes de mutação constitucional, que a sociedade espera do Supremo.

Enfim, os embargos de declaração do amicus curiae ainda não foram julgados e poderão rever a ausência de modulação dos efeitos da decisão judicial colegiada. E o que se aguarda do STF, guardião da Constituição, é a previsibilidade dos atos judiciais, a proteção à confiança legítima e ao primado da segurança jurídica.

Ainda há uma luz no fim do túnel.

 


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=438620>. Acesso em: 27 mai. 2020.

[2] MACCORMICK, Neil. Rethoric and the rule of law – A theory of legal reasoning. New York: Oxford University Press, 2005. p. 188.

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