Opinião

Direito Penal será instrumento na correção das relações econômicas durante a crise

Autor

  • Davi Tangerino

    é sócio do Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da FGV-SP.

3 de junho de 2020, 6h30

Spacca
No dia 2 de abril deste ano, poucas semanas após decretada a pandemia do Covid-19 pela Organização Mundial da Saúde, foram cumpridos quatro mandados de busca e apreensão contra grupo empresarial produtor de equipamentos de proteção individual (EPIs) que, no contexto da pandemia, passou a comercializar seus produtos com aumentos de preços que chegam à ordem de 14.733,33%.

Os mandados foram expedidos no âmbito da Operação Ganância, coordenada pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte, em parceria com o GAECO (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) do MPSP e a Divisão de Investigações sobre Infrações contra o Consumidor da Polícia Civil de São Paulo1.

Este não é um caso isolado. Desde o início da pandemia, diversos órgãos de proteção ao consumidor e os Ministérios Públicos de diversos estados vêm advertindo sobre a potencial ilicitude na monta dos preços de produtos de toda sorte (não apenas aqueles ligados à prevenção e combate ao coronavírus), em suposto aproveitamento da premente necessidade dos consumidores.

Como exemplo, o Ministério Público de Santa Catarina foi enfático ao orientar produtores e comerciantes a não realizar aumento arbitrário de preços, “assim entendido como aumentos sem fundamento no custo de aquisição”, bem como recomendar aos Procons e órgãos de vigilância sanitária estaduais e municipais que realizassem fiscalizações, a fim de inibir referida prática2.

Em Minas Gerais, o Procon advertiu claramente que “a elevação do preço de produtos e serviços, pelo fornecedor, abusando da premente necessidade do consumidor, enquanto durar o período de pandemia da doença provocada pelo novo Coronavírus (2019-nCov), em percentual superior a 20% (vinte por cento) ao preço de compra, constitui, em tese, crime contra a economia popular”3.

No estado do Mato Grosso foi expedida recomendação ministerial a todos os fornecedores para que “não retenham tais produtos em estoque e não os retirem das prateleiras, para fins de especulação ou aumento de preços”4 e, no Amazonas, foi instaurado Inquérito Civil Público5, em cujo âmbito foi determinada a expedição de ofícios a todos os supermercados e farmácias de determinado município para que apresentem a listagem de valores praticados nos últimos três meses de produtos ligados à prevenção e combate ao coronavírus.

Os exemplos acima são apenas alguns, dentre muitos outros, a sinalizar que não apenas em âmbito civil/concorrencial/consumerista serão dirimidos litígios decorrentes do presente período de crise. Pelas informações amplamente divulgadas na mídia, referentes a diferentes operações policiais e ministeriais em todo o país contra práticas comerciais tidas como abusivas, fica evidente que também o Direito Penal será instado a contribuir como instrumento de coerção para a manutenção das relações econômicas usuais em meio à crise, o que abre margens para questionamentos e reflexões.

Um dos mais importantes postulados da dogmática jurídico-criminal moderna determina que o recurso ao Direito Penal será legitimado apenas quando: (i) as demais áreas do direito não forem suficientes para coibir a prática de determinados atos indesejados pela sociedade e (ii) somente na medida em que tal repressão estatal seja proporcional à gravidade da conduta repudiada. Essas duas premissas são concretizadas no ordenamento jurídico pelos princípios da subsidiariedade e fragmentariedade do Direito Penal, indispensáveis não apenas à utilização racional desse importante ramo do Direito, mas também à limitação do jus puniendi estatal6.

Logo, em um Estado Democrático de Direito, o ordenamento jurídico, buscando seu fim último de harmonização social, deve prever diferentes mecanismos para o controle e apaziguamento das relações e conflitos sociais, resguardando o Direito Penal apenas como ultima ratio, ou seja, seu último recurso. Por esse motivo, é de se entender que, em se tratando de vínculos essencialmente comerciais, outros ramos do Direito possuem regulações próprias para desestimular, repudiar e punir litígios que eventualmente ocorram em seu meio.

Em um cenário tipicamente comercial, envolvendo a compra e venda de produtos, por exemplo, podem ser mencionados três dispositivos diferentes que coíbem práticas abusivas quanto ao aumento de preços, o que, por óbvio, se aplica ao contexto da atual pandemia, no qual as relações de consumo têm sofrido efeitos negativos decorrentes da desestabilização das transações comerciais e arrocho econômico. São eles:

  1. Os incisos V e X do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, que qualificam como prática abusiva “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva”, bem como a elevação “sem justa causa” do preço de produtos ou serviços;

  1. O artigo 51, inciso IV, do mesmo diploma, que dispõe serem “nulas de pleno direito” as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade"; e

  1. O artigo 36, inciso III, da Lei n. 12.529/11, que prevê que a conduta de “aumentar arbitrariamente os lucros” constitui, independentemente de culpa, infração à ordem econômica.

Referidas leis sancionam esses comportamentos com penas de multa, suspensão temporária da atividade e cassação de licença, inclusive aplicáveis tanto à pessoa jurídica, quanto à pessoa física. No caso da Lei n. 12.529/11, em casos específicos, a multa pode chegar à casa dos bilhões de reais. Tais penalidades deveriam ser suficientes para coibir determinadas práticas abusivas.

Ocorre que, em um cenário pandêmico, o apelo emocional à salvaguarda de vidas reforça a necessidade de intensa prevenção e repressão a atos que podem ser vistos como prejudiciais ao combate à doença e, com isso, contribuir para a elevação do número de mortos. Este relevante elemento fatalmente contribuirá para um maior apelo não só à utilização do Direito Penal e todos os seus mecanismos característicos, mas também à exacerbação de seus elementos, como a criminalização de novas condutas e o emprego difundido de medidas cautelares (como buscas e apreensões e sequestro de bens).

E, de fato, comportamentos similares aos descritos nos dispositivos acima mencionados são definidos como crime de há muito, como, por exemplo, o ato de "obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida", previsto no artigo 4º, “b”, da Lei de Crimes contra a Economia Popular, sancionada em 1951, e punido com pena de detenção de seis meses a dois anos e multa, podendo ser agravada se “cometido em época de grave crise econômica”.

No momento, contudo, deve-se ter prudência para realizar uma análise isenta e evitar incorrer em abusos. Em uma primeira leitura, a conduta descrita parece amoldar-se perfeitamente ao agir do dono de supermercado ou farmacêutico que tenha passado a vender álcool em gel por valor maior ao praticado antes da crise.

Contudo, não se pode ignorar que, como exemplo, comerciantes podem estar sendo vítimas de especulações externas e tão somente repassam os novos custos à sua clientela, como em qualquer prática comercial costumeira.

Ademais, para a configuração do crime, faz-se necessário que o aumento do preço seja concomitante a um abuso “da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte”, que deverá ser comprovado no caso concreto. Nesse sentido já se manifestou o c. Superior Tribunal de Justiça7.

Portanto, para apuração do crime, é recomendável que seja feita percuciente análise dos elementos que compõem o preço de determinado produto. Isto porque, muito embora seja louvável e essencial que as autoridades garantam que a população não se veja desabastecida de itens que, no momento, são essenciais, as leis de mercado não podem ser excluídas da análise penal.

Por determinação constitucional, a República Federativa do Brasil está fundada na livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV)8 e a livre concorrência é princípio geral da atividade econômica, como disposto no artigo 170, inciso IV, da Constituição Federal de 19889, o que garante ao agente econômico a liberdade de empreender sob seu próprio cálculo de custo/benefício. É claro que tais assertivas não podem servir de escudo retórico para a superexploração econômica de uma população, principalmente em um cenário de pandemia, mas tampouco deve-se extremar a análise a ponto de desconhecer o complexo emaranhado de fatores que podem afetar diretamente o preço de produtos cuja escassez sobressai no período de crise, o que pode afetar desde grandes empresas até pequenos comerciantes, vulneráveis a flutuações de preços e práticas comerciais competitivas entre grandes fornecedores.

Neste sentido, há de se criminalizar a abusividade consistente na majoração de preços apenas quando operada sem justificativa, em cada caso concreto, e em face da premente necessidade, inexperiência ou leviandade da outra parte, com grande ênfase à primeira hipótese.

Ainda na lei de 1951, há previsão de outros dois delitos, ainda mais graves (punidos com detenção de dois a dez anos e multa), consistentes em “destruir ou inutilizar, intencionalmente e sem autorização legal, com o fim de determinar alta de preços, em proveito próprio ou de terceiro, matérias-primas ou produtos necessários ao consumo do povo” (art. 3º, I) e “provocar a alta ou baixa de preços de mercadorias, títulos públicos, valores ou salários por meio de notícias falsas, operações fictícias ou qualquer outro artifício” (art. 3º, VI).

Contraria o senso comum imaginar que alguém seja capaz de destruir ou inutilizar, intencionalmente, visando à alta de preços, produtos necessários à população, mas, em época de fake news, não se pode duvidar que notícias falsas sejam criadas para provocar a valorização de determinada mercadoria. A maior reprovação moral de tais condutas justifica a ameaça de sanção mais elevada.

Nesse sentido, o Ministério Público de São Paulo, inclusive, por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais (CAO-CRIM), orientou a polícia a “atuar e prender em flagrante delito os comerciantes que elevarem os preços de forma abusiva” e “conduzir a investigação nos termos do art. 3º, VI, da Lei 1.521/51”. Ademais, indicou que “o acordo de não persecução penal parece não ser indicado. Considerando que são crimes cometidos na ocasião de calamidade, portanto mais graves, o ajuste mostra-se insuficiente para a prevenção e retribuição do comportamento”10.

Tal orientação dá fortes indícios do rumo a ser seguido pelos promotores de justiça paulistas — e levanta preocupações quanto às consequências jurídicas de tal tipificação apriorística (a pena do delito mencionado não autoriza, por exemplo, o arbitramento de fiança pelo delegado de polícia).

Já sob outro aspecto, a lei 8.137/90 prevê condutas que constituem crime contra as relações de consumo e, dentre elas, descreve “sonegar insumos ou bens, recusando-se a vendê-los a quem pretenda comprá-los nas condições publicamente ofertadas, ou retê-los para o fim de especulação”, cominando-lhe pena de dois a cinco anos ou multa, podendo ainda ser agravada de um terço caso ocasione grave dano à coletividade. Fornecedores que estejam ocultando estoques de insumos essenciais a fim de aguardar momento futuro para venda a preço maior podem incorrer neste delito.

A mesma lei também criminaliza a conduta de “induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço”. Muito tem sido dito sobre chás imunizadores e receitas especiais que prometem impedir o contágio pelo vírus ou promover a cura da doença. Nestes casos, a priori, considerando que inexiste comprovação científica de produto com tais propriedades, estar-se-ia diante de crime. O Código Penal também tipifica o charlatanismo, consistente em “inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível” (art. 283).

Como se vê, há diversos tipos penais cuja incidência pode aumentar nos próximos meses. Ademais, têm sido propostos projetos de lei visando à criminalização de novas condutas especialmente relacionadas à pandemia. É o caso do PL 771/2020, do Senador Randolfe Rodrigues, que inclui à lei 8.137/90 o artigo 7-A, que prevê ser “também considerado crime contra as relações de consumo a elevação do preço de produtos ou serviços, sem justa causa, por ocasião de endemias, epidemias e pandemias assim declaradas pelos órgãos competentes (…)”.

Por fim, deve-se lembrar que, no Brasil, as autoridades de persecução criminal, notadamente polícia judiciária e Ministério Público, detêm ampla discricionariedade para iniciar investigações criminais, ainda que, ao fim e ao cabo, destas não decorra condenação – a despeito dos inúmeros prejuízos que podem advir aos investigados (como a prisão em flagrante e o indiciamento). Assim, a levar pelo tom das recomendações e orientações ministeriais mencionadas ao longo do texto, não se deve surpreender com a utilização de investigações criminais como instrumento de pressão e controle social, a recomendar, portanto, cautela do agente econômico na precificação de seus produtos e serviços durante a pandemia.


1https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2020/04/02/operacao-do-mp-fiscaliza-aumento-abusivo-no-preco-de-mascaras-de-protecao-no-rn.ghtml

2https://www.mpsc.mp.br/noticias/novo-coronavirus-mpsc-alerta-que-aumento-abusivo-de-preco-e-crime

3https://www.mpmg.mp.br/comunicacao/noticias/elevacao-superior-a-20-nos-precos-constitui-crime-contra-economia-popular.htm

4 http://www.rondonopolis.mt.gov.br/noticias/notificacao-recomendatoria-do-ministerio-publico/

5 http://servicos.mpam.mp.br/uploads/DiarioOficialMPAM-2020-03-20.pdf

6 Diversos autores tratam do caráter subsidiário e fragmentário do Direito Penal. Entre eles, podemos citar: REALE JUNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal – Parte Geral. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2009; GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O Princípio Da Proporcionalidade No Direito Penal. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2003; e HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 1958.

7 Contrato. Subempreitada. Lucro usurário. A só circunstância de o lucro exceder um quinto do valor do contrato não o torna usurário. Para que assim se caracterize, é mister que haja abuso de premente necessidade, inexperiência ou leviandade da outra parte. Recurso não conhecido. (STJ, 3ª T., REsp 33.883-2/MG – 93/0009704-0, Rel. Min. Cláudio Santos, j. 30/05/1994, DJ 26/09/1994)

8 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

9 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) IV – livre concorrência;

10 http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Criminal/Noticias_CAO_Criminal/Aumento%20abusivo%20de%20pre%C3%A7os%20em%20situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20calamidade.pdf

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