Paradoxo da Corte

Sinal dos tempos: o apagar das luzes do velho Itamarati

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

2 de junho de 2020, 8h00

Todos nós vivemos de memórias. As memórias são importantes recortes de momentos e experiências vividas que se originam das lembranças e eternizam ocasiões e lugares como referências e cenários para uma reiterada visita ao passado, trazendo em cada ser humano os mais diversos sentimentos, geralmente, de alegria e de tristeza.

Desculpando-me com meus colegas leitores, peço-lhes licença para tratar na coluna de hoje de reminiscências acadêmica e profissional, arraigadas à minha memória, assim como certamente na de outros advogados, juízes e promotores, que frequentaram e ainda circulam pelo centro velho da capital de São Paulo.

O pouco caso da Administração Pública com a preservação da antiga parte central de São Paulo, agravada pela duradoura crise econômica gerada pelo isolamento social, precipitaram a falência ou o definitivo fechamento de inúmeros estabelecimentos comerciais, que já vinham sofrendo com a decadência e com a sensível diminuição do fluxo de pessoas no centro velho.

No meu caso, a despeito de sentir muita saudade das livrarias, dos cafés e docerias que existiam, por dever de ofício, ainda continuo frequentado a Praça João Mendes e o Largo de São Francisco, para exercer a profissão de advogado e de professor. É evidente que o centro de hoje não é mais uma área charmosa e acolhedora de um passado não tão remoto.

Entres aqueles tradicionais pontos de convívio, despontava o famoso restaurante Itamarati, situado na Rua José Bonifácio, na confluência do Largo de São Francisco com a Rua Líbero Badaró.

Desde a sua fundação, em 1940, era lugar obrigatório de encontro de advogados, juízes e promotores. Frequentavam-no igualmente estudantes da Velha Academia. Na hora do almoço, com cardápio refinado e comida saborosa, era sempre concorrido, com espera, sobretudo a partir das 13h. Ao cair da tarde, de segunda a quinta-feira, transformava-se em bar, ao qual acorriam advogados, em sua maioria, em busca da saideira, enquanto o trânsito, para o retorno ao lar, ia diminuindo.

Nestas memoráveis rodas, no restaurante que recebeu diversos presidentes, governadores e ministros do Supremo, era proibida qualquer discussão sobre teses jurídicas, embora pudéssemos criticar decisões judiciais, mas não falar muito mal dos juízes! Conversávamos sobres assuntos triviais do dia-a-dia, espairecendo o grande peso dos problemas decorrentes da profissão.

O Itamarati era também palco de festejos desde eleições do Centro Acadêmico XI de Agosto, comemorações de concursos acadêmicos até confraternizações de final de ano dos inúmeros escritórios de advocacia  adjacentes.

Durante pelo menos três décadas, entre os anos 70 e os 90, eu tinha cadeira cativa numa mesa ampla, chamada de “Câmara”. A partir das 18 h, o querido Dionísio, nosso garçom exclusivo, dava início aos “trabalhos”, servindo o chope, o scotch e os petiscos. Invariavelmente, nosso saudoso “chefe”, Luiz Antônio Ferreira de Castilho (Totonho), já estava a postos no comando daquele grupo que ia se formando, aos poucos, com maior ou menor assiduidade, pelos amigos alguns já falecidos Hoanes Koutoudjian, Sergio e Renato Mange, Luciano Fleury, Gilberto Pedroso (Giba), Ismar de Freitas e o pai, o velho Ismar, Fabio Ferreira de Oliveira, Edmur Andrade Nunes Pereira Neto (Gatão), Erasmo Valadão Novaes França, Eros Grau, Celso Almada, Lucio Junqueira, Ricardo Carrara, José Carlos Paes de Barros (PB), Silvio Farias, Luiz Antônio Sampaio Gouveia (Pitô), Nando Garcia Rosa, Luiz Eduardo Lopes da Silva, Roberto Azzi, João Barbosa, Rui Galvão, Antonio da Fonseca, Ricardo e Roberto Giraldes, Erasmo de Boer, Paulo Lara, Sergio Gonik, Eduardo Augusto Rocha, Waldir Helu, Walter Franco, Miguel  Granito, Ney Mattos Ferreira e tantos outros que não mais me recordo e que irão me perdoar.

Naquele tempo que passou e que não mais retornará , risonhos e sinceros, nós e o Itamarati éramos imortais… Tempos formidáveis…

A recente notícia do fechamento do restaurante Itamarati, reportada, no final de maio passado, em matéria bem escrita e ilustrada pelo colunista do Uol, Rogério Gentile, causou enorme lamento entre os integrantes das carreiras jurídicas de São Paulo.

Como ressalta o jornalista, o lockdown definitivo daquele tradicional ponto de encontro constitui também mais uma vítima da pandemia do coronavírus.

“Sem condições de pagar o aluguel de cerca de R$ 20 mil, o Itamarati já demitiu seus funcionários e solicitou à Justiça a rescisão do contrato com a Santa Casa de Misericórdia, proprietária do imóvel, sem o pagamento de multa… Marli Avanzzo, uma das sócias do restaurante, diz que é com dor no coração que eles resolveram encerrar as atividades do estabelecimento. Afirma que eles não tiveram outra alternativa diante da recusa da Santa Casa em renegociar os valores da locação… ‘Mesmo assim, estávamos tentando levar as coisas adiante’, afirma a proprietária. ‘Em fevereiro, reformamos a cozinha, mas não pudemos preparar um único prato, pois veio a quarentena e a situação ficou inviável’, diz Marli, cuja família assumiu o negócio há cerca de 50 anos. Como fica num calçadão, o restaurante não consegue nem mesmo atender por delivery, já que as motos não podem parar na porta do estabelecimento. O garçom Miranda, com 71 anos, que trabalha no Itamarati há 40 anos, lamenta a situação. Ele conta que atendeu os presidentes Jânio Quadros, Fernando Henrique e Michel Temer, entre tantas outras personalidades…”.

Se, por um lado, é grande a tristeza dos frequentadores de ontem e de hoje, por outro, renasce a esperança de que, em breve, seja reaberto tal importante estabelecimento de referência da comunidade jurídica paulista!

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!