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É inconstitucional a lei fluminense que proíbe a suspensão de plano de saúde

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2 de junho de 2020, 10h41

A pandemia da Covid-19 propiciou um cenário fértil para edição de elevada gama de normas legislativas, alicerçadas por uma pretensa necessidade de adequação do arcabouço jurídico à realidade e às necessidades sociais surgidas em decorrência do atual quadro de calamidade. Em que pese as recentes inovações legislativas estarem por vezes imbuídas axiologicamente da ratio que se espera como sendo o verdadeiro “espírito das leis”, qual seja o atendimento das necessidades sociais em cada tempo, o atual esforço legislativo há que ser visto e analisado com extrema cautela, notadamente ante as disputas federativas (e por que não dizer políticas e ideológicas) travadas entre as diferentes esferas de poder no curso do planejamento estatal a ser adotado para conter a pandemia e seus efeitos.

Exatamente nesse contexto merece ser analisada a Lei Estadual do Rio de Janeiro 8.811/2020, que autoriza o Poder Executivo a dispor sobre a vedação da suspensão e/ou cancelamento dos planos de saúde por falta de pagamento durante a vigência do plano de contingência do novo coronavírus. Publicada no Diário Oficial de 12 de maio de 2020, e com origem no Projeto de Lei 2.171/2020, de inciativa parlamentar, o aludido diploma legislativo é de constitucionalidade questionável.

Aparentemente, o legislativo estadual atuou sob a justificativa de estar legitimado pela competência concorrente constitucionalmente conferida à União, estados, Distrito Federal e municípios para legislar sobre Direito do Consumidor, prevista no artigo 24, inciso V, da Constituição Federal de 1988. Ocorre que, em verdade, a matéria envolvida refere-se à competência privativa da União, insculpida no artigo 22, inciso VII, da Constituição de 1988, eis que se trata de ato normativo que atinge a autonomia privada, atuando sob a esfera de pactuação inerente às relações contratuais, no caso especificamente sobre as condições e prazo de pagamento dos planos de saúde. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se em outras oportunidades sobre a inadvertida usurpação de competência em casos similares, sob a justificativa de estar sendo manejada a competência estadual para legislar sobre relações de consumo.

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL QUE FIXA PRAZOS MÁXIMOS, SEGUNDO A FAIXA ETÁRIA DOS USUÁRIOS, PARA A AUTORIZAÇÃO DE EXAMES PELAS OPERADORAS DE PLANOS DE SAÚDE.
VOTO DO RELATOR

(…) Por mais ampla que seja, a competência legislativa concorrente em matéria de defesa do consumidor (CF/88, art. 24, V e VIII) não autoriza os Estados-membros a editarem normas acerca de relações contratuais, uma vez que essa atribuição está inserida na competência da União Federal para legislar sobre direito civil (CF/88, art. 22, I). (…) Os arts. 22, VII e 21, VIII, da Constituição Federal atribuem à União competência para legislar sobre seguros e fiscalizar as operações relacionadas a essa matéria. Tais previsões alcançam os planos de saúde, tendo em vista a sua íntima afinidade com a lógica dos contratos de seguro, notadamente por conta do componente atuarial” (ADI 4.701, Rel. Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJ de 22/8/2014).

Não se pode olvidar, ainda, que atuando diretamente na relação jurídica entre operadora e usuário, o legislativo fluminense usurpou a competência delegada pela Lei 9.961/2000 à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para regular o mercado de planos de saúde, notadamente as contempladas no artigo 4º, incisos II e XXIV, que versam sobre as prerrogativas da ANS de exercer o controle e a avaliação dos aspectos concernentes à manutenção e dos serviços prestados, direta ou indiretamente, pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde.

Além da inconstitucionalidade formal por vício de competência, no caso em tela é patente a inconstitucionalidade material, perpetrada pela violação direta a diversos dispositivos constitucionais, destacando-se os artigos 170 e 174 da CF/88. Primeiro, ante a violação à livre iniciativa, eis que incorre em insustentável intromissão no livre exercício da atividade empresarial que dentre suas vertentes garante a liberdade de gestão, nela incluído o planejamento financeiro e atuarial, tão caro aos planos de saúde, e que certamente restará prejudicado com a postergação de pagamentos admitida pela lei. Ainda no que tange à livre iniciativa, afronta a liberdade de contratação, a qual engloba a estipulação de cláusulas contratuais, como projeção da autonomia da privada.

Noutro giro, ao se imiscuir de tal forma na disposição temporal dos recursos provenientes dos prêmios dos segurados, a novel norma afronta por via transversa o artigo 174 da CF/88, ao passo que interfere no planejamento financeiro e atuarial das empresas, sendo cediço que o aludido dispositivo deixa claro que a atividade de planejamento econômico é indicativa para o setor privado, não obrigatória. Ora, o que pretende em verdade o legislador estadual, com a devida vênia, é realizar o planejamento financeiro no setor privado, postergando prazos de pagamento e purgando a mora (artigo 3º), afastando a cobrança de juros e multa sobre o atraso, o que é expressamente vedado pelo artigo 170 da CF/88.

O artigo 5º do vergastado diploma estipula que a vigência da lei e do regime especial de pagamentos dar-se á “enquanto estiver em vigor a situação de emergência do novo coronavirus (Covid-19) declarada pelo Decreto 6.973 de16 de março de 2020, ou pelos seus sucessivos atos normativos que prorrogarem sua vigência”.

Nesse tocante, merece destaque que não há prazo certo para o regime especial de pagamentos previsto na lei, razão pela qual, a longo prazo o equilíbrio atuarial dos players do mercado pode ser comprometido, o que não é compatível com os princípios da função social da empresa e da preservação da empresa, que inclusive tem sua importância reconhecida ainda que indiretamente no artigo 4º III do CDC, o qual dispõe que a Política Nacional das Relações de Consumo deve ser desenvolvida de modo que sejam harmonizados os interesses dos consumidores com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica, dentre os quais destaca-se a livre iniciativa.

Por último, e não menos importante, a Lei 8.811/20 viola frontalmente o princípio da proporcionalidade. A saber, o diploma legislativo não ultrapassa o que a doutrina denomina “3 testes” ou standards” da proporcionalidade, definidos pelo ministro Luís Roberto Barroso, que entende a proporcionalidade como sinônimo da razoabilidade, nos seguintes moldes.

“Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação ao excesso); os custos superem os benefícios, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade e sentido estrito)”, de acordo com o livro Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo, de autoria do ministro Luís Roberto Barroso.

Sob a ótica da adequação, a Lei fluminense 8.811/20 sequer ultrapassa a primeira etapa de aferição da proporcionalidade e razoabilidade. Com efeito, não se pode conceber como adequado diploma legislativo que viola o pacto federativo sob o aspecto da distribuição de competências entre os entes políticos, mesmo que o fim perseguido possa ser louvável.

Ainda que, por um esforço hermenêutico, se admita que a Lei fluminense 8.811/20 ultrapassa a primeira etapa, esta não supera a necessidade/vedação ao excesso. Indubitavelmente há meios alternativos menos gravosos ao equilíbrio atuarial e à sobrevivência dos planos de saúde e que garantam o acesso do direito à saúde à população. Com efeito, poderia o governo engendrar parcerias, aqui compreendidas em seu sentido amplo, com a iniciativa privada, para incrementar as ações, o acesso ao SUS e garantir que aqueles que temporariamente não tenham condições de custear as mensalidades sejam atendidos. Tal iniciativa encontraria guarida na cláusula geral de parcerias insculpida no artigo 116 da Lei 8.666/1993.

Nesse contexto, convém asseverar que a Advocacia-Geral da União já opinou favoravelmente à celebração de acordos de cooperação pela Administração Pública com particulares (inclusive entidades com fins lucrativos) nos casos em que há interesse na mútua cooperação técnica com vistas à “execução de programas de trabalho, projeto/atividade ou evento de interesse recíproco, da qual não decorra obrigação de repasse de recursos entre os partícipes”. Ora, o contexto em que se aloca a pandemia permite exatamente a subsunção a tal hipótese, nela se enquadrando a doação de bens, a construção de hospitais de campanha diretamente pela iniciativa privada, e até mesmo prestação de consultorias no setor de saúde e outras áreas estratégicas.

Em complemento, impende destacar que o artigo 24, inciso XII, da CF/88, confere à União Federal competência para legislar sobre normas gerais de proteção e defesa da saúde, atribuindo ao aludido ente federativo o papel de estatuir as diretrizes gerais para a execução de políticas públicas voltadas ao enfrentamento da Covid-19. Dentre os inúmeros atos normativos, destaca-se a Lei 13.979/2020, que possui uma série de medidas aptas a aumentar a capacidade operacional do SUS. Deve igualmente ser ressaltado que como longa manus do governo federal na implementação de tais diretrizes, assumem papel relevante o Ministério da Saúde e a ANS. O primeiro vem atuando, dentre outras ações, mediante a edição dos protocolos para ao atendimento e realização de exames na pandemia, direcionados ao SUS e ao setor privado, com o objetivo de maximizar o uso dos leitos e recursos disponíveis, propiciando que ocorram da forma mais eficiente.

A ANS, por seu turno, na condição de instância regulatória da saúde suplementar, ampliou o canal de diálogo com as operadoras, e lançou mão de atos normativos para garantir a manutenção dos serviços prestados aos usuários, e possibilitar maior flexibilidade de recursos, para que as operadoras possam suportar o aumento na demanda e possível acréscimo na inadimplência.

Como se vê, sob a ótica do Pacto Federativo, seja no âmbito do SUS (Ministério da Saúde) ou da Saúde Suplementar (ANS), no bojo de suas competências discricionárias de formulação e execução de diretrizes gerais das políticas públicas do SUS e da saúde suplementar, esta enquanto atividade de relevante interesse social, vem sendo empreendidas ações que visam garantir o acesso à saúde, todas menos gravosas à solidez financeira das operadoras que a proposta pelo legislativo fluminense. Assim, a atuação do legislador e do governo estadual para a elaboração de medida (suspensão de pagamento dos planos), que possui intrinsecamente a natureza de norma geral, uma vez que se relaciona a aspecto essencial do negócio jurídico (no caso o pagamento), além de não se mostrar necessária, afronta a competência material da União.

Sob o contexto do prestígio à discricionariedade técnica e ao Pacto Federativo, podem ser elencadas como medidas que melhor atendem à proporcionalidade/razoabilidade, na vertente da necessidade/vedação ao excesso, como meios alternativos menos gravosos às operadoras, o exercício pela ANS das competências previstas no artigo 29-A da Lei 9.656/1998 e artigo 4º XXXVI da Lei 9.961/2000.

Quanto ao primeiro instrumento, medida menos gravosa seria a celebração de termo de compromisso pela ANS, com fulcro no artigo 29-A da Lei 9.656/98, substituindo medidas sancionadoras por investimentos a serem realizados pelas operadoras em sua rede própria no enfrentamento da pandemia, como por exemplo a construção de mais hospitais de campanha ou a ampliação imediata de leitos de alta complexidade, com aquisição de respiradores mecânicos. Tal iniciativa, ademais, beneficiaria os usuários e contribuiria para construção de uma regulação responsiva. Por seu turno, tal instrumento encontra ainda amparo na moderna doutrina do Direito Administrativo, que defende a realização de acordos substitutivos de sanção, os quais ostentariam como cláusula geral de legitimidade no ordenamento pátrio o artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

Poderia, ainda, a ANS utilizar-se da competência prevista no artigo 4º XXXVI da Lei 9.961/00, e celebrar convênio com entidades de proteção de defesa do consumidor, para a constituição de Câmara Técnica e de Conciliação que visasse solucionar eventuais impasses com consumidores inadimplentes em decorrência da pandemia. Tal medida, além de atender melhor ao Pacto Federativo e à distribuição de competências prevista na Constituição, coroa a autonomia privada, ao passo que possibilitaria a cada operadora e a cada consumidor envolvido negociar em espaço institucionalmente seguro, de acordo com as suas peculiaridades.

Por fim, cumpre não olvidar que o Estado, por força do viés social de que é revestido a CF/88 pode e deve estatuir medidas assistencialistas que supram as necessidades em tempos de crise, sendo certo que o texto constitucional não autoriza a transferência compulsória de tal ônus à iniciativa privada, (como parece ser o objetivo da lei em análise). Embora as empresas devam ser comprometidas com os valores sociais, não se deve perder de vista a sustentabilidade do setor.

Como se vê há outros instrumentos disponíveis ao Estado para ampliar sua capacidade de instalação e atendimento, e para garantir os interesses dos usuários da saúde suplementar, todos menos onerosos à saúde financeira dos planos, e aptos a atender às necessidades da população, o que denota ainda mais a ausência de proporcionalidade da norma em epígrafe. Ademais, é cediço que, pelo elevado índice de inadimplência dos usuários dos planos de saúde e considerando a projeção de crise que se instala pelos próximos meses, é muito provável que a suspensão dos pagamentos prevista no diploma se converta em mora irreversível a causar um prejuízo atuarial permanente, podendo acarretar a retração do setor, gerando a extinção de postos de trabalho e consequente perda de empregos e piorando ainda mais o quadro atual da assistência à saúde.

Ora, no momento em que o aporte constante dos prêmios é mais essencial do que nunca, a fim de garantir a sobrevida dos planos e o repasse aos prestadores, para que não haja solução de continuidade nos serviços, de modo que os usuários não sejam todos obrigados a se socorrer da assistência pública, no caso de os pagamentos serem sustados, sem qualquer aviso, de forma automática e indiscriminada e sem qualquer requisito mínimo, afronta o princípio da não surpresa, derivado da confiança legítima, além de ser uma contradição em termos, conforme exposto.

Exatamente nesse sentido as medidas antes elencadas são, sem dúvida, menos onerosas, pois garantem a salvaguarda financeira dos planos, sendo mais compatíveis com a livre iniciativa e a autonomia privada, e ao mesmo tempo protetivas dos interesses dos usuários.

É fundamental não se esquecer que os fins não justificam os meios, sobretudo se a pretexto de alcança-los é violado o texto constitucional, e que na busca pelo interesse público deve ser respeitada a Constituição, símbolo máximo do Estado Democrático de Direito.

* JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em www.jurishealth.com.br

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