Opinião

O artigo 142 da Constituição e os malabarismos constitucionais

Autores

  • Marcelo Labanca

    é advogado professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco membro do Instituto Publius e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

  • João Paulo Allain Teixeira

    é advogado professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco membro do Instituto Publius e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

  • Glauco Salomão Leite

    é professor de Direito Constitucional da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) da graduação e do programa de pós em Direito da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade de Pernambuco. Foi pesquisador visitante na Universidade de Toronto (Canadá). Membro do grupo Recife Estudos Constitucionais (REC/CNPq).

  • Gustavo Ferreira Santos

    é advogado professor de Direito Constitucional e do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco membro do Grupo de Pesquisa Recife Estudos Constitucionais (REC) e do Instituto Publius e pesquisador PQ 2-CNPq.

1 de junho de 2020, 15h16

Nos últimos anos, habituamo-nos a ver em manifestações políticas cartazes pedindo uma tal de "intervenção militar constitucional". Normalmente, esses manifestantes são vistos com desdém por quem tem o mínimo respeito à democracia. São tomados como exóticos ou malucos e, não raro, vêm acompanhados de outros cartazes estranhos, como os que pedem um AI-5. A novidade, porém, nas últimas semanas, é o aparecimento de advogados conhecidos que tentam dar um verniz teórico a essa ideia, a título de interpretar o artigo 142 da Constituição da República.

O caput do artigo 142 tem a seguinte redação:

"As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".

Claramente, o texto diz que as Forças Armadas são destinadas a três tarefas: a) a defesa da pátria; b) a garantia dos poderes constitucionais; e c) a garantia da lei e da ordem, por iniciativa de qualquer dos poderes. Esse debate enfatiza a terceira tarefa.

Como a interpretação de qualquer outro dispositivo constitucional, o entendimento sobre o referido artigo precisa considerar outros dispositivos constitucionais, bem como o contexto histórico-institucional em que a Constituição foi produzida. Com efeito, no mesmo capítulo, o artigo 144 diz que "segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública (…)". A "preservação" ou a "garantia" da ordem é responsabilidade primária de órgãos de segurança pública. A "garantia" da ordem, que vai caber às Forças Armadas, será necessária, como demonstraremos, quando a atuação dos órgãos de segurança pública não forem suficientes para isso.

Ao Supremo Tribunal Federal, a Constituição reservou, precipuamente, a função de 'guarda da Constituição". Isso significa que, apesar de outros intérpretes, outros agentes, a ele caberá a responsabilidade de, diante de instabilidades na aplicação do texto constitucional, garantir sua observância, fixando o entendimento a ser adotado por todos. O papel atribuído ao STF reflete o modelo contemporâneo, inaugurado no pós-Segunda Guerra, em que tribunais constitucionais e supremas cortes foram concebidos não apenas como instituições contramajoritárias o que é essencial na proteção de grupos vulneráveis  como também no arbitramento de conflitos institucionais entre os poderes. Não por acaso, essa expansão da jurisdição constitucional ocorreu após a superação de regimes autoritários em vários países europeus e na América Latina.

Sob essa perspectiva, tomar as Forças Armadas como órgão de "moderação", que as coloca sobre os poderes constitucionais, significa transformá-las em intérprete último de parte do texto constitucional: o título da organização dos poderes. Seriam, nesse desenho, as Forças Armadas que garantiriam um equilíbrio entre os poderes, diante do avanço de um deles para além do seu espaço constitucionalmente desenhado. Teríamos, assim, três órgãos com o poder de pedir o auxílio das Forças Armadas quando entendessem que havia excesso em outro ou em outros poderes. Seria possível, desse modo, que qualquer um dos três acionasse o mecanismo, fazendo com que as Forças Armadas se transformassem em intérpretes últimos do esquema funcional traçado pelo constituinte. Como cada poder provavelmente iria concluir que o seu agir é o mais adequado à Constituição, caberia às Forças Armadas dizer quem tem razão.

A tese que aqui analisamos parece pressupor que as Forças Armadas estão em um lugar neutro no desenho dos poderes, com distanciamento dos três. No entanto, a Constituição as localizou dentro do Poder Executivo, colocando o próprio presidente da República como o seu "comandante supremo" (artigo 84, XIII). A própria ideia de "poder moderador" não tem qualquer compatibilidade com o desenho funcional definido pelo constituinte. Os poderes constitucionais são "independentes" e a relação entre eles deve buscar a "harmonia", por expressa dicção do artigo 2º da Constituição. Considerar as Forças Armadas com um "poder moderador" significaria considerar o Poder Executivo um superpoder, uma vez que o seu chefe, o presidente da República, comanda as Forças Armadas.

Como é fácil perceber, não foi esse o papel atribuído às Forças Armadas, sobretudo em um ambiente de transição de um regime militar pós-64 para a democracia. Do contrário, teríamos que defender que todo o esforço cívico para resgatar a democracia resultaria, na verdade, em construir um modelo de "democracia tutelada" por militares, em que generais, e não cortes independentes, seriam os defensores da Constituição. O absurdo da conclusão expõe o equívoco da premissa. A Constituição, como qualquer outra lei, suscita dúvidas quanto ao sentido de vários dos seus dispositivos. Porém, não é de hoje que "a interpretação das leis é o domínio próprio e particular dos tribunais", como expôs Alexander Hamilton nos Federalist papers [1] e, mais tarde, o Justice John Marshall em Marbury v. Madison [2] (1803). E tem sido essa a fórmula prevalecente nas democracias constitucionais, que combinam instituições representativas legitimadas pelo voto com instituições judiciais contramajoritárias voltadas à preservação da própria ordem constitucional.

Isso não significa, contudo, apostar na infalibilidade dos tribunais, nem defender uma irrestrita concordância com o resultado de todas as suas interpretações. Porém, contra decisões judiciais, cabem recursos, mesmo internos, no âmbito do próprio tribunal que proferiu a decisão questionada. Igualmente é possível discutir o tema em projetos de lei ou propostas de emenda constitucional no parlamento, formulando interpretação diversa daquela defendida pela corte [3]. Há, ainda, uma outra forma de controle contra eventual abuso cometido por ministros do Supremo Tribunal Federal: eles podem ser submetidos a julgamento no Senado Federal, caso cometam crimes de responsabilidade, de acordo com o artigo 52 da Constituição de 1988 [4].

Vê-se, assim, que há previsão no sistema constitucional de freios e contrapesos que indicam limites à atuação do Supremo Tribunal Federal. São controles democráticos e, entre eles, não se insere nenhum poder moderador das Forças Armadas.

Seja como for, há procedimentos a serem seguidos e respeitados. Há outros interlocutores envolvidos, com direito a voz. É preciso apresentar argumentos consistentes, fundados em razões públicas. Algo totalmente distinto é a ameaça subliminar, é a intimidação em poucos caracteres, é o fomento à desidratação gradual do modelo constitucional brasileiro. Nesse sentido, são inadmissíveis interpretações constitucionais do artigo 142 que, a pretexto de preservar a "lei e a ordem", subvertem-na, invertendo papéis institucionais e transformando em supremo quem, de fato e de direto, não o é.

A "garantia da lei e da ordem" foi regulamentada pela Lei Complementar 97/1999, que descreve os modelos de emprego das Forças Armadas. O legislador interpretou corretamente o texto constitucional, colocando o emprego sob a responsabilidade do presidente da República e associando o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem à insuficiência das ações de segurança pública. Diz que "compete ao presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados" e complementa dizendo que "a atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no artigo 144 da Constituição Federal”.

Apesar de, em um primeiro momento, parecer sem sentido, esse debate é importante, principalmente, por evidenciar posturas diferentes dos constitucionalistas frente à Constituição. Historicamente, o constitucionalismo manifestou-se de formas diversas, sendo identificáveis, por um lado, posições comprometidas com a democracia, mas, também, por outro lado, posições antidemocráticas, que manipulam a interpretação para fins incompatíveis com a ideia de democracia constitucional, criando uma aberração, que é uma Constituição contra a democracia, contra direitos humanos. A interpretação constitucional não deve ser uma atividade que se vê como neutra, mas, sim, precisa ser uma atividade comprometida com a legitimidade do exercício do poder. Não consideramos razoável uma interpretação que dê aos detentores das armas, que precisam estar sob limites claros, um poder que a Constituição claramente não deu. Repudiamos qualquer discurso que, a pretexto de interpretar a Constituição, possa resultar no encorajamento de viés hermenêutico legitimador de estado de exceção e de ruptura democrática.

 


[1] MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John, Os artigos federalistas: 1787-1788, Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1993, p. 481.

[2] Marbury v. Madison, 5 U.S. (1 Cranch) 137; 2 L. Ed. 60 (1803).

[3] Lembre-se de que esse diálogo institucional não é bloqueado pelo sistema constitucional. Ao revés. A própria Constituição estabelece, por exemplo, que o Poder Legislativo não se submete ao efeito vinculante de uma decisão do Supremo Tribunal Federal proferida em uma ação direta de inconstitucionalidade, fazendo crer, como dito supra, que as divergências sobre a interpretação judicial podem desembocar em resposta parlamentar por meio de um processo legislativo. Tudo isto autorizado pelo Sistema Constitucional. Como se vê, a atividade do Supremo Tribunal Federal não é ilimitada, possuindo controles constitucionais democráticos.

[4] Essa é a intelecção do artigo 52, inciso II, da Constituição de 1988 ao afirmar que compete privativamente ao Senado Federal "processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal (…) nos crimes de responsabilidade". Já a Lei 1.079, de 10 de abril de 1950, prevê, em seu artigo 39, as hipóteses de crime de responsabilidade que podem ser atribuídas a ministros do STF.

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