Opinião

Brasil vive uma pandemia de cárcere

Autor

  • Marcelo Silva Moreira

    é juiz de Direito e coordenador substituto da Unidade de Monitoramento Acompanhamento Aperfeiçoamento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Maranhão.

1 de junho de 2020, 16h07

O Brasil é um país peculiar. Dificilmente conseguimos enfrentar apenas um problema de cada vez. Nosso normal tem sido, infelizmente, travar batalhas múltiplas e, o que é pior, confrontando simultaneamente inimigos distintos.

Assim é que, em tempos de pandemia da Covid-19, turbulência econômica e também política, ao assumir a função de juiz coordenador substituto da Unidade de Monitoramento, Acompanhamento, Aperfeiçoamento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Maranhão, lanço meu olhar a uma questão quase sempre esquecida do público em geral, nosso sistema prisional.

Para a maioria da população, o cárcere no Brasil está assim como o esgoto para o saneamento básico. Via de regra, só lembramos que existem quando fedem.

Disso resulta que, salvo quando a grande mídia reporta alguma rebelião num presídio, com destaque para cabeças degoladas, ou quando anunciam a descoberta de algum esquema de privilégios concedidos por agentes públicos a "presos de maior patente", o normal é darmos de ombros aos encarcerados e às suas mazelas.

Antes que comecem a questionar acerca da situação das vítimas desses tais, respondo: não, encarcerados não são santos, longe disso, mas nem nós também o somos… O que não podemos deixar de lembrar é que aqueles que estão privados de liberdade também são sujeitos de direitos e, o que é mais importante, garantir a tutela desses direitos é uma forma de proteger a própria sociedade, na medida em que todo aquele que ingressa no sistema prisional sem que este cumpra a sua finalidade ressocializadora acaba, em algum momento, dele saindo pós-graduado na "arte do crime" e essa, infelizmente, ainda tem sido a regra.

Impossível, portanto, aceitarmos a crise do sistema carcerário como algo justificado pelas circunstâncias. Não, não se pode aceitar tal justificação, nem de fato, nem de direito, como já decidido, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 347, em que foi reconhecido, no particular, verdadeiro "estado de coisas inconstitucional", ante a violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar tal conjuntura.

Reconheço, não há, nem pode haver, prisões perfeitas. A mera condição de reunirmos no mesmo espaço pessoas privadas do bem mais fundamental de todos, que é a liberdade, afasta qualquer possibilidade de imaginarmos a possibilidade da existência de um "paraíso prisional". Aliás, esses tempos de pandemia estão a demonstrar que, por mais confortáveis que sejam as nossas próprias casas, a impossibilidade de usufruirmos do que vemos do lado de fora das sacadas e janelas também nos retira um pouco de humanidade.

Daí porque, no que for possível, necessário é que ajamos no sentido de humanizar o cárcere, sob pena de reduzirmos a nada a pessoa presa, anulando por completo sua individualidade e espancando qualquer possibilidade de retorno desse sujeito à condição de cidadão, finda a pena.

Ambientes prisionais degradados não eliminam apenas a finalidade da sanção estatal, mas corroem também a alma dos encarcerados, transformando-os todos, dos "ladrões de galinha" aos mais vis homicidas, estupradores e traficantes, em verdadeiros zumbis, prontos para nos atacarem no "The walking dead" da vida real.

É necessário, portanto, investir na qualidade das nossas prisões. Mais que isso, é fundamental investirmos em pessoas, gestores, agentes penitenciários, assistentes sociais, profissionais da área da saúde, enfim, em todos aqueles que, de alguma forma, atuam no sistema junto aos presos.

Cadeias não são só muros e grades. Há gente cuidando de gente e esses cuidadores também precisam de cuidados, não só no tocante à sua formação continuada, mas também da sua saúde mental e financeira, afinal, são, sim, as penitenciárias os ambientes mais próximos daquilo que podemos chamar de inferno.

Além da formação e do acompanhamento ineficientes, há no Brasil, não se pode negar, um deficit no número de agentes penitenciários, situação que afeta diretamente a ordem e a disciplina nas prisões, abrindo espaço para gestão das unidades pelos próprios presos e facções criminosas.

É sabido, o crime organizado tem transformado presídios em quartéis-generais, retirando nossa capacidade de compreender como é possível que o Estado deixe de controlar ambientes que lhes são próprios e as pessoas que estão sob sua custódia.

O problema é grave, sim, há que se reconhecer, mas as providências para corrigi-lo, por mais difíceis que verdadeiramente sejam, não são irrealizáveis.

Primeiramente, penso ser necessário retirarmos da solução disputas ideológicas. Em geral, os órgãos que atuam ao lado do Judiciário no sistema penal e prisional (Defensoria, Ministério Público, Secretarias de Segurança e de Administração Penitenciária, ONGs, grupos religiosos e assistenciais etc) têm mecanismos de justificação próprios. Natural, portanto, que seus discursos e métodos de análise traduzam os vieses que decorrem da atuação de cada um desses protagonistas.

Essa aparente divergência de pontos de vista, ao contrário de prejudicar, equilibra a administração do sistema e contribui positivamente para sua fiscalização. Com efeito, a defesa dos direitos humanos não deve representar bandeira da esquerda ou da direita. Trata-se de uma conquista civilizatória que nos obriga a todos a lutarmos por sua concretude.

Em segundo lugar, políticas públicas relacionadas ao sistema carcerário não podem se sobrepujar à independência funcional da magistratura. Assim, liberações excepcionais de presos com vista a apaziguar a superpopulação carcerária só podem acontecer se submetidos ao efetivo crivo do controle judicial, até porque a decantada por alguns seletividade penal não decorre, em sua origem, da ação (involuntária) de juízes e tribunais, mas de opções legislativas de representantes eleitos democraticamente.

Enfim, considerando a reduzida capacidade operacional do poder punitivo do Estado, que não consegue solucionar nem 10% dos homicídios cometidos, e ainda a imensa quantidade de mandados pendentes de cumprimento, a conclusão a que se chega é que, pior do que afirmarmos que se prende muito no Brasil, é reconhecermos que se prende mal.

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