Opinião

O perigo está dentro de casa: o estupro em contexto doméstico e familiar na Covid-19

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1 de junho de 2020, 11h03

O Brasil vive hoje um conturbado período de crise política, econômica, sanitária e institucional sob o comando do presidente Jair Bolsonaro, que se aprofunda, sobretudo, por ocorrer durante a devastadora pandemia de Covid-19 momento no qual todos os esforços de nossos representantes deveriam estar sendo voltados para salvar vidas, e não para exterminá-las.

Por isso, desde já advirto que minha pretensão não é discutir esta concepção de política — embora o que pretendo abordar esteja inserido neste contexto (e não pode ser dele desvencilhado). Aqui, me deterei à política em outro sentido, aquele construído pelos movimentos feministas em mais de meio século de teorização e militância contra a violência masculina que atinge os corpos das mulheres, das mais variadas idades e localidades. Adoto um sentido de político que abrange o pessoal aquilo que acontece no âmbito privado, da "vida íntima", dentro de casa.

Em meio ao atual caos brasileiro, sou movida a levantar questões políticas que dizem respeito às experiências de violação de direitos humanos vividas, cotidianamente, pelas mulheres, uma vez que estão sendo silenciadas, apagadas e ofuscadas  pelas atrocidades e escândalos protagonizados pelo governo federal quando não, sufocadas propositalmente pelas políticas do presidente e seus ministérios  e que deveriam ser pauta de debate e, com urgência, objeto de políticas públicas específicas e emergenciais: o aumento dos casos de violência doméstica e familiar contra mulheres e meninas no período de isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19.

As violências não cessam porque estamos afundados no abismo político (e em meio a uma pandemia e atravessadas pelo número crescente de vidas perdidas para o vírus), sobretudo aquelas cometidas contra pessoas vulnerabilizadas sistematicamente no Brasil este país construído sob as estruturas do machismo, do racismo, da LGBTQI+fobia, de divisão de classes e que opera sob as lentes da colonialidade. Ao contrário, elas parecem se agravar em meio às crises. As mulheres continuam sendo e, cada vez mais, são ofendidas, agredidas e mortas, e os dados sobre violência doméstica e familiar indicam o seu crescimento durante o período de isolamento social, na medida que as sobreviventes destas violências estão confinadas no mesmo lugar que seus agressores, isoladas e distanciadas de redes de apoio e, em muitos casos, afetadas pela crise econômica, inclusive por meio do desemprego.

Mas é preciso afirmar de maneira específica que, dentro do espectro das violências que acontecem dentro de casa e são cometidas por familiares no sentido amplo conferido pela Lei Maria da Penha, não se inclui apenas as violências física, moral ou psicológica, mas também a violência sexual, que acomete as mulheres e meninas de maneira desproporcional ao oposto masculino (89% das sobreviventes de estupro são do gênero feminino), e cuja a qual o estupro assume sua forma mais contundente.

Enfatizo o estupro por três motivos: a) ele tem sido meu objeto de estudo há alguns anos; b) porque os mitos que sustentam o imaginário social em torno do que é reconhecido e legitimado publicamente como um estupro real/não simulado (e que falseiam a compreensão desse tipo de violência) impõem que ele é cometido por estranhos/desconhecidos da sobrevivente, quando, na concretude, o estupro é cometido majoritariamente por conhecidos das sobreviventes em especial, por familiares e/ou afetos; e c) enfim, pois, se há interditos no debate sobre violência doméstica e familiar de um modo geral, quando o assunto é estupro nestes cenários o apagamento é duplicado e o silenciamento, intensificado.

O estupro ocorre não apenas, mas sobretudo, em espaços privados e dentro de casa, entre quatro paredes. Embora a "grande narrativa" do estupro, que é construída e reforçada historicamente pelo Estado brasileiro, seja por meio de legislações discriminatórias ou mediante a atuação dos agentes atuantes do sistema de Justiça criminal, limita-o ao seguinte roteiro: o de um crime raro e excepcional, cometido em vias públicas, por um desconhecido (um homem negro) contra uma "mulher honesta", que impõe seu "desejo sexual" pelo uso da força física diante de resistência também física, deixando marcas visíveis e passíveis de serem atestadas via laudo pericial.

No entanto, essa narrativa que se pretende única, fundada em mitos e reprodutora de estereótipos, esconde a realidade da experiência de violação sexual vivida pelas mulheres e tem impacto em como as próprias sobreviventes veem e interpretam suas experiências violentas. Do mesmo modo, são comuns ao imaginário social e, como já dito, limitam o entendimento do que será compreendido como estupro pela sociedade e pelo sistema penal.

Entre os mitos do estupro mais combatidos pelo movimento feminista no ceio do movimento antiestupro e da teorização dele decorrente e uma das mais relevantes é, justamente, o mito de que o estupro é uma violência cometida por estranhos e não por pessoas próximas. Desse modo, as investigações feministas rompem com o ideário que o estupro é cometido somente por um desconhecido, para revelar e difundir que são também e, acima de tudo, crimes praticados por familiares e conhecidos das sobreviventes, ou seja, no âmbito privado das relações interpessoais por companheiros, pais, tios, amigos, conhecidos da família ou chefes no trabalho.

A realidade de que os espaços familiares e privados não são seguros e, ao contrário, são os eixos onde ocorrem as maiores violações contra os direitos das mulheres, já que se manifesta como a primeira instância de controle e opressão do feminino, expandiu o debate sobre diversas formas de violência doméstica e, especificamente, das violências sexuais cometidas no âmbito familiar, causando uma série de alterações legislativas e jurisprudenciais no mundo todo, inclusive aqui, no Brasil.

Em torno de 70% dos estupros são praticados por conhecidos das sobreviventes, entendendo-os como aqueles com quem a sobrevivente possui relações anteriores à violação, como de parentesco/familiar são os próprios pais, ou padrastos, ou avôs, ou tios , amigos da família, parceiro íntimo são os maridos, companheiros, namorados, "ficantes", algum ex ou homens com quem tenham se envolvido afetiva/sexualmente antes da violação , amigos, colegas, chefes de trabalho etc.

Em 24% dos casos, os estupros são cometidos pelo pai ou padrasto das sobreviventes. Apesar desse alto percentual, são poucas as sentenças condenatórias pelo crime de estupro cometidos por tais sujeitos são circunstâncias muito apagadas e casos pouco reconhecidos enquanto a violência que são: as condenações ocorrem apenas nas circunstâncias mais graves, àquelas que são extremamente violentas ou cujo ciclo de silêncio foi interrompido pela gravidez da sobrevivente/filha ou enteada do agressor.

Entre 8% a 12% é a estimativa dos estupros praticados por parceiros íntimos das sobreviventes. Nomeado como "estupro marital/conjugal", são casos não reconhecidos pelo sistema de Justiça criminal enquanto violência sexual, ainda menos que os cometidos por pais e padrastos e, não raras vezes, sequer a própria sobrevivente dessa violência consegue significar e nomear o ocorrido como estupro.

No Brasil, ainda não há dados oficiais e específicos sobre o índice de crescimento de estupros no âmbito das relações pessoais/familiares/privadas durante o tempo de isolamento social (embora investigações já indiquem o risco e a probabilidade de crescimento significativo da violência doméstica durante a pandemia, bem como registrem o aumento de mais de 400% em relatos de violências masculinas contra as mulheres via redes sociais desde o início desse período).

No entanto, os dados levantados até aqui, somados ao fato de que tão somente 12,6% dos estupros são praticados por desconhecidos/estranhos das sobreviventes (ao contrário da "grande narrativa"), obtidos mediante estudos que promoveram, acima de tudo, a escuta das mulheres que sofreram com a violação de cunho sexual, são fortes indicativos de que é possível afirmar a propensão à maior vitimização de mulheres e meninas pelo estupro em contexto doméstico e familiar, por conhecidos, dentro de suas próprias casas, durante o isolamento social.

Os estudos sobre estupro ao redor do mundo, embora contextuais, indicam um funcionamento semelhante que opera mediante a negativa da narrativa de violência e vivência de violação que as mulheres sofrem, com fundamento em grandes narrativas míticas/falsas e estereotipadas. Por isso, as feministas (e eu mesma, inclusive) insistem em afirmar que vivemos em meio a uma cultura do estupro.

Mais uma vez, o contexto impõe reafirmar e, além disso, fazer ruir e ecoar que o estupro acontece, não só, mas majoritariamente, dentro de casa, entre quatro paredes, sem violência física por um homem conhecido. O perigo está aqui dentro e não lá fora.

O não reconhecimento pela sociedade ou pelo sistema penal de violências como crime de estupro em situações mais nuançadas, como aquelas que ocorrem no contexto familiar e doméstico (sobretudo, em relacionamentos afetivos), demonstram que muitas experiências cotidianas de estupro não estão sendo reconhecidas enquanto a violência extrema com características e efeitos de tortura, diga-se que são. E, assim, as nuances (e os estupros ocorridos entre essas linhas) são negadas, silenciadas, invisibilizadas, apagadas.

Enfim, questiono: a quem interessa uma concepção de estupro construída em meio a mitos e estereótipos do estupro já rechaçados tanto pela teoria criminológica crítica quando pela teoria feminista?

Às mulheres aquelas que chamo de sobreviventes  certamente não.

Clique aqui para ler a íntegra do artigo, com as notas de rodapé

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Mailô de Menezes Vieira. Ela não mereceu ser estuprada: A cultura do estupro nos casos penais. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris. 2018.

DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. 1ª Ed. São Paulo. Boitempo, 2017.

___________. Mulheres, raça e classe. 1ª Ed. São Paulo, Boitempo, 2016(1981).

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