Improbidade em debate

Súmula 7 já faz vezes de repercussão geral no recurso especial

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31 de julho de 2020, 8h00

Parece já ter sido assimilado o fato de que a aplicação do Direito não deve se resumir a um silogismo dedutivo. Há muito já falseamos o dogma da completude da lei, de modo que, hoje, interpretação e significação convivem com teorias mais estruturadas e  tributárias da ideia de que a contextualização e a simbiose entre diversos elementos (entre os quais fato, norma, cultura e história institucional) exercem (ou deveriam exercer) papel decisivo na produção jurisdicional do Direito.

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Se a afirmação acima soa trivial, pode parecer surpreendente que dela decorra exatamente o paradoxo que nos fornece mote para este escrito: se é lugar comum que a distinção fato-direito não opera ao menos não sempre de maneira clara, por que motivo o sistema, em determinados aspectos, ainda recorre àquela falácia como máxima insuperável?

Em tese de doutoramento seminal, Danilo Knijnik[4] analisou a questão sob o ponto de vista do recurso especial e das competências extraordinárias dos tribunais, propondo uma teoria triconômica que enlaçaria o problema da distinção fato-direito com vetores (i) hermenêutico, (ii) processual e (iii) dogmático.

Embora o autor assinta que a diferenciação ostenta grande complexidade, seu grande contributo, a nosso ver, foi identificá-la diferenciação com a questão da competência dos tribunais e, ainda, de separar questões puramente de direito, puramente de fato e, ainda, questões mistas. É falar que hipóteses há em que fatos, provas e normas não integram dimensões distintas a remissão à teoria de Miguel Reale é inevitável , mas, sim, que se sobrepõem ou integram uma mesma dimensão.

Editado inicialmente como marco deferente à competência recursal extraordinária do Superior Tribunal de Justiça, o enunciado 7, popularizado que foi, talvez tenha sido expoente maior do que passou a apelidar de jurisprudência defensiva, direito sumular e quejandos. Fato é, contudo, que, com o tempo, sua própria incidência encontrou exceções a partir da distinção entre reexame fático probatório e revaloração jurídica de provas (AgInt no REsp 1.743.546, DJ de 1.7.2020), possibilidade de revisão de valores fixados a título de indenização ou de honorários sucumbenciais quando irrisórios ou exorbitantes (AgInt no AREsp 1.335.013, DJ de 1.7.2020) e, ainda, quando a dosimetria de sanções se revelasse absolutamente desproporcional (AgInt no AREsp 818.503, DJ de 17.10.2019).

Como o passar do tempo, cunhamos para nós a percepção de que a incidência da súmula 7 tem aparentado cariz discricionário. O enunciado, atualmente, mais nos parece e esta reflexão compõe a pesquisa de doutoramento que tem sido empreendida por um dos autores deste texto ter sido guindado às funções de instrumento de gestão jurisdicional para atendimento de metas e enfrentamento de passivos recursais consideráveis ou, ainda, como uma espécie extraoficial de repercussão geral ou de certiorari, se se preferir: “Review on a writ of certiorari is not a matter of right, but of judicial discretion”.[5]

Por isso, não foi com surpresa que recebemos os resultados de pesquisa levada a cabo no âmbito do Instituto Brasiliense de Direito Público, coordenada pelo Prof. Rafael Carneiro, dando conta da disparidade, no recorte temático da improbidade administrativa, de incidência do enunciado 7 e de sua variação relator a relator, turma a turma (da 1ª Seção) e, o que é mais interessante, recorrente a recorrente.

Muito resumidamente, a Segunda Turma é cerca de duas vezes mais tendente a aplicar a súmula (39% dos casos) que a Primeira (18% dos casos). Entre relatores, os Ministros Herman Benjamin e Assusete Magalhães invocam o verbete, respectivamente, em 51,9% e em 46,6% dos casos que relatam sobre improbidade, enquanto os Ministros Ari Pargendler (aposentado) e Teori Zavascki (falecido após ser nomeado para o Supremo Tribunal Federal), nos casos em que funcionaram como relatores, nunca se valeram do enunciado.[6] Finalmente, bastante curioso que o verbete seja aplicado em 11,54% e em 20,24% das decisões quando o recurso especial é interposto pela Administração ou pelo Ministério Público, respectivamente, e em 31,58% e em 34,39% quando o manejo se dá por pessoas jurídicas privadas ou por agentes públicos réus, também respectivamente.[7]

Não cremos, honestamente, que se trate de uma coincidência. Será mesmo que o dobro dos recursos especiais em improbidade recebidos pela Segunda Turma, em relação à Primeira, demanda reexame fático-probatório? Seria esse o caso também de metade dos recursos relatados por dado Ministro, enquanto outro julgador jamais teria deparado com apelos com aquele escopo? Decididamente, não.

Essa discrepância, naturalmente, repercutiu, instando a Seção do Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e remeter ofício ao STJ pedindo por maior objetividade e clareza nos critérios de admissibilidade recursal:

Pelos advogados militantes, tanto nessa matéria como em qualquer outra, as informações trazidas a esse Conselho dizem respeito a uma forte aplicação de jurisprudência defensiva, bem como à divergência de sua incidência a depender da parte recorrente. Conforme narrado pela advocacia e comprovado pelo estudo realizado, o tema é especialmente notado a partir da aplicação do Enunciado da Súmula nº 7 dessa C. Corte com frequência menor aos recursos interpostos pelo Ministério Público, do que naqueles interpostos pelos réus nas ações de improbidade e nas ações penais.

Eis que surge para nós, todavia, uma indagação: mas será que é possível objetivar a incidência da súmula 7? A perseverar a tese que temos desenvolvido no sentido de uma aplicação discricionária, visando em parte a critérios de gestão, conveniência ou oportunidade, pensamos que não, de modo que encaramos a pesquisa e o ofício acima referidos menos como potencialmente eficazes de influenciar de fato a admissibilidade recursal e mais como instrumentos de constrangimento epistemológico[8], que buscam em verdade desnudar o caráter simbólico do enunciado para revelar-lhe a verdadeira vocação o que absolutamente não desmerece pesquisa e ofício; antes, os enaltece.

Estamos, pois, com Knijink, a partir da leitura que lhe empresta Henrique Araújo Costa ao acusar a inviabilidade de um standard geral de admissibilidade separador de fato-direito que conduz à conclusão de que “nenhuma contribuição séria chegaria a uma fórmula que sintetizasse com clareza absoluta essas questões, mesmo porque para tanto seria necessário um verdadeiro glossário de termos dessa síntese. O que se tem na verdade são opções por procedimentalidade, quais sejam, a admissibilidade ou a vedação do conhecimento do recurso e todo esse jogo não pode ser reduzido a fórmulas, nem a métodos e, muito menos a súmulas.[9]

Daí a proposta de Knijnik, que elegantemente o aspecto paradoxal nos parece proposital sugere como redação alternativa para o enunciado 7 texto que, se de um lado admite o próprio caráter contingencial, de outro elege o aspecto sistêmico do Direito como orientador e balanceador da análise, para fins de admissibilidade, da gradação que oscila entre direito e norma (tendo as questões mistas no meio):

Não se conhecerá do recurso especial tendo por objeto questões preponderantemente fáticas. As questões mistas, entretando, poderão ou não ser revisadas “in jure”, desde que certos requisitos se façam presentes, quais sejam (1) a existência de dúvida quanto à observância da margem de decisão e (2) a possibilidade, ao ensejo de revisá-la, de proceder-se a um desenvolvimento posterior do direito, circunscrevendo seu âmbito de aplicação. Nessa definição, poderá o intérprete servir-se de critérios indicadores alternativos – efeito exemplificativo, repetibilidade, transcendência e relevância.[10]

Se a proposta acima, mais de apelo dogmático que prático, pode sofrer natural resistência, não é menos verdade que ela traz consigo o predicado de dar às coisas nome mais próximo do que de fato são, e não do que deveriam aparentar ser.

Resgatando a intersecção do tema deste escrito com o assunto improbidade, nosso foco, o rechaço à incidência da sumula 7, segundo nos parece, deveria ser frequente, mercê exatamente de sua repetibilidade, transcendência e relevância. Em reforço, e para concluir, recorremos a um paralelo com o direito penal, de natureza punitiva como é a natureza da improbidade administrativa, que, conquanto igualmente esteja sujeito à citada súmula em sede de recurso especial, tem o óbice contornado pelo cabimento de habeas corpus — no bojo do qual se admite exame, em alguma medida que seja, de fato e prova. À míngua de garantia constitucional semelhante aplicável aos processos que discutem improbidade, mas assumido seu traço sancionador, temos para nós que surge aqui mais um argumento em desfavor da banalização do óbice em recursos especial que cuidem daquela matéria em particular.

*O texto de hoje foi inspirado por painel do grupo de estudos "O Direito em tempos de Covid-19", realizado em 28.7.2020, e que contou com a participação, além dos autores, de Délio Lins e Silva, Marina Lopes, Rafael Araripe Carneiro, Leonardo Ranña e Isabela Braga Pompilio. O diálogo está disponível aqui.

[4] KNIJNIK, Danilo. O recurso especial e questão de fato: por uma teoria triconômica. Tese de doutorado defendida perante a Universidade de São Paulo. Jan., 2002.

[6] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/stj-em-numeros-improbidade-administrativa-06062020

[8] A primeira referência que temos da expressão, declaradamente inspirada em Bernd Rüthers, é Lenio Streck: https://estadodaarte.estadao.com.br/direito-constrangimento-epistemologico-streck/

[9] COSTA, Henrique Araújo. Reexame de prova em recurso especial. 2006. 244 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 45. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/6962

[10] KNIJNIK, Danilo. O recurso especial e questão de fato: por uma teoria triconômica. Tese de doutorado defendida perante a Universidade de São Paulo. Jan., 2002, p. 280.

Autores

  • é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

  • é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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