Opinião

A colonialidade do Direito e as identidades regionais no Brasil

Autor

  • João Paulo Allain Teixeira

    é advogado professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco membro do Instituto Publius e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

30 de julho de 2020, 18h06

Crescem na literatura jurídica nacional as contribuições dos estudos decoloniais para pensar o Direito e as relações sociais no Brasil. Parte-se em regra da constatação da permanência de estruturas coloniais definindo a estruturação das relações sociais e o perfil assumido pelo Direito na manutenção e reprodução de assimetrias envolvendo classe, raça e gênero. Como característica mais evidente da colonialidade no plano jurídico, a adoção de modelos de pensamento inspirados majoritariamente pelas experiências metropolitanas, forjados em um contexto significativamente estranho às demandas de uma sociedade diversa e plural [1]. Assim como a própria noção de "sujeito de direito" é permeada pelo olhar do colonizador [2], o Direito que se desenvolve no Brasil é fruto de uma percepção eminentemente europeia sobre os valores merecedores de tutela e proteção.

O desenvolvimento da perspectiva decolonial enfatiza em regra a singularidade latino-americana, apontando a impossibilidade de aplicação de modelos jurídicos alheios às questões que de modo visceral constituem a realidade continental. Assim, os temas relativos ao extermínio dos povos originários e à adoção de uma matriz econômica fundada na escravidão, definidoras da estrutura social da América Latina, apesar de estranhos à realidade europeia, inspiram o mainstream teórico utilizado pelos juristas latinos para explicar e dar sentido jurídico aos fenômenos sociais. A profusão de referências a Alexy, Dworkin e quejandos, tanto na formação dos bacharéis em Direito como nas decisões dos tribunais, bem o atestam. Por isso, não é de estranhar que autores estrangeiros sintam-se tão à vontade para, por exemplo, defender uma nova Constituição para o Brasil [3]. Os estudos decoloniais trazem contribuições relevantes para a compreensão das dificuldades envolvidas na tarefa de pensar Direito e democracia (em si mesmas categorias de origem metropolitana) no contexto de um continente cuja herança colonial permanece viva. Nesse cenário, os desenvolvimentos teóricos na chave da interseccionalidade [4], ao articular classe, raça e gênero como categorias entrelaçadas no próprio projeto colonial, ajudam a compreender os desafios postos no horizonte.

Contudo, quando pensamos na experiência brasileira podemos apontar múltiplos desafios, que se apresentam não apenas na dimensão das questões étnico-raciais, econômicas ou de gênero. É que apesar do esforço de parcela significativa do pensamento crítico nacional em evidenciar os paradoxos e contradições do pensamento jurídico moderno/colonial, alguns temas seguem insuficientemente explorados, tal como acontece com o enfrentamento dos processos de colonialidade interna e seus impactos na definição das especificidades regionais. Em um país historicamente diversificado quanto aos processos de formação identitária, multifacetado e recortado por diferentes perspectivas, o debate decolonial parece não se apropriar adequadamente da dimensão dos desafios postos ao pensamento jurídico nacional no que se refere a temas como pobreza, violência, estigmatização, exclusão etc. em perspectiva regional. Apesar do encalistrado desenvolvimento da perspectiva, a própria Constituição de 1988, ao reconhecer a relevância do tema, traz dentre os objetivos do Estado brasileiro, "a redução das desigualdades sociais e regionais" (grifo do autor). A sugestão que aparece implícita neste silenciamento decorre da tímida reflexão, no campo da crítica jurídica, sobre as diferentes camadas de colonialidade presentes na formação do imaginário social sobre o papel do Direito brasileiro diante da particularidade das demandas regionais.

Primeira região do país a ser economicamente explorada pela metrópole, no Nordeste as vastas fazendas de cana-de-açúcar utilizavam mão de obra escravizada (indígenas e africanos). Com o esgotamento da exploração da cana-de-açúcar e a mudança do eixo econômico para as regiões meridionais do Brasil, a economia nordestina entra em declínio. As crescentes restrições (internas e externas) à utilização de mão de obra escrava determinaram a atração do imigrante europeu para as lavouras de café estabelecendo diferenças entre os modelos coloniais adotados no Nordeste e no Centro-Sul do país.

As assimetrias decorrentes das distintas perspectivas de desenvolvimento econômico evidenciadas pela industrialização do centro-sul em contraste com a permanência agrária do Nordeste podem explicar um amplo espectro de estigmas envolvendo manifestações sociais oriundas da região. Como bem aponta o marco teórico decolonial, a naturalização do modelo de industrialização como única alternativa de desenvolvimento é ideia tipicamente vinculada à tradição moderna/ocidental, surgida no contexto da expansão do capitalismo no continente europeu.

Assim, no ensaio que aqui proponho, chamo a atenção para os diferentes níveis de reflexão quanto à construção de uma teoria crítica em uma realidade não apenas latino-americana, mas, sobretudo, brasileira e também regionalmente orientada. A exploração das fronteiras no contexto de epistemologias regionais bem pode contribuir para pensar as potencialidades do Direito e a sociedade em uma sociedade plural e diversificada como a brasileira.

Os caminhos e perspectivas vislumbrados em perspectiva regional favorecem a superação caráter monológico que orienta historicamente o pensamento jurídico brasileiro, contribuindo verdadeiramente para a construção de epistemologias plurais.

 


[1] Nas ciências sociais, o "giro decolonial" é fruto das reflexões do grupo Modernidade/Colonialidade integrado dentre outros por Enrique Dussel, Walter Mignolo, Ramón Grosfoguel e Catherine Walsh.

[2] ALMEIDA, Sílvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

[3] Ver nesse sentido, recente texto de Bruce Ackerman no Correio Braziliense: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/opiniao/2020/07/13/internas_opiniao,871622/o-brasil-precisa-de-nova-constituicao.shtml Em sentido diverso, apontando inadequação da leitura do jurista estadounidense, Streck e Cattoni: https://www.conjur.com.br/2020-jul-15/streck-cattoni-brasil-ackerman-licao-platao-siracusa e também Thomas da Rosa Bustamante, Emilio Peluso Neder Meyer, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Jane Reis Gonçalves Pereira, Juliano Zaiden Benvindo and Cristiano Paixão, Why Replacing the Brazilian Constitution Is Not a Good Idea: A Response to Professor Bruce Ackerman, Int’l J. Const. L. Blog, Jul. 28, 2020, at: http://www.iconnectblog.com/2020/07/why-replacing-the-brazilian-constitution-is-not-a-good-idea-a-response-to-professor-bruce-ackerman/

[4] AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019; CRENSHAW, Kimberle "Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics," University of Chicago Legal Forum: Vol. 1989 , Article 8.Disponível em: https://chicagounbound.uchicago.edu/uclf/vol1989/iss1/8/.

Autores

  • é advogado, professor da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade Federal de Pernambuco, professor do programa de pós-graduação em Direito de ambas universidades e líder do Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC).

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