Olhar econômico

Impactos da crise da Covid-19 no direito antitruste

Autor

  • João Grandino Rodas

    é presidente e coordenador da Comissão de Pós Graduação Stricto Sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e Sócio do Grandino Rodas Advogados. Desembargador Federal aposentado do TRF-3 e ex-reitor da USP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP da qual foi diretor mestre em Direito pela Harvard Law School mestre em Diplomacia pela The Fletcher School e Mestre em Ciências Político-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

30 de julho de 2020, 12h06

Spacca
Tem-se notícias da ocorrência de pestes desde quando o ser humano iniciou a agricultura e a criação doméstica de animais, há cerca de 10.000 anos. A causa foi a aproximação de vírus selvagens com animais caseiros. Desde então, de tempos em tempos, surtos patogênicos, aumentando gradativamente seu alcance geográfico transformam-se em epidemias e, a seguir, em pandemias. Dentre essas, as mais conhecidas da história da humanidade são: (i) Praga de Atenas (séc. V A.C.), registrada por Tucídides em sua História da Guerra do Peloponeso, por ele testemunhada pessoalmente; uma espécie de febre tifoide bacteriana, que matou um terço dos habitantes dessa cidade; (ii) Peste dos Antoninos (165/180 D.C) – causa não desvendada – toda a área do Império Romano, exterminando cinco milhões de viventes; (iii) Praga Justinianeia (541-542 D. C.) – bactéria Yersinia Pestis, transmitida por pulgas e ratos – Egito, Oriente Médio, Ásia Menor e Europa – vinte e cinco milhões de pessoas; (iv) Peste Negra (1346/1353) – Yersinia Pestis – Ásia, África e Europa – 75 milhões de pessoas; (v) Cólera (1852/1860) – bactéria vibrião colérico – Ásia, África, Europa e América do Norte – um milhão de seres humanos; (vi) Gripe Russa (1889/1890) – vírus influenza H2N2 – Rússia, Europa, Américas, incluindo o Brasil – um milhão e meio, em sua maioria jovens; (vii) Cólera (1910/1911), vibrião colérico – Oriente Médio, Rússia, África, Europa e Américas – oitocentas mil pessoas; (viii) Gripe Espanhola (1918) – vírus influenza H1N1- todo o mundo- mais de 50 milhões de pessoas; (ix) Gripe Asiática (1956/1958) – vírus influenza H2N2 – China, alguns outros países asiáticos e Estados Unidos – cerca de 2 milhões de pessoas; (x) Gripe de Hong Kong (1968) – vírus influenza H3N2 – Ásia, Austrália, Europa e América do Norte – mais de um milhão de pessoas; (xi) AIDS – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (1976 até o momento) – vírus HIV – todo o globo – 40 milhões; e (xii) Coronavirus Disease 19 (2019 até o momento) – coronavírus SARS.Cov.2 – todo o mundo – 400 mil pessoas até o momento.

Ressalte-se que a celeridade de disseminação das epidemias, que surgem localizadamente, aumentou quando os meios de transporte encurtaram as distâncias geográficas. Os exércitos foram grandes transmissores desde a Antiguidade, mesmo quando se deslocavam a pé. As pulgas, os ratos e as pessoas transportados pelos navios mercantes que deram início ao comércio internacional, ainda na Idade Antiga; bem como pelos navios de guerra aumentaram tal velocidade. A estrada de ferro e, posteriormente, o transporte aéreo propiciariam a culminância da rapidez da difusão epidêmica. Tal velocidade de propagação e o aumento dos seres humanos no mundo, em progressão malthusiana, contribuem fortemente para o aumento do número de pessoas atingidas.

As pandemias sempre causaram profundos efeitos de várias ordens, inclusive de natureza jurídica e econômica, nas comunidades, organizações, governos etc.; atingindo pesadamente as estruturas de produção e distribuição. Contrariando a máxima historia docet (a história ensina), o alentado rol de pandemias acima relembrado não foi suficiente para chamar a atenção das empresas, dos Estados e dos gestores da presente ordem econômica internacional, no sentido que as ameaças à saúde mereciam no mínimo a mesma atenção que vinha sendo dada para falhas de sistema, câmbios regulatórios, atentados cibernéticos e ativismo político e social. Considerar que uma pandemia fosse evento de probabilidade baixa foi o erro incorrido, daí a surpresa e o despreparo demonstrado, inclusive pela Organização Mundial da Saúde, para diagnosticar e equacionar crise sanitária singular, do porte e do impacto da Convid-19.

A globalização que chegou a ser considerada tendência irreversível, e inelutável, há relativamente pouco tempo, vem sendo combatida em muitos pontos da terra pelo nacionalismo ressurgente e a atual pandemia contribui para solidificar a argumentação nesse sentido.

A intensidade da aplicação do direito concorrencial tem demonstrado periclitação, tanto pela tendência dos governos em exercício, quanto pelas circunstâncias reinantes no momento. Posições do governo dos Estados Unidos da América e da União Europeia comprovam os altos e baixos na efetivação dos respectivos direitos e políticas antitruste em vigor. Por outro lado, muito provavelmente, posições universalistas concorrenciais da OCDE e do ICN enfraquecem-se em favor da nacionalização das políticas de competição. Como em muitas outras áreas jurídicas, um certo grau de adaptabilidade do direito concorrencial vem sendo necessário; não se sabendo até que ponto tal acomodação durará pelo tempo da pandemia ou contribuirá para mudanças permanentes.

Importantes questionamentos que demandam respostas1.

Minimizar-se-á a luta internacional contra carteis? Serão, de um lado, mais tolerados os carteis de exportação como instrumento de política industrial; e, de outro, a flexibilização da punição de carteis em tempo de crise, por serem tidos como benéficos?

No âmbito da análise de fusões e incorporações, diminuirá a cooperação internacional em favor da sobrevivência de empresas e empregos, assim como no intuito de incrementar o suprimento de produtos essenciais? A pedra de toque "padrão do bem-estar do consumidor" sofrerá relativização? Haverá maior interesse na sustentabilidade dos mercados nacionais?

Como ficará a implementação de condutas verticais ou unilaterais? Ficará provado que a competição somente funcionará bem, quando houver estabilidade econômica e quando os meios de produção estiverem no pico de seu aproveitamento?

Para responder essas perguntas será necessário examinar a cooperação entre concorrentes para garantir abastecimento em setores críticos, a possibilidade e o grau de acordos temporários de cooperação entre empresas para possibilitar sobrevivência; a possibilidade de admitir carteis de crise em prol da sobrevivência empresarial.

Cabe, precipuamente, ao CADE, às autoridades da área, aos estudiosos e aos think tanks, colaborar para que as perguntas acima sejam respondidas satisfatoriamente. Tudo em busca do aggiornamento, o quanto possível adequado e temporário, do regime brasileiro de concorrência, com o objetivo de enfrentar a crise e amenizar o dano ao consumidor.


1 Carvalho, Vinicius Marques de, “Convergence in the Time of Cholera: What Lies Ahead for the International Antitrust Agenda.” Competition Policy International, maio de 2020. < http://www.vmca.adv.br/convergence-time-cholera-lies-ahead-international-antitrust-agenda/ > acessado em 29/07/2020.

Carvalho, Vinicius Marques de; e Machado, Henrique Felix, “Cartéis de crise e a Covid-19: possíveis caminhos para a política concorrencial”, Jota, abril de 2020. < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/carteis-de-crise-e-a-covid-19-possiveis-caminhos-para-a-politica-concorrencial-02042020 > acessado em 29/07/2020.

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