Opinião

A crise, afinal, não é para todos

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30 de julho de 2020, 17h26

Não parece exagero dizer que "crise" e "coronavírus" são as palavras de ordem de 2020. Nem poderíamos esperar que fosse diferente, considerando que a pandemia, no Brasil, já superou o recorde de mortes deixado pela gripe espanhola, último grande surto viral registrado na história mundial. Ao falarmos de crise, contudo, precisamos de cautela: se o afã inicial fez pensar que a pandemia traria uma depressão econômica grave e generalizada, os fatos e números atuais denunciam que essa previsão é uma "meia verdade".

Pois bem, não pretendemos aqui lutar contra fatos e a crise é um fato: há recorde nos números de desemprego, expectativa de queda para o PIB e aumento da inflação, além de uma onda de falências, especialmente entre empresários do setor de serviços. Não se trata, todavia, de uma crise generalizada, já que, ao lado do insucesso de muitos, há uma torrente de prosperidade para alguns.

É o que mostra o aumento no valor das ações negociadas em bolsa de valores de empresas como Magazine Luiza, com alta de 41,59% em 2020, e B2W (dona das varejistas Americanas.com, Submarino e Shoptime), cujo aumento foi de 49,54% no mesmo período. Outro exemplo de sucesso na crise são as plataformas de delivery, como Rappi, Ifood e Uber Eats que surfam na onda do aumento de demanda para entrega em razão do isolamento social.

Certamente o crescimento de alguns setores econômicos não é argumento suficiente para negar o cenário de depressão pelo qual o mercado passa. No entanto, não podemos ignorar o fenômeno de expansão de determinados setores, sobretudo no momento de estruturação de políticas públicas para a retomada da economia. Falar em crise, de forma generalizada, como se afetasse toda a sociedade e todos os agentes econômicos indistintamente é uma falácia colocada a serviço do interesse de poucos e que pode significar o prejuízo de muitos.

Nesse contexto, para pensarmos a retomada econômica é preciso, mais do que nunca, estar atento ao dever de isonomia imposto pela Constituição, que exige que aqueles em posição de desigualdade sejam tratados desigualmente, sob pena de reproduzir aqui aquela velha canção — sempre atual — que narra a tragédia brasileira em que o "rico cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre".

Em suma, se a crise não é para todos, a ajuda do poder público também não pode ser. Não podemos deixar que a palavra "crise", que domina os discursos atuais, seja utilizada como cortina de fumaça para favorecer agentes econômicos que experimentaram franco crescimento neste período.

É preciso pesquisa, planejamento, impessoalidade e eficiência na construção de políticas de incentivo ao setor privado, com a identificação daqueles setores e agentes mais prejudicados e mais necessitados da atuação do Estado. Essa última categoria certamente não inclui gigantes do e-commerce, mas, sim, ao que parece, os pequenos e médios comerciantes do setor de serviço, sabidamente mais frágeis, com piores condições de acesso ao crédito e mais dependentes de consumidores locais.

Aqui — com o perdão por sugerir tamanha heresia — temos de subverter Machado de Assis: não podemos entregar ao vencedor as batatas. No Brasil de 2020, o lema deve ser: ao perdedor, as batatas.

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