Opinião

Tráfico de pessoas: Brasil tem de passar do Direito Penal da vítima à vitimologia

Autor

  • Carlos Nicodemos

    é advogado do NN-Advogados Associados membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos e da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB-RJ e integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

30 de julho de 2020, 11h12

Com a edição do Protocolo de Palermo, instrumento jurídico opcional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, que dá tratamento normativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças, esta histórica e secular agenda social ganhou contornos de interesse dos Estados no desenvolvimento de leis, programas e políticas públicas.

Neste dia 30 de julho, comemora-se o Dia Mundial de Combate ao Crime de Tráfico de Pessoas e, por conseguinte, torna-se uma premissa momentânea refletir sobre o processo evolutivo nacional dessa agenda, inclusive quanto às suas contradições.

O Estado brasileiro aderiu e incorporou ao ordenamento jurídico o Protocolo de Palermo, através do Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004.

O tráfico de pessoas no mundo movimenta cerca de 30 bilhões de dólares com as ações ilegais de exploração de, aproximadamente, 2,5 milhões de pessoas, segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).

Como se tem apurado, o tráfico de pessoas atua nas atividades e fins vinculados a processos migratórios, exploração do trabalho, além da ação ilegal do tráfico de órgãos, que constitui uma das mais intrigantes violações de direitos humanos que não se aprofundam as ações investigativas.

Na finalidade de exploração do trabalho, ganha destaque negativo a situação das mulheres que são traficadas para fins de exploração sexual, na qual recai um forte recorte de vulnerabilidade socioeconômica das vítimas, implicando notoriamente os países do hemisfério sul, especialmente da América Latina e da África, sem perder de vista os países do leste europeu.

A partir da referência do artigo 3 do Protocolo de Palermo, temos na alínea "a" a definição de "tráfico de pessoas" como: "Recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos".

Ao longo desses 16 anos de vigência do Protocolo de Palermo no cenário institucional do Estado brasileiro, algumas iniciativas foram adotadas a fim de levar adiante esta agenda, entre elas, podemos destacar: o Decreto nº 5.016/2004, que promulgou o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea; a Lei 11.106/2005, que alterou os artigos 148, 215, 216, 226, 227, 231 e acrescenta o artigo 231-A do Código Penal; a Portaria MJ nº 2.167 de 07/12/2006, que instituiu a aplicação do Plano de Ação para a Luta contra o Tráfico de Pessoas entre os Estados Parte do Mercosul e os Estados Associados; o Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006, que aprovou a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e institui Grupo de Trabalho Interministerial, com o objetivo de elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP); o Decreto nº 6.347, de 8 de Janeiro de 2008, que foi alterado pelo Decreto nº 10.087 de 2019, que aprovou o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP) e institui Grupo Assessor de Avaliação e Disseminação do referido Plano; a Portaria nº 31, de 20 de agosto de 2009, que estabeleceu as diretrizes para o funcionamento dos Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Postos Avançados; a Lei nº 13.444, de 6 de outubro de 2016, que definiu a prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas, alterando especialmente a legislação penal; a Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017, que institui as normas de migração no país, inclusive a criminalização do tráfico de pessoas com este fim; e por fim o Decreto nº 9.833, de 12 de Junho de 2019, que regulamentou o novo Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

A pergunta que se coloca nesta data comemorativa de 30 de julho é quanto aos resultados alcançados com as medidas institucionais do Estado brasileiro. Como se vê, a ênfase das medidas adotadas pelo Brasil são na sua maioria no campo normativo e no foco da criminalização do problema. Não que seja descartável invocar o Direito Penal como ferramenta de proteção de interesses e direitos. Mas quando isso se impõe como uma regra e não uma complementação, acabamos por gerar uma distorção que, neste caso, chamamos de política do Direito Penal da vítima.

Fato é que o marco normativo internacional do tráfico de pessoas está ancorado na Convenção de Combate aos Crimes Transnacionais, como vimos no início desta reflexão.

Mas fortalecer e fomentar esta lógica foi uma escolha que o Estado brasileiro fez nas medidas adotadas ao longo das duas últimas décadas. Ao longo desse período, as ações e leis editadas deram primazia a posicionar o tema do tráfico de pessoas na lógica da segurança pública, e não no campo dos direitos humanos. A começar pela escolha de tratamento institucional nos últimos governos federais, que insistiram e permanecem fazendo a gestão da política de enfrentamento ao tráfico de pessoas no âmbito do Ministério Público e, atualmente, no denominado Ministério da Justiça e Segurança Pública.

É no órgão acima que se situa o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

Fato é que no atual governo os conselhos e comitês de participação social não gozam de prestígio e, depois de sofrerem uma ação verticalizada de ajustamento ideológico, passaram a ser apenas referências institucionais sem valor de incidência nas políticas públicas.

A edição da Lei nº 13.444/2016, que definiu a prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas, e da Lei nº 13.445/2017, que institui as normas de migração no país, trouxe medidas administrativas e sociais significativas, mas acabaram mantendo o contorno de segurança pública com o problema social.

Essa escolha internacional adotada pelo Estado brasileiro acabou por deixar como "legado" nestes 16 anos a criminalização do tráfico de pessoas.

Essa premissa de intervenção acabou por posicionar as ações de assistência à vítima a uma atuação do Estado-polícia que estendia e auxilia muito mais na perspectiva de ter uma testemunha para desvendar um crime que movimenta U$ 30 bilhões por ano — só perdendo para o tráfico de armas e drogas — do que proteger os direitos humanos violados de centenas de milhares de crianças, mulheres, jogadores de futebol, refugiados etc.

Fato é que não fizemos a passagem do Direito Penal da vítima para a vitimologia, como professou Gerardo Landrove (La Moderna Victimología — Ed. Tirant lo Blanch Libros.1996. P.33, em sua obra La Moderna Victimología): "La Victimología em su desenvolvimento se há preocupado preferencialmente de las custiones siguientes: de la indenizaciones a las víctimas de hechos delictivos, de la elaboración y ejecución de programas de ayuda y tratamiento a las mismas, de alcanzar uma mejor comprensión del fenómeno criminal em función de la posible intervención de la víctima que pude matizar la responsabilidade del delincuente, del exámen de la predisposición victima, en orden a una más fructífera prevención del crimen, y la específica protección de las vícitimas-testigo."

No mesmo norte literário, García-Pablos Molina (Criminología — Una Introducción a sus Fundamentos Teóricos para Juristas. 3a Edición. Ed. Tirant lo Blanch Libros. Espanha. 1996. P. 39) considera que as vítimas dos delitos tendem a ser neutralizadas pelo Estado: "El abandono de la victima del delito, desde luego, se aprecia y por muy diversas causas tanto en el ámbito jurídico, como en el empírico y en el político".

Dessa forma, é possível afirmar que, atualmente, o país conta com uma política de enfrentamento ao tráfico de pessoas alinhada na perspectiva clássica de combater o crime e prender os delinquentes integrantes das organizações criminosas.

A vítima do tráfico de pessoas internacional para o Estado brasileiro cumpre um papel funcional de servir ao sistema penal como elemento de prova, e não como sujeito de direitos humanos.

A invisibilidade política que a vítima de tráfico de pessoas padece neste cenário institucional criminalizador do Estado brasileiro acaba por ignorar as dinâmicas sociais de configuração deste problema, promovendo um deslocamento causal da superestrutura econômica para o etiquetamento da pessoa que sofre as violações de direitos, neste caso, a vítima.

Assim, seguimos alimentando um sistema criminal em detrimento das políticas afirmativas de direitos humanos das vítimas de tráfico internacional de pessoas.

Resta-nos, então, a utopia de traçar os caminhos na democracia que possam romper esse Direito Penal da vítima em prestígio à vitimologia no contexto do tráfico internacional de pessoas.

Resistir ao punitivismo clássico liberal aparelhador de vítimas pode ser o primeiro passo.

Autores

  • é advogado, presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB-RJ e membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB e do Projeto Legal e MNDH.

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