Opinião

A possível cobertura de lucros cessantes sem danos físicos — Parte 2

Autor

  • Ernesto Tzirulnik

    é advogado doutor em Direito pela Universidade de São Paulo(USP) é presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro e da Comissão de Direito do Seguro (IBDS) e resseguro da OAB-SP.

29 de julho de 2020, 19h14

Texto da palestra no "I Congresso Digital — Covid-19 — Repercussões sociais e jurídicas da pandemia", realizado pelo Conselho Federal da OAB, em 27 de julho de 2020.

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b) Dano

Spacca" data-GUID="ernesto_tzirulnik.png">Dano é lesão a interesse e muitas vezes não coincide com lesão física a coisas. A inutilidade de um bem é o pior que lhe pode acontecer e, para não garantir esse risco, o segurador deve ser muito claro na sua apólice. Mesmo assim, se o interesse fica sensivelmente desprotegido diante da exclusão, incidirão os princípios de interpretação que tendem a buscar utilidade para o negócio jurídico interpretado.

Mesmo na França, onde se vê a expressão "dano material", cunhada na lei, com acepção que alguns autores identificam como sendo a de "dano à matéria", o significado em expansão faz equivalerem as expressões dano patrimonial e dano material. Dano material é sinônimo de dano patrimonial — dano ao interesse sobre o patrimônio, portanto.

Basta rápido acesso ao Dictionnaire juridique mais comum na internet para checar. Clicando-se no verbete dommage matériel, dano material, leremos que a perda de salário ou o surgimento de necessidades similares são espécies de dano material:

"Dommage matériel par exemple une diminution de salaires ou de revenus ou la nécessité d'avoir recours à une tierce personne pour accomplir les actes de la vie quotidienne".

Entre nós, dano material é sinônimo de dano patrimonial — e não de dano físico. O dano material opõe-se ao dano moral e não depende de alteração física de coisa alguma.

A respeito, vale a pena ler o artigo "Considerações sobre a noção de dano" do magistrado e professor Marcelo Benacchio, ou reler José de Aguiar Dias, na sua obra clássica "Da Responsabilidade Civil", em que também já ensinava que dano material é sinônimo de lesão ao interesse sobre o patrimônio. Daniel Stiglitz, na sua monografia "Daños y perjuicios", confirma que dano material é o dano ao interesse patrimonial, o que é reiterado em outra obra essencial sobre o tema, "Derecho de Daños Nuevos aspectos doctrinarios y jurisprudenciales", de Jaime Fernandez Madero. O verbete "dano patrimonial", da boa e velha Enciclopédia Saraiva do Direito, esclarece que dano patrimonial é a simples perda de utilidade da coisa, não sendo necessária a sua perda física, parcial ou total. De Plácido e Silva presta idêntica contribuição. Se ficarmos "apenas" com a obra clássica de Adriano De Cupis, Il Danno, também ali confirma-se que dano material é sinônimo de dano patrimonial e compreende qualquer lesão a um interesse patrimonial, como é o interesse no lucro que cessa [1].

c) A relação entre interesse e dano

Além dos seguros abrangerem todos os riscos do tipo do seguro contratado, não se confundindo "predeterminação" com "especificação", como já se pretendeu na história legislativa (sem sucesso), há mais de um século os juristas e técnicos passaram a perguntar-se se o seguro funcionaria cobrindo as coisas dos patrimônios segurados ou se, para ter real utilidade, deveria cobrir os interesses dos segurados relacionados a essas coisas. A resposta, como visto, foi dada pela teoria do interesse. Está nas leis belga, suíça e alemã, desde a passagem do século XIX para o século XX. No Brasil, tornou-se mais conhecida graças aos esforços de Tullio Ascarelli e de Fábio Konder Comparato.

Essa foi a teoria que, além de informar a melhor doutrina brasileira dos séculos XX e XXI, acabou positivada no Código Civil Brasileiro de 2002, em primeiríssimo plano. Faz parte da definição do próprio contrato de seguro no artigo 757: "O seguro garante o legítimo interesse do segurado relativo à coisa".

Por isso, é muito importante lembrar que o seguro protege o interesse relacionado aos bens materiais, como o lucro esperado, e não às coisas em si. O objeto do seguro, a medida do prejuízo e a titularidade do crédito ao seguro, tudo isso está relacionado ao interesse, e não à coisa. Isso protege tanto os segurados como as seguradoras. Dá utilidade ao seguro e evita o enriquecimento sem causa do segurado.

Nos anos 1980, quando comecei a atuar intensamente na área, como dirigente de departamento jurídico de seguradora e, depois, como advogado de seguradoras e resseguradoras, todos intuíam e aplicavam a teoria do interesse. As seguradoras tinham técnicos que consideravam ser um atraso a coisificação dos seguros.

Algumas resseguradoras estrangeiras, como a estadunidense AIG e a francesa SCOR, e seus forasteiros reguladores de sinistro, no vácuo deixado pelo IRB que veio negligenciando competências desde os anos 1990, introduziram a mencionada ideia restritiva do "dano físico à propriedade tangível" nas apólices de seguros de riscos operacionais e de engenharia, fazendo constar como condição da cobertura de lucros cessantes, e mesmo de danos materiais em geral, a caracterização de "danos físicos à propriedade segurada".

Isso, portanto, é uma novidade que acabou sendo engolida pelas "autoridades" via IRB (no fim do monopólio, em 2007) e agasalhou-se em todos os nossos nichos colonizados.

A equiparação do dano material ao dano físico não é nada intuitiva ou natural. Não é da nossa tradição. É do Direito francês e, mesmo na França, autores do Direito do Seguro do porte de Hubert Groutel, insistem na ênfase à proteção ao interesse patrimonial e não às coisas.

Apesar de as nossas regulamentações administrativas não serem as mais bem-feitas e precisas, no glossário que a Susep preparou para orientar os agentes econômicos do mercado de seguro e resseguro, o dano material pode prescindir, isto é, dispensar, a alteração física, bastando haver redução de utilidade.

"Glossário Susep — DANO MATERIAL

Toda alteração de um bem corpóreo que reduza ou anule seu valor econômico, como, por exemplo, deterioração, estrago, inutilização, destruição, extravio, furto ou roubo do mesmo".

Ora o defeito de funcionamento e a inutilidade sem feridas à flor da pele podem prejudicar a utilização dos bens da vida, mesmo as coisas corpóreas. São muitas as razões para insistir na devida atenção às diferentes cláusulas de exclusão, não apenas nos seus termos, como nas situações a que se aplicam.

III) A interpretação das apólices comercializadas no Brasil
Outro problema que tenho visto na defesa da exigência de dano físico é a afirmação, sem base, de que nosso sistema jurídico acolhe seguros de riscos nomeados e, apenas excepcionalmente, os seguros são contra todos os riscos do tipo. Isso não é verdadeiro.

Nossas apólices são muito mal escritas. Muito desmazeladas. Ninguém cuida direito delas, nem as seguradoras, nem as autoridades de controle e supervisão, e o Judiciário tem sido condescendente com isso. Precisam mudar urgente, as seguradoras têm o dever de revê-las e melhorá-las, no interesse próprio e no dos seus clientes e resseguradores.

Como são as apólices, de modo geral? Elas apresentam o objeto da cobertura, quase sempre. Às vezes numa linha apenas, referindo o tipo de interesse, de bem ou de risco. Não há uma lógica, nem na denominação do ramo ou da modalidade: seguro de automóvel, seguro de incêndio, seguro empresarial…

Depois, vem uma série de exclusões de risco, de interesses, de tipos de lesões etc. Nenhum sistema, mais uma vez. Há apólices que se apresentam como "contra todos os riscos nomeados". Por aí vai.

Trabalhei com centenas de sinistros de riscos de engenharia, representando os mais diferentes interesses, e nunca vi, por exemplo, uma exclusão do chamado itself na cobertura de erro de projeto que pudesse ser entendida por quem quer que seja. Quando sugeri redações claras, corretores desaconselharam minhas clientes, porque ficaria difícil vender com aquela exclusão. Afinal, como lembra a jurista francesa Anne Pelissier, é no momento da regulação do sinistro que os lobos saem do bosque.

Depois de enunciar um objeto e desfilar um exército de exclusões, aparecem as chamadas coberturas adicionais e, para a surpresa de todos, até dos mais experientes securitários, o risco que estava coberto passa a ser excluído pela cobertura adicional. É o "dá com uma mão, tira com a outra", fenômeno internacionalmente conhecido por Ensuing loss Clause, que já recebeu no Brasil ao menos um estudo profundo, da professora Judith Martins-Costa, ainda inédito.

Voltando aos nossos seguros, ao contrário dos que vaticinam que os seguros são naturalmente de riscos taxativamente discriminados, Pontes de Miranda já ensinava que no seguro vigora o "princípio do risco integral". É da maior relevância, para quem quer mesmo aprofundar-se no tema, lembrar que nos anos 1960 as seguradoras estimularam fosse inserido no Projeto de Código Civil um parágrafo ao artigo 757, prevendo a interpretação restritiva do risco. No entanto, os legisladores reprovaram a ideia e a regra não veio ao nosso ordenamento jurídico. Para lembrar um grande poeta, quem diz que o artigo 757 prevê a interpretação estrita dos riscos voa dogmaticamente e incivilmente.

Afastado esse parágrafo restritivo da cobertura, como lembra a ministra Nancy Andrighi, prevaleceu "o princípio da preservação da garantia, segundo o qual o contrato cobre amplamente uma natureza de risco, ou seja, a amplitude da garantia prevalece contra a restrição genérica" (REsp 1.613.589-SP). Esse princípio, segundo a estudiosa Ministra, conduz a que "apenas em havendo expressa restrição na apólice é que algum prejuízo decorrente de um sinistro pode vir a não compor o valor a ser indenizado".

Na nossa experiência judiciária, a teoria do interesse também não é novidade alguma. São diversos os casos em que já foi aplicada. Falarei apenas de um.

No Projeto Alumar, montaram-se duas gigantescas caldeiras do tamanho de dois edifícios de dez andares cada. Antes de colocá-las para gerar o vapor destinado ao funcionamento da planta industrial, percebeu-se que a pressão subia demasiado, logo na partida. Continuar o funcionamento poderia causar a explosão das caldeiras, colocando em risco a vida e a integridade física dos trabalhadores. No mínimo, sua operação seria instável e geraria custos adicionais muito elevados. As caldeiras ficaram inúteis economicamente e precisavam ser desmontadas, reparadas e remontadas. A seguradora recusou-se a indenizar essas despesas porque não havia dano físico às caldeiras. As caldeiras, afinal, não explodiram, nem se incendiaram, nem sofreram o impacto de um raio, riscos cobertos pelo seguro.

A Justiça de São Paulo decidiu que a indenização deveria ser paga, pois o seguro garantia o interesse apesar de não ter ocorrido o "dano físico à coisa", previsto como condição da apólice. Como já ressaltou a ministra Nancy: "A expressão em inglês traduzida por 'propriedade segurada' teria, como seu equivalente no ordenamento jurídico brasileiro, a expressão 'interesse segurado'".

São muitos os juízes das instâncias superiores que já refletiram sobre a matéria e tiveram ocasião de confirmar a importância da teoria do interesse. Para ficar em alguns deles, o saudoso ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior, a ministra Nancy Andrighi, bem como os ministros João Otávio de Noronha, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva.

É claro que isso não torna certa a vitória dos segurados que demandarem indenizações em situações de sinistro relacionadas à pandemia, sem dano físico, quando cobertos os danos a interesses materiais. Cada caso é sempre um caso. Mas, por certo, o dito acima é suficiente para recomendar que não se divulgue, como conclusão mais natural e óbvia do mundo, a ideia simplista de que os seguros somente garantem lucros cessantes quando e se coisas sejam fisicamente destruídas ou avariadas.

Conclusão
Para fazer um resumo do que foi dito: a nossa tradição civil é romano-germânica, em que dano material é sinônimo de dano ao interesse patrimonial, não de dano físico. A teoria do interesse desponta como nuclear para os seguros: o artigo 757 do Código Civil enfatiza que o objeto do seguro é o interesse do segurado, não a coisa. O fato de falar em riscos predeterminados não significa que a interpretação seja restritiva, pois o legislador, corretamente, recusou o parágrafo sugerido pelas seguradoras, onde constaria que "as cláusulas definidoras dos riscos interpretam-se estritamente". Dar elasticidade à palavra "predeterminado' é golpe contra a recusa do legislador.

O direito em perspectiva
Por fim, confiram-se os artigos do Projeto de Lei de Contrato de Seguro Brasileiro PLC — 29/2017, em discussão na CCJ do Senado, relator o senador Rodrigo Pacheco.

Propõe-se cobertura ampla do risco delimitado, com exclusões de riscos e interesses claras e inequívocas, sempre observando-se o longevo princípio "in dubio por segurado".

"CAPÍTULO III — DO RISCO. Artigo 14 — O contrato cobre os riscos relativos à espécie de seguro contratada.

§1º. Os riscos excluídos e os interesses não indenizáveis devem ser descritos de forma clara e inequívoca.

§2º. Se houver divergência entre os riscos delimitados no contrato e os previstos no modelo de contrato ou nas notas técnicas e atuariais apresentados ao órgão fiscalizador competente, prevalecerá o texto mais favorável ao segurado.

§3º. Quando a seguradora se obrigar a garantir diferentes interesses e riscos, deverá a contratação preencher os requisitos exigidos para a garantia de cada um dos interesses e riscos abrangidos pelo contrato, de modo que a extinção ou nulidade de uma garantia não prejudicará as demais".

 

[1] BENACCHIO, Marcelo. Considerações gerais sobre o dano. In: GUERRA, Alexandre (coord.). Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2018. v. 1. p. 433-446; DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. t. 2; STIGLITZ, Gabriel. Daños y perjuicios. Buenos Aires: Ediciones La Rocca, 1987; MADERO, Jaime Fernandez. Derecho de Daños. Buenos Aires: La Ley, 2002; FRANÇA, R. Limongi (coord.). Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977; SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1986; CUPIS, Adriano de. Il Danno. Milano: Giuffrè, 1966.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e coordenador da comissão de juristas que elaborou os anteprojetos e acompanha a tramitação do Projeto de Lei de Contrato de Seguro (PL 3.555/2004 a PLC 29/2017).

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