Escritos de mulher

Neutralidade é um mito, mas a imparcialidade do juiz é um dever

Autor

  • Kenarik Boujikian

    é desembargadora aposentada do TJ-SP especialista em Direitos Humanos membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

29 de julho de 2020, 8h54

Spacca
A imparcialidade do juiz não é uma exigência contemporânea. Diz Eugenio Raul Zaffaroni, que sempre que se quis resolver um conflito que não fosse unicamente através da arbitrariedade ou do poder irracional, se exigiu a independência e a imparcialidade do julgador (Poder Judiciário – Crises, Acertos e Desacertos).

Mas segue como questão atual, que ganhou relevo na normativa internacional, como se vê da Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 19), que exige que os Estados Membros da ONU garantam um julgamento igualitário, justo, público e realizado por tribunal independente e imparcial. Este mesmo requisito da jurisdição constou em vários documentos da órbita regional, como na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigo 8º); Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (artigo 14), no Pacto de San José da Costa Rica (artigo 8º). Os Princípios Básicos das Nações Unidas para a Independência do Judiciário, adotados pelo 7o Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento dos Réus, de 1985, também estabelece a exigência da imparcialidade.

Em tempos mais recentes, em 2002, a ONU editou os “Princípios de Bangalore e Conduta Judicial”, a partir da premissa que o Judiciário é pilar da democracia e deve exercer valores que levem a população a ter confiança no Poder que é o último refúgio dos cidadãos.

Constatou-se que democracias estavam sendo corroídas, quando se tinha o exercício da jurisdição por juízes imparciais, pois levava à perda da confiança da população no sistema de justiça, abalando o Estado de Direito.

Os Princípios de Bangalore elencou seis valores a serem seguidos por juízes, mundialmente: Independência, Imparcialidade, Integridade, Idoneidade, Igualdade e Competência/diligência.

Aqui trato tão somente da imparcialidade, em que pese estarem todos os valores conectados uns com os outros, registrando que o Brasil, da mesma forma que a normativa internacional e regional, também tem na imparcialidade do magistrado uma exigência ética para a validade da jurisdição, integrante do devido processo legal e outros mandamentos constitucionais

Importante dizer que não estamos falando de neutralidade e Zaffaroni bem diz que juiz não pode ser alguém neutro, porque não existe neutralidade ideológica. "É insustentável pretender que um juiz não seja cidadão, que não participe de certa ordem de idéias, que não tenha uma compreensão do mundo, uma visão da realidade. Não é possível imaginar um juiz que não a tenha, simplesmente porque não há homem que não a tenha."

A neutralidade é um mito, mas a imparcialidade é dever.

O juiz deve se colocar entre as partes e manter a mesma distância entre ambas, que têm direito a ter as mesmas oportunidades processuais e serem tratadas de forma absolutamente igualitária. Cada uma das partes tem um papel próprio a cumprir na relação processual, de modo que não pode ocorrer substituição e nem compartilhamento. Exercem funções inconciliáveis: quem acusa ou quem defende não julga e vice-versa.

Se o processo for julgado por juiz parcial não teremos um julgamento, mas uma fraude, pois a imparcialidade compõe a própria jurisdição, não restando outra alternativa senão reconhecer que aqueles atos não têm qualquer valor.

Juiz que atua com parcialidade corrompe a jurisdição e mancha o Poder Judiciário. Não se trata de uma questão que alcança exclusivamente as partes. Estas são diretamente atingidas, mas a atuação parcial afeta o Poder e a democracia.

O fato é que no Brasil, nos últimos anos, as razões de edição dos Princípios de Bangalore se fazem presentes, pois podemos constatar uma queda significativa de confiança no Judiciário.

Segundo dados do ICJ Brasil/FGV-SP ( Índice de Confiança da Justiça no Brasil), de 2013-2017, a confiança no Judiciário caiu 10 pontos percentuais passando para 24% em 2017, significativo, pois em anos anteriores não havia oscilações desta magnitude, o que está a indicar que o próprio Estado Democrático de Direito está a se esgarçar.

Some-se a esta triste constatação que o sentimento “preocupação”, é dos mais marcantes que a população tem em relação ao Poder Judiciário, de seguinte ordem: 45% 48% 49% , para a sociedade, advogados e defensores, respectivamente, destacando na avaliação geral que um dos atributos considerado dos mais importantes é que seja igual e imparcial para todos (Estudo da imagem do Judiciário Brasileiro, 2019, FGV/Ipesp/AMB).

A imparcialidade está no centro das atenções, pois está em julgamento no STF o habeas corpus, do caso paradigmático, conhecidos de todos do mundo jurídico e da população, que tratará da imparcialidade arguida pelo ex-presidente Lula em relação ao ex-juiz Moro.

Neste tanto, The Intercept divulgou farto material, deixando uma sombra de perplexidade no Brasil e no exterior, nunca experimentada na história do Judiciário. E vejam que a notícia que a população mais se recorda, segundo a última pesquisa referida, é o "Vazamento do conteúdo de conversas de Moro e Procuradores".

Confesso que achei assustadores os diálogos e fiquei mais perplexa quando o ex-magistrado diz que são diálogos corriqueiros e normais. Não são. Permaneci pouco mais de trinta anos na magistratura paulista. Tenho críticas públicas sobre diversas questões que afetam o Judiciário, mas jamais vi esta promiscuidade. A conduta não guarda normalidade e é ofensiva aos magistrados brasileiros.

The Intercept e outros veículos de comunicação revelaram conversas travadas entre o ex-juiz e procuradores da república. De seu teor vimos, dentre tantos atos, que Moro e Dallagnol pactuam o momento para que seja requerida a prisão do réu (16/10/2015); Moro informa sobre quebra de sigilo que efetuou e diz não estar arrependido quanto ao vazamento de áudios interceptados com conversas entre Lula e Dilma Rousseff (22/03/2016), portanto confessa um ilícito contra o réu, em que pese pedir escusas ao STF; Moro indica testemunha para o Ministério Público (07/12/2015); Moro instrui procurador a limitar alcance da operação: “melhor ficar com os 30 por cento iniciais” (15/12/2016); Moro indica ao MPF a substituição da procuradora, que realizou audiência (13/03/2017); Juiz e Procurador analisam a pertinência de divulgação de nota à imprensa com o objetivo de contrapor declarações públicas (27/02/2016) e sugere edição de nota porque a Defesa já fez o showzinho (10/05/2017), com o claro intuito de mobilizar a opinião pública; Moro questiona ao Procurador sobre investigação contra Fernando Henrique Cardoso e diz que “melindra alguém cujo apoio é importante” (13/04/2017). Ainda: deu alerta sobre o prazo processual; indicou pessoa para ser ouvida na fase policial; discutiu momento de deflagração de operações; atentou para falta de prova determinada; viu peça processual antes da juntada.

A imparcialidade reclamada na normativa e pelos cidadãos é a pedra de toque de um julgamento justo. Juiz parcial instrumentaliza o Judiciário para interesses pessoais (de qualquer natureza: econômico, subjetivo, político, midiático); quer e atua para o resultado que lhe convém, de modo que tem a sentença, antes da realização do devido processo legal.

Para salvaguardar a imparcialidade, nosso sistema impõe a publicidade dos atos processuais. Tudo deve estar nos autos para que a parte contrária possa se contrapor, para que seja exercido o princípio do contraditório. Mas se não estava é porque sabiam que algo de muito errado estava a ocorrer.

Um bom exercício para averiguar a justiça de uma situação está em se colocar no lugar da outra parte, em qualquer tipo de processo. Quem gostaria de ser julgado por alguém que atua como se estivesse em seu polo oposto?

Todos sabemos que nenhuma das condutas reveladas pelo The Intercept poderia estar no processo, simplesmente porque aquelas ações fogem da órbita do papel do magistrado, que tem a obrigação de inércia. Juiz não é parceiro e nem pode conduzir o que deve ou não ser feito pelo Ministério Público.

Mas após ouvir o ex-juiz afirmar, quando ministro da justiça, em entrevista televisiva, que o que mais atrapalhava a operação era o Estado de Direito, nada mais pode causar espanto, de modo que a figura alegórica que ele usou recentemente, referindo-se ao julgamento contestado como um ringue, é próprio de magistrado que não compreende e desvirtua o seu papel. Beccaria, no “Dos delitos e das Penas”, alertou em 1764 para o juiz que se coloca como inimigo do réu. Séculos passaram, mas parece que não foi por todos compreendido.

A sujeição à lei é da substância do Estado democrático de Direito, que não pode admitir o arbítrio de cada um dos milhares de juízes espalhados pelo país. A sujeição é para o povo e todos os poderes.

O nosso sistema exige juízes democráticos, que sabem que a sua submissão se encontra na Carta Cidadã e nas normas infraconstitucionais , que exercem o poder em nome do povo e atuam com coragem para cumprir a missão constitucional de garantia dos direitos dos cidadãos.

O habeas corpus referido iniciou o seu julgamento em 2018, foi retirado por um pedido de vista e não retornou.

Há evidente disfuncionalidade do tempo da justiça quando se constata tempos infindáveis no pedido de vista de ministros do STF, fato que deve ser enfrentado como uma das mazelas que rompe a credibilidade e confiança do Poder Judiciário.

Aguardemos o julgamento para constatarmos os paradigmas da imparcialidade que serão fixados pelo guardião da Constituição.

Autores

  • é desembargadora TJ-SP (1989/2019), especialista em Direitos Humanos, consultora da Comissão de OAB-SP, cofundadora da AJD e ABJD e membro do Grupo Prerrogativas.

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