Opinião

Um elevador para chamar de meu!

Autor

29 de julho de 2020, 13h12

O mês de julho é significativo para o Ocidente, pois no dia 14 de julho de 1789 se iniciava o processo revolucionário francês, que se mostrou responsável por questionar o exercício do poder absoluto pelo rei. Ao contrário das anteriores revoluções burguesas, a francesa se destacou pela sua ambição universal, vide o documento que a marcou a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. O tempo demonstrou que o universalismo pregado pelos burgueses revolucionários não incluía as insurgências coloniais, vide o caso do Haiti, tampouco se mostrava capaz de ir além da literalidade, ou seja, somente os homens e cidadãos é que poderiam ser considerados como sujeitos de direitos. O objetivo deste texto é problematizar recente episódio ocorrido na cidade do Rio de Janeiro para saber se transcorridos alguns séculos não persiste uma mentalidade derrubada em solo francês no final do século XVIII.

Luís XVI teve um reinado marcado por diversas dificuldades e, diante da prevalência da lógica estamental, recaíram sobre os ombros do 3º Estado as maiores consequências desse cenário de crise. Em meio a um turbulento momento em que a população questionava por alimentos, Maria Antonieta, esposa do rei, demonstrou toda a sua alienação. Diante de uma multidão que interpelava por pão, atribui-se à rainha a frase que, em razão desse gênero básico da dieta, que os famintos comessem brioches.

Ainda com base na história francesa, mas com uma maior proximidade com a realidade brasileira, é sabido que o Rio de Janeiro foi invadido por franceses e que se fixaram na Ilha de Villegagnon. Ali foi estabelecida a França Antártica no século XVI. Hodiernamente, naquele mesmo local se encontra sediada uma unidade educacional da Marinha do Brasil e pode ser vista por qualquer pessoa que tramita pelo Aeroporto Santos Dumont.

Na véspera do aniversário da Queda da Bastilha, ou seja, no dia 13 de julho de 2020, em meio a uma grave crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, que, inclusive, impedia o pleno funcionamento do Poder Judiciário fluminense, foi realizada uma tosca e bizarra cerimônia. No sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a solenidade foi assim noticiada:

"O Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (…) inaugurou, nesta segunda feira (13/7), a obra de reforma do hall das Lâminas I, II e Central, no térreo do Fórum Central. Entre as intervenções, destacam-se: (…) designação de um elevador privativo para advogados e membros do Ministério Público, da Defensoria e das Procuradorias (…)" [1].

Nicolas Durand Villegagnon, sem sombra de dúvida, deve ter ficado orgulhoso, pois, ainda que seus patrícios tenham sido expulsos por portugueses aliados aos índios, conseguiu que a mentalidade de uma elite francesa alheia à realidade permanecesse na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. E o pior: essa continuidade se deu mediante autoridades que aplaudiram por agora poderem ter um elevador que pudessem chamar de seu. Um dado não pode ser ignorado, qual seja, já existia o elevador privativo dos magistrados. Os excluídos que não suportavam conviver com a plebe, enfim, obtiveram uma cabine própria. Em vez de se questionar a desigualdade imotivada, foi obtido um privilégio para si. Talvez seja essa a razão para a participação nesse bisonho cerimonial.

A cerimônia com direito a placa, pois ninguém quer se sentir esquecido em um mundo que é sedento por celebridades e, o mais grave, a existência de um elevador privativo em um ambiente público necessitam ser compreendidas pela mutação que o conceito de cidadania adquiriu em solo brasileiro.

José Murilo de Carvalho, em seminal obra sobre o processo que a cidadania adquiriu no solo brasileiro, realiza uma idealização em que o primeiro grupo social é composto por doutores, ou seja, os que têm a demanda por elevadores privativos. As considerações trazidas pelo imortal se mostram apropriadas:

"Do ponto de vista da garantia dos direitos civis, os cidadãos brasileiros podem ser divididos em classes. Há os de primeira classe, os privilegiados, os "doutores', que estão acima da lei, que sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do dinheiro e prestígio social. Os ‘doutores’ são invariavelmente brancos, ricos, bem-vestidos, com formação universitária. São empresários, banqueiros, grandes proprietários rurais e urbanos, políticos, profissionais liberais, alto funcionários. Frequentemente, mantém vínculos importantes nos negócios, no governo, no próprio Judiciário. Esses vínculos permitem que a lei só funcione em seu benefício" [2].

A fuga dos franceses para o Rio de Janeiro demonstra, assim, a vinda de uma estratificação social que persiste mesmo após o transcurso de muitos séculos. O elevador privativo destaca ainda a figura do patrimonialismo, ou seja, a confusão do público como passível de apropriação. Ora, em uma ordem constitucional que prima pela igualdade, diferenciações sem sentido não deveriam ser toleradas e muito menos naturalizadas. Porém, os beneficiários dessa benesse compuseram a claque que tanto aplaudiu. No que se refere ao patrimonialismo, que também permite fornecer trilha explicativa para esse inusitado bem, mostra-se necessário recorrer aos ensinamentos de Lenio Streck e Marco Aurélio de Carvalho:

"Pelo patrimonialismo, as esferas públicas e privadas se misturam. Por isso, o desembargador acha que manda até no guarda de trânsito, que, por sua vez, manda no mais fraco.

É assim que a coisa funciona.

Assim, a impessoalidade e a imparcialidade vão pelo ralo" [3].

Há o simbólico, ainda, a ser explorado nessa inusitada de elevador privativo em um prédio público (o acesso se dará mediante uma carteirada?). Esse evento se dá em um momento em que a racionalidade hegemônica é a neoliberal, já no final da década de 90, Frei Betto traz uma marca dessa nova época:

"Antigamente, a gente ouvia falar de marginalização. Você é marginalizado no seu emprego, mas ainda tem esperança de voltar para o centro. É marginalizado na sua escola, mas tem esperança de voltar. É marginalizado na sua Igreja, mas tem a esperança. Essa palavra marginalização foi abolida; a palavra, hoje, é 'exclusão'  e o excluído não tem esperança de volta. Porque o neoliberalismo é excludente" [4].

O elevador privativo no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que ensejou surreal cerimônia enquanto famílias eram devastadas pela pandemia da Covid-19, é, portanto, uma mescla do que há de mais atrasado na sociedade brasileira com a atual concepção de um capitalismo predatório.

Patrimonialismo, estratificação e exclusão deveriam ser palavras de advertência no interior da cabine. Assim como se sucedeu em solo francês, essa lógica somente será extinta com a insurgência popular. Em um momento histórico marcado pela derrubada de estátuas, é chegado o momento de remover eis a temida pena de ostracismo placas inúteis e pôr fim a privilégios que não deveriam mais existir. No século XVIII, a população faminta não queria brioches. Já no XXI, os sedentos por justiça não veem a necessidade de elevadores privativos de magistrados ou de outras quaisquer outras autoridades. Passado e presente querem uma coisa só: a cidadania plena!

 


[2] CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil. O longo caminho. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 215

[3] "Desembargador acha que manda até no guarda de trânsito", destacam os juristas Lenio Streck e Marco Aurélio. Disponível em: https://www.brasil247.com/brasil/desembargador-acha-que-manda-ate-no-guarda-de-transito-destacam-os-juristas-lenio-streck-e-marco-aurelio

[4] BETTO, Frei. Crise da modernidade e espiritualidade. In: BETTO, Frei; BARBA, Eugenio & COSTA, Jurandir Freire. Ética. Rio de Janeiro: Garamon, 1997. p. 23.

Autores

  • Brave

    é defensor público do Rio de Janeiro e mestre em Direitos Fundamentais e Novos Direitos pela Universidade Estácio de Sá. Foi defensor público do estado de São Paulo (2007-2010).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!