Advocacia criminal

Advocacia criminal e capacidade de avaliar a própria incompetência

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29 de julho de 2020, 7h59

Spacca
Em 1999, dois pesquisadores vinculados à Faculdade de Psicologia da Universidade de Cornell, Justin Kruger e David Dunning, publicaram interessante artigo científico sobre a dificuldade humana no reconhecimento da própria incompetência, e consequente autoavaliação superestimada. 1

Os autores buscaram investigar quatro hipóteses: (i) indivíduos incompetentes tendem a superestimar consideravelmente sua própria habilidade e performance, medidas por critérios objetivos; (ii) indivíduos incompetentes têm habilidade metacognitiva deficiente, sendo menos capazes de reconhecer competência (própria ou alheia); (iii) indivíduos incompetentes são menos capazes de adquirir insight sobre seu verdadeiro nível de performance, via comparação social; (iv) indivíduos incompetentes podem adquirir insight sobre suas próprias limitações, caso (paradoxalmente) eles se tornem mais competentes, consequentemente adquirindo habilidade metacognitiva para perceber tais limitações.

Essa pesquisa empírica exploratória foi feita com base em autoavaliações e testes aplicados a dezenas de estudantes da Universidade de Cornell, avaliando habilidades em três campos nos quais astúcia, conhecimento ou sabedoria são cruciais: humor, raciocínio lógico e gramática.

Os autores partem de duas premissas incontroversas: (i) a satisfação e o sucesso, em muitos aspectos da vida intelectual e social, dependem de astúcia, conhecimento, experiência prática e sabedoria para fazer boas escolhas; (ii) a humanidade é heterogênea quanto ao conhecimento e estratégia aplicados a esses aspectos da vida, atingindo variegados graus de sucesso.

A terceira premissa é que pessoas incompetentes em suas estratégias para obter satisfação e sucesso sofrem duplo fardo: fazem raciocínios equivocados (que conduzem a escolhas infelizes), e não conseguem nem sequer perceber isso (devido à sua incompetência).

Ou seja: as habilidades necessárias para gerar competência em determinado domínio da vida intelectual ou social são as mesmas exigidas para avaliar competência (própria ou alheia) nesse domínio. Por isso, indivíduos incompetentes carecem de habilidades imprescindíveis para avaliar a qualidade da própria performance.

Quanto mais habilidosa em determinada área do saber humano a pessoa se torna, maior se torna sua habilidade metacognitiva de fazer autoavaliação correta.

Inversamente, a deficiência metacognitiva da pessoa menos competente a torna incapaz de perceber que atuou mal, levando-a a inferir que atuou bem. Por conseguinte, ela tende a superestimar consideravelmente a sua própria habilidade.

A conclusão dos autores é que déficits em habilidade metacognitiva desempenham o papel de mediar a relação entre performance objetivamente ruim e avaliação superestimada de habilidades (próprias ou alheias).

Os autores também apontam que pessoas inábeis tendem a ser menos capazes de observar decisões e julgamentos alheios, avaliar corretamente a competência desses atos, e revisar sua autoavaliação usando o método comparativo.

Uma possível explicação é a omissão de feedback negativo dos outros, o qual é considerado rude em algumas relações sociais.

Além disso, alguns ambientes e tarefas impedem que pessoa menos competente receba informações reveladoras de natureza inferior das suas decisões, permitindo a autocorreção.

O cariz ambíguo do insucesso pode impedir avaliação correta da sua causa. O sucesso depende da confluência de diversos fatores: formação adequada, conjunto de habilidades específicas, esforço pessoal ou coletivo e sorte. Por outro flanco, a falta de só um desses fatores pode causar o insucesso. Assim, mesmo quem recebe feedback negativo pode ignorá-lo, atribuindo seu insucesso a outro fator.

É lícito concluir que o efeito Kruger-Dunning consiste em fenômeno psicológico no qual pessoas fazem autoavaliação errônea (excessivamente otimista) sobre competência em muitos domínios da vida intelectual e social, porque sofrem duplo fardo. Ou seja, elas não só cometem erros lamentáveis que levam a conclusões errôneas, como nem sequer conseguem perceber isso, em razão da sua incompetência.

O inverso do efeito Kruger-Dunning é o fenômeno do impostor, pelo qual indivíduos competentes subestimam sua própria competência, atribuindo-a a fatores externos (v.g. sorte), ou qualidades internas temporárias (v.g. esforço). 2

Esse paradoxo é bem resumido na seguinte frase de Bertrand Russell: Uma das coisas dolorosas sobre nosso tempo é que aqueles que sentem certeza são estúpidos, e aqueles com qualquer imaginação e compreensão são cheios de dúvida e indecisão. 3

O estudo do efeito Kruger-Dunning pode ser enriquecido pelos aportes do viés egocêntrico (egocentric bias) e da heurística do excesso de confiança (overconfidence).

Segundo a Psicologia Cognitiva, muitos processos decisórios estão baseados em crenças pessoais sobre a probabilidade da ocorrência de eventos futuros e incertos. 4

Essas crenças são determinadas por princípios heurísticos, cuja função é simplificar tarefas complexas de aferição de probabilidades e atribuição de valores. Malgrado tais princípios em regra sejam úteis, eles também podem levar a erro grave e sistemático, denominado viés cognitivo.

A premissa é que o pensamento humano é estruturado com base em sistema de configuração dualista, quanto à velocidade, controle e conteúdo.

Há um sistema automático, que inclui o pensamento intuitivo, preguiçoso e sem controle voluntário. Para tanto, ele se vale de heurísticas (ou atalhos cognitivos): operações mentais reducionistas e simplificadoras para solucionar questões complexas, com base em informações escassas ou precárias.

Por outro flanco, há um sistema deliberado, que abarca o pensamento reflexivo, energético e controlado, sendo mais capaz de lidar com questões complexas de forma abstrata, com base em regras normativas.

O viés egocêntrico (egocentric bias) e a heurística do excesso de confiança (overconfidence) levam o indivíduo a: (i) superestimar sua própria importância, e a importância das crenças e valores que ele prioriza; (ii) presumir que os outros compartilham essas crenças e valores; (iii) atribuir seus sucessos a talentos inatos e seus fracassos a fatores externos.

O reverso da medalha é o viés da aversão à dissonância cognitiva, que consiste em repulsa àquelas informações que colocam em xeque o equilíbrio cognitivo, baseado na sobredita autoimagem positiva.

Os saberes hauridos dessa vertente da Psicologia Cognitiva descortinam interessantes linhas de pesquisa no campo do Direito. Por exemplo: (i) colocando em causa a proclamada racionalidade das decisões judiciais; (ii) permitindo estratégias de exame de testemunhas usando gatilhos heurísticos; (iii) reforçando a importância da coerência (em detrimento da lógica) na construção da teoria do caso pela parte etc. 5

Não obstante, por limitações de espaço e tempo nosso recorte focará em algumas questões éticas e práticas aplicadas à advocacia criminal.

A esse propósito, estudo empírico com 481 Promotores Públicos e Advogados norte-americanos sugere que eles tendem à heurística do excesso de confiança, superestimando suas chances de êxito nas causas que patrocinam. 6

Advogados tendem à heurística em digressão pelos seguintes motivos: (i) demanda por autoconfiança exacerbada do Advogado como meio de captação e manutenção de clientes; (ii) percepção ilusória de controle exercido pelo Advogado sobre o deslinde do processo, e desprezo àquelas variáveis alheias ao seu controle; (iii) elevado desejo do Advogado pelo resultado processual favorável, que condiciona seu prognóstico de êxito (wishful thinking); (iv) ausência de feedback negativo de colegas etc.

O precitado prognóstico de sucesso pauta variegadas decisões estratégicas e táticas tomadas por Advogado e cliente (v.g. ajuizar ou não queixa-crime; fazer ou não acordo de não persecução penal; pedir ou não absolvição sumária no bojo da resposta à acusação etc.), as quais influenciam diretamente o desfecho da causa.

Logo, aspecto deontológico relevante é justamente a acurácia desse prognóstico. Este deve ser feito de forma colegiada, informada, reflexiva e realista, ressalvando ao cliente a existência de inúmeras variáveis não controláveis, que condicionam a dinâmica da persecução penal e seu desate.

Há quem vislumbre aspectos positivos do excesso de confiança e da aversão à dissonância cognitiva. Nessa toada, esses vieses seriam essenciais para: (i) a efetividade das funções processuais de acusadores e defensores, ajudando-os a superar óbices (v.g. remuneração baixa, estresse, publicidade negativa etc.); (ii) a confiança depositada por acusadores e defensores nas suas respectivas teorias do caso. 7

Nada obstante, os vieses em apreço tendem a ser disfuncionais no sistema de administração da justiça criminal.

Com efeito, a egolatria e o Direito podem ser considerados antitéticos, pois o ordenamento jurídico é baseado nos conceitos de universalidade e objetividade. Já a egolatria implica disjunção entre autopercepção e percepção alheia e distanciamento do domínio coletivo, enfraquecendo a força normativa do Direito. 8

Isso porque prognóstico errôneo ou irrealista de êxito processual pode causar fissura na relação de confiança entre Advogado e cliente, com consequências drásticas, duradouras e irreversíveis na liberdade, patrimônio e demais direitos fundamentais deste último.

Por exemplo: a não aceitação da proposta de mecanismo consensual de aplicação da pena (v.g. acordo de não persecução penal), com base em prognóstico irrealista de absolvição, pode ensejar condenação do cliente à pena corporal.

Essa inocorrência do resultado processual favorável prognosticado pelo Advogado pode gerar sentimentos de decepção, frustração ou raiva no cliente. Além disso, ela pode catalisar sentimento público de antipatia pelos Advogados, erodindo a confiança da população na previsibilidade, confiabilidade e justiça do sistema de administração da justiça criminal.

Assim, a matriz curricular dos cursos de Bacharelado em Direito e os cursos de formação e aperfeiçoamento de profissionais jurídicos devem ser reformulados, para inclusão de conhecimentos pertencentes à Psicologia Cognitiva.

Tais conhecimentos são imprescindíveis para redução dos danos causados por heurísticas e vieses no cotidiano do sistema de administração da justiça criminal, e reforço da racionalidade das decisões penais.

Outra solução é o refinamento dos processos decisórios de Advogados, via consultoria externa, mentoria e/ou reuniões periódicas de equipe etc. Esse refinamento deve reforçar o autoconhecimento e as competências específicas da advocacia criminal consultiva e contenciosa.

Por exemplo: o prognóstico de sucesso na causa deve ser feito de modo colegiado, informado, reflexivo e realista, alertando o cliente sobre as inúmeras variáveis não controláveis, que condicionam o dinamismo da persecução penal e seu desfecho.

Um dos pilares da filosofia socrática é a máxima conhece a ti mesmo (nosce te ipsum).

Consta que, na época do Império, quando um General era vitorioso, ele fazia desfile de aclamação popular pelas ruas de Roma. Junto com o vitorioso, seguiam na biga dois escravos: um cocheiro e outro para sussurrar no ouvido do General, a cada 500 metros: lembra-te que és mortal.

Logo, é oportuno que o Advogado constantemente busque o autoconhecimento e repita: lembra-te que és ególatra e excessivamente confiante.


1 KRUGER, Justin; DUNNING, David. Unskilled and unaware of it: How difficulties in recognizing one’s own incompetence lead to inflated self-assessments, In: Journal of Personality and Social Psychology, v. 77, n. 06, pp. 1.121-1.134, 1999.

2 Sobre o fenômeno do impostor, ver: CLANCE, Pauline; IMES, Suzanne. The impostor phenomenon in high achieving women: Dynamics and therapeutic interventions, In: Psychotherapy: Theory Research and Practice, n. 15, pp. 241-247, 1978.

3 No original: One of the painful things about our time is that those who feel certainty are stupid, and those with any imagination and understanding are filled with doubt and indecision.

4 GILOVICH, Thomas; GRIFFIN, Dale; KAHNEMAN, Daniel (Eds.). Heuristics and biases: The Psychology of intuitive judgment. New York: Cambridge University Press, 2002; JONES, Craig. The troubling new science of legal persuasion: Heuristics and biases in judicial decision-making, In: The Avocates’ Quarterly, n. 41, pp. 49-122, 2013. Entre nós, ver: WOJCIECHOWSKI, Paolo Bianchi; ROSA, Alexandre Morais da. Vieses da justiça: Como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a ação contraintuitiva, pp. 15 e ss. Florianópolis: EModara, 2018.

5 MURDOCK, Charles; SULLIVAN, Barry. What Kahneman means for lawyers: Some reflections on Thinking, Fast and Slow, In: Loyola University Chicago Law Journal, v. 44, n. 05, pp. 1.377-1.399, 2013.

6 GOODMAN-DELAHUNTY, Jane et alii. Insightful or wishful: Lawyers’ ability to predict case outcomes, In: Psychology, Public Policy, and Law, v. 16, n. 02, pp. 133-157, 2010.

7 MEDWED, Daniel. The good fight: The egocentric bias, the aversion to cognitive dissonance, and American criminal law, In: Journal of Law and Policy, v. 22, n. 01, pp. 135-145, 2014.

8 LANGEVOORT, Donald. Ego, human behavior, and law, In: Virginia Law Review, v. 81, n. 03, pp. 853-886, 1995.

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