Opinião

Audiências telepresenciais na Justiça do Trabalho: reflexões sobre o pós-Covid

Autor

  • Bruno de Carvalho Motejunas

    é juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho do Maranhão (TRT da 16ª Região) especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Universidade do Ceuma (Uniceuma) mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma da Lisboa (UAL) professor palestrante e juiz Titular da Vara do Trabalho de Bacabal (MA).

28 de julho de 2020, 13h59

A pandemia causada pelo vírus Sars-Cov-2 (cuja doença é conhecida como Covid-19) abalou o mundo e ainda se faz sentir em muitos países, inclusive no Brasil, cujo estado de calamidade pública permanece em vigor [1]. Governo e sociedade civil, reconhecendo a seriedade do problema, têm buscado soluções para enfrentar a crise de saúde pública e os graves efeitos deletérios à economia dela decorrentes. Além disso, por força das necessárias medidas de isolamento social, o trabalho teve que se reorganizar, o que implicou profundas mudanças em certos setores. Difundiu-se a cultura do home office, tratada por muitos como solução inovadora, apesar de inúmeras empresas e instituições públicas já virem adotando tal prática há vários anos.

No âmbito do Judiciário, a resposta inicial para a pandemia foi a suspensão dos prazos e atos presenciais, com a instituição de um "regime diferenciado de trabalho" (remoto), regulamentado através de sucessivas Resoluções do Conselho Nacional de Justiça (sendo a mais recente a Resolução nº 322). Apesar de haver determinação para um "retorno gradual" das atividades, continuam sendo priorizados os atos por meios eletrônicos, haja vista o ainda elevado risco de contágio.

Na seara trabalhista, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho editou normas específicas, com destaque para o ato conjunto CSJT.GP.GVP.CGJT nº 6 (de 5 de maio de 2020), que consolida e uniformiza as diversas medidas adotadas no âmbito da Justiça do Trabalho de primeiro e segundo graus, com vedação de expediente presencial e a manutenção do trabalho remoto até nova determinação. De acordo com essa norma, os Tribunais Regionais devem regulamentar os procedimentos administrativos e técnicos necessários para a retomada das audiências, considerando as peculiaridades regionais, e ouvindo previamente as respectivas seções da OAB e a Procuradoria Regional do Trabalho.

A prestação jurisdicional, portanto, precisou se adaptar a esse momento excepcional, reformulando procedimentos e a dinâmica de trabalho, com o objetivo de manter uma resposta rápida e efetiva às demandas judiciais. Em um primeiro momento, todas as audiências foram suspensas, mas agora vemos o seu retorno gradual, na forma telepresencial, por meio de ferramentas e aplicativos de videoconferência, que utilizam a rede mundial de computadores (internet) e estão disponíveis em praticamente todos os aparelhos e plataformas eletrônicas.

No caso específico da Justiça do Trabalho, dois aspectos de sua atual estrutura organizacional foram muito importantes para facilitar e acelerar a adequação ao regime de trabalho remoto. Primeiro, a existência de uma cultura institucional que reconhece, disciplina e valoriza o teletrabalho [2]. A prática de home office na Justiça Laboral era uma realidade muito antes da pandemia, apesar de haver restrições quanto às atividades e percentual do quadro de servidores que poderiam aderir. Tal experiência foi fundamental, ajudando a superar dificuldades técnicas, resistências e entraves burocráticos à rápida generalização desse método de trabalho em tempos de pandemia.

O segundo aspecto, ainda mais importante, é o processo judicial eletrônico (PJE). Adotado pelo CNJ como sistema a ser implementado em todo o Judiciário (Resolução nº 185, de 18/12/2013), o PJE já havia sido instituído e regulamentado pelo CSJT desde 2012 (Resolução nº 94, de 23/3/2012, atualmente substituída pela Resolução nº 136/2014), mais uma vez demonstrando a vanguarda do Judiciário Trabalhista na adoção de novas tecnologias para a eficiência e facilitação da prestação jurisdicional. Não apenas houve pioneirismo, mas efetiva adesão, tanto que atualmente o PJE trabalhista alcança 100% das unidades jurisdicionais do país [3], algo que ainda não se observou nos demais ramos do Judiciário.

Em consequência, desde 2013 todas as novas ações trabalhistas são eletrônicas, o que resultou em uma prática consolidada e na ampla aceitação desse formato por todos os principais usuários da Justiça do Trabalho. Além disso, nos últimos anos houve um grande investimento na digitalização do acervo de processos físicos (anteriores a 2013) e sua inclusão no PJE. De acordo com o TST, até fevereiro de 2020, 13 dos 24 Tribunais do Trabalho tinham alcançado 100% de processos tramitando no sistema PJe [4], sendo que os demais estão bem próximos de atingir essa meta, sinalizando para um futuro (breve) em que todas as ações trabalhistas serão digitais [5].

Apesar desse cenário, a necessidade de realizar audiências no período de pandemia também representou um desafio para a Justiça do Trabalho, por implicar na utilização do sistema telepresencial, por videoconferência. Por razões práticas, operacionais e, pode-se assim dizer, "culturais", as audiências telepresenciais nunca foram muito utilizadas na Justiça Laboral. Os motivos são variados, indo desde a ausência de regulamentação específica (para o processo do trabalho), dificuldades tecnológicas e de acesso à internet e o temor de "contaminação das provas" (principalmente, segundo alguns, pelo risco de quebra da incomunicabilidade dos depoentes e testemunhas).

A resistência ao desconhecido é compreensível, ainda mais quando envolve novos procedimentos e tecnologias. O fato de vivermos em uma era "conectada" não elimina essas preocupações, até porque nem todos possuem o mesmo grau de experiência e familiaridade com equipamentos eletrônicos e meios digitais. De fato, não é raro encontrar advogados, servidores e magistrados que até o início da pandemia nunca haviam participado de uma reunião por videoconferência, muito menos uma audiência utilizando essa ferramenta. Não obstante, a prática tem demonstrado que os atos telepresenciais, apesar de exigirem cuidados extras, são capazes de propiciar uma instrução isenta e satisfatória para a convicção do julgador, respeitado o contraditório, a ampla defesa e a boa fé processual. Os últimos meses de experiência serviram para atestar esse fato, transformando muitos "céticos" em defensores do procedimento.

Refletindo sobre outros aspectos práticos, que permanecerão relevantes em um momento "pós-pandemia", a audiência telepresencial também poderá ser útil nas situações em que o trabalhador foi contratado e prestou serviços em determinado lugar e agora reside em outra localidade distante, minorando os atritos relacionados às regras de competência territorial e os princípios de acesso à justiça e presunção de hipossuficiência econômica do obreiro. De igual modo, as cartas precatórias inquiritórias se tornarão obsoletas na maioria dos casos, uma vez que o magistrado poderá ouvir as testemunhas ou informantes diretamente, sem a necessidade de intervenção de outro juiz.

Quanto à legitimidade jurídica, além das normas acima mencionadas, há previsão legal expressa para o uso de videoconferência na prática de atos processuais, inclusive colheita de prova em audiência, como se observa nos arts. 385, §3º e 453, §1º, ambos do CPC. A tese de lacuna na esfera trabalhista igualmente não se sustenta, pois os dispositivos supracitados são aplicáveis supletivamente ao processo do trabalho, por força do artigo 15 do CPC e artigo 769 da CLT.

Outro aspecto que merece destaque, é que as audiências telepresenciais podem reduzir custos, eliminando a necessidade de grandes e freqüentes deslocamentos dos participantes. Não raro, partes, advogados e testemunhas precisam dirigir centenas de quilômetros para participar de uma audiência, que nem sempre se realiza por eventuais questões processuais, como vícios ou ausência de notificação da parte contrária. A virtualização das audiências possibilita diminuir o impacto desse "ônus processual", abrindo espaço para um Judiciário mais acessível e, por isso mesmo, mais democrático. Também permitirá a diminuição de despesas do próprio Judiciário, com diárias, deslocamentos e manutenção dos espaços públicos. Outra forma de ampliar a acessibilidade, sem aumentar gastos, será através de uma "Justiça itinerante virtual", que não precise se deslocar fisicamente, mas ainda assim consiga atender aos jurisdicionados que residem em locais distantes ou que não disponham de recursos para locomoção.

Por outro lado, pode-se argumentar que nem todos têm à sua disposição conexão estável à internet e que, portanto, audiências feitas por videoconferência serão, ao contrário do que se defende aqui, excludentes. De fato, em um país tão desigual quanto o nosso, com parte significativa da população vivendo na pobreza ou extrema pobreza, esse é um argumento válido, que exigirá a análise de cada caso, identificando tais situações e praticando atos presenciais quando necessário, para garantir o efetivo acesso à Justiça. Apesar disso, é importante registrar que conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (PNAD Contínua TIC) de 2018, do IBGE, cerca de 75% dos brasileiros tinham acesso à internet em 2019, sendo que a grande maioria utiliza o celular. A mesma pesquisa constatou um aumento acelerado da disponibilidade de internet entre os anos de 2016 e 2018, tanto na área urbana quanto rural, e que cerca de 79,1% dos domicílios brasileiros já tinham acesso à internet em 2018 [6], o que comprova que a chamada "inclusão digital" é uma realidade para a grande maioria das pessoas. No caso da realização de atos processuais de forma telepresencial, deve-se ainda levar em consideração que as pessoas que não têm acesso à internet em casa podem utilizar a internet de amigos, parentes ou vizinhos, lan houses, cafés e outros locais, inclusive o escritório de seus advogados, o que amplia consideravelmente as situações de "disponibilidade técnica".

De fato, os meses iniciais de constante prática processual "virtual" têm revelado que é muito mais comum que as pessoas tenham condições de participar de atos telepresenciais do que se imagina, inclusive nas regiões interioranas de Estados pobres da federação. Como dito acima, ainda que elas não tenham acesso à internet em suas casas, podem se dirigir a um local público que tenha ou ao escritório do seu advogado (observando as regras de distanciamento e cuidados sanitários neste momento de pandemia) e utilizar seus celulares para participar da audiência. Os maiores entraves, portanto, são de ordem "comportamental", em uma clara resistência ao "desconhecido". Como pontuado acima, esse medos são naturais, mas não podem servir de obstáculo para a difusão e incorporação dessa ferramenta tão útil e versátil.

Muito tem sido dito e debatido sobre o "novo normal" que a pandemia impôs a todos. No entanto, considerando a natureza humana e sua tendência de retorno a uma situação de maior conforto e segurança, não há garantias de que as práticas exitosas de hoje irão se perpetuar, após o retorno à "normalidade". A manutenção de audiências telepresenciais como prática comum, portanto, dependerá de nossas instituições aderirem à ideia de que se trata de uma ferramenta acessível e econômica, cujas vantagens superam (em muito) as dificuldades para sua implantação. É uma escolha que teremos que fazer, como foi com o teletrabalho e com o processo judicial eletrônico, cujos ganhos sociais hoje são incontestáveis.

Por fim, é preciso destacar mais uma vez que se trata de uma alternativa, não excluindo a possibilidade de realizar audiências presenciais, quando for efetivamente necessário ou mais indicado para a melhor instrução do feito, sempre a critério do juízo. Entretanto, é imprescindível começar a refletir sobre sua utilização após a pandemia, consolidando procedimentos a partir das experiências atuais, com o objetivo de ampliar o acesso à Justiça e reduzir custos.

 

Referências bibliográficas
INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (PNAD Contínua TIC) 2018. (Em linha). (Consult. 23 jul. 2020). Disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/17270-pnad-continua.html?edicao=27138&t=resultados

TRIBUNAL Superior do Trabalho. Processos recebidos na Justiça do Trabalho já são 100% eletrônicos. (Em linha). (Consult. 23 jul. 2020). http://www.tst.jus.br/web/pje/inicio/-/asset_publisher/eHI8/content/processos-recebidos-na-justica-do-trabalho-ja-sao-100-eletronicos

___________________________. TRTs que migraram todos os processos físicos para o sistema eletrônico recebem Selo 100% PJe. (Em linha). (Consult. 23 jul. 2020). http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/trts-que-migraram-todos-os-processos-fisicos-para-o-sistema-eletronico-recebem-selo-100-pje?inheritRedirect=false

 

[1] Nos termos do Decreto Legislativo nº 6, de 20/03/2020, com efeitos até 31 de dezembro de 2020.

[2] Desde 2012 o Tribunal Superior do Trabalho regulamentou o teletrabalho para seu quadro de pessoal (Resolução Administrativa 1.499/2012), seguido pelo CSJT (Resolução nº 151/2015) e pelos Tribunais Regionais do Trabalho. Antes, portanto, da Resolução nº 227/2016 do CNJ, que tratou desse tema no âmbito geral do Poder Judiciário, e da previsão expressa na CLT, introduzida pela Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista).

[3] TRIBUNAL Superior do Trabalho. Processos recebidos na Justiça do Trabalho já são 100% eletrônicos. (Em linha).

[4] TRIBUNAL Superior do Trabalho. TRTs que migraram todos os processos físicos para o sistema eletrônico recebem Selo 100% PJe. (Em linha). (Consult. 23 jul. 2020).

[5] Nessa mesma notícia, o TST registrou que 97% da totalidade de processos físicos existentes em toda a Justiça do Trabalho já haviam migrado para o PJE.

[6] INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (PNAD Contínua TIC) 2018. (Em linha).

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    é juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho do Maranhão (TRT da 16ª Região), especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Universidade do Ceuma (Uniceuma), mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma da Lisboa (UAL), professor e palestrante com cursos ministrados na graduação e na pós-graduação da área jurídica.

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