Opinião

Boas práticas no setor de seguros: notas sobre a resolução CNSP nº 382/2020

Autores

  • Thiago Junqueira

    é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra professor convidado da FGV Direito Rio da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil advogado e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

  • Guilherme Panisset Barreto Bernardes

    é advogado mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e sócio do escritório Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

28 de julho de 2020, 16h09

No primeiro dia de julho, entrou em vigor a Resolução CNSP nº 382, de 4 de março de 2020, cujo objetivo foi disciplinar o relacionamento das entidades reguladas pela Superintendência de Seguros Privados (Susep) e intermediários com o cliente de produtos securitários, previdenciários e de capitalização, bem como consagrar a figura do "cliente oculto" na atividade de supervisão da autarquia.

A norma em tela, que promete causar um impacto considerável no setor dos seguros, sofreu influência da Resolução CMN nº 4.539, de 2016, chegando a ter diversos artigos com redação idêntica ou similar a ela [1]. Inobstante as semelhanças, uma discrepância salta aos olhos: a diferença da vacatio legis entre as normas — enquanto a da Susep foi de 90 dias, a do CMN equivaleu a 360 dias. Considerando-se que a norma da Susep prevê obrigações mais amplas e diversificadas para os entes supervisionados, a escolha por um prazo reduzido não é de fácil compreensão [2].

Em termos gerais, a Resolução CNSP nº 382 tem por objeto apresentar princípios que regerão a relação entre as entidades reguladas e os seus clientes durante todo o ciclo de vida dos produtos comercializados, intermediados ou distribuídos [3] .São explicitados, nessa oportunidade, os princípios da "ética, responsabilidade, transparência, diligência, lealdade, probidade, honestidade, boa-fé objetiva, livre iniciativa e livre concorrência" (CF, artigo 3°), visando a garantir que as entidades tratem adequadamente os clientes e, como corolário, fortaleçam a confiança no sistema de seguros privados.

De acordo com o artigo 3º, §1º, da Resolução, a observância dos aludidos princípios requer, no mínimo, que as entidades supervisionadas tomem as seguintes providências:

"I Promover cultura organizacional que incentive o tratamento adequado e o relacionamento cooperativo e equilibrado com os clientes;

II Tratar os clientes de forma ética e adequada;

III — Assegurar a conformidade legal e infra legal dos produtos e serviços comercializados, intermediados e distribuídos;

IV — Levar em consideração os interesses de diferentes tipos de clientes ao longo do ciclo de vida dos produtos, assim como nas portabilidades entre produtos, quando for o caso;

V — Efetuar a oferta, a promoção e a divulgação de produtos e serviços de forma clara, adequada e adotando práticas que visem minimizar a possibilidade de má compreensão por parte do cliente;

VI — Prover informações contratuais de forma clara, tempestiva e apropriada, visando à redução do risco de assimetria de informação;

VII — Garantir que toda a operação relacionada ao sinistro, incluindo o registro do aviso, a regulação e o pagamento, seja tempestiva, transparente e apropriada;

VIII — Dar tratamento tempestivo e adequado às eventuais reclamações e solicitações efetuadas pelos clientes e seus representantes, quando atuarem na defesa dos direitos daqueles; e

IX — Observar, em relação aos seus clientes, as exigências da legislação que trata da proteção de dados pessoais, inclusive no tocante às regras de boas práticas e de governança".

Essa não é a sede adequada para enfrentar detidamente cada um dos incisos. Sublinhe-se, todavia, que, ao exigir o tratamento dos clientes de forma ética e adequada, reforçando o devido tratamento de dados pessoais dos clientes, a norma pavimentou o caminho para uma fiscalização mais assertiva na designada era da "ciência dos dados nos seguros" [4].

A Resolução CNSP nº 382 prevê outros institutos consumeristas a fim de proteger a parte hipossuficiente da relação, como é o caso da proibição de venda casada (presente no artigo 5º, na esteira do que dispõe o artigo 39, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor), bem como as informações contratuais de forma clara, tempestiva e apropriada, prevista no artigo 3º, §1º, inciso VI, da norma, de maneira alinhada ao artigo 6º, inciso III, do CDC.

Entre os principais aspectos da resolução, possui relevo o artigo 4°, §1°, inciso IV, que atesta que antes da aquisição de produto de seguro, de capitalização ou de previdência complementar aberta, o intermediário deve disponibilizar formalmente ao cliente o montante de sua remuneração pela intermediação do contrato, acompanhado dos respectivos valores de prêmio comercial ou contribuição do contrato a ser celebrado [5]. A transparência na, grosso modo, "taxa de corretagem dos seguros" é uma antiga polêmica do setor, havendo bons argumentos favoráveis e contrários à sua implementação.

Alvo de objeção por meio de um mandado de segurança coletivo impetrado pela Fenacor contra a Susep e a sua Superintendente (nº 5039233-46.2020.4.02.5101/RJ), em sede liminar chegou a ser suspendida a eficácia do dispositivo em questão [6]. Entretanto, a decisão foi alterada em segunda instância no dia 15 de julho (Agravo de Instrumento nº 5007972-40.2020.4.02.0000/RJ) [7]. A despeito dos aspectos técnicos relacionados à discussão sobre a competência regulatória, na questão de fundo parece ter razão a Susep, uma vez que a transparência na taxa de intermediação já seria defensável à luz do princípio da boa-fé objetiva — em sua função criadora de deveres anexos [8].

Navegando em outras águas, o normativo determina a elaboração e implementação de uma Política Institucional de Conduta (PIC), que consolide diretrizes, objetivos e valores organizacionais a serem empregados pelo ente supervisionado na relação com os clientes de forma a atendê-los adequadamente, tanto na prestação do serviço quanto da informação [9].

Essa política deve ser condensada em um documento específico e estabelecer responsabilidades internas, podendo ser unificada por conglomerado, na forma do §6º do artigo 6º. Importa destacar que, estando vigente, a PIC passa a ser de cumprimento compulsório e, em caso de ato nocivo [10] que se verifique contrário às suas disposições, à lei ou à norma infralegal, o ente poderá ter suas operações compulsoriamente cessadas. Nesse sentido, deve ser indicado diretor responsável pelo cumprimento da PIC, que ficará sujeito ainda a multa de R$ 10 mil a R$ 500 mil em caso de não observação do estipulado no documento.

Em ponto controverso também digno de nota, a Resolução CNSP nº 382 apresenta a figura do "cliente oculto", qual seja a de um servidor da Susep que, sem precisar se identificar como tal, assume a figura de um proponente ou interessado nos produtos, podendo "pesquisar, simular e testar, de forma presencial ou remota, o processo de contratação, a distribuição, a intermediação, a promoção, a divulgação e a prestação de informações de produtos, de serviços ou de operações". Conforme disposto no artigo 9°, seu objetivo é "verificar a adequação e a conformidade das práticas de conduta do ente supervisionado ou do intermediário à regulação vigente".

Trata-se de conduta que lembra aquela caracterizada no flagrante preparado, que ocorre quando o agente estatal, já sabendo das possíveis práticas ilegais que podem ser perpetradas por um agente, provoca-o para que cometa um ato proibido por lei ou, na seara administrativa, proibido por ato administrativo [11].

É preciso ressaltar, todavia, que a figura do cliente oculto para a fiscalização do setor financeiro está presente em diversos países [12]. Acredita-se que a sua utilização não seja condenável por si só, mas que seria recomendável um ato normativo próprio da Susep, estipulando critérios a serem seguidos nos casos concretos. De modo contrário, é bem provável que quem acabe não observando as boas práticas de conduta seja o próprio órgão regulador e fiscalizador em questão.

Pelo exposto, é possível concluir que a Resolução CNSP nº 382/2020 traz importantes contornos sobre as boas práticas de conduta a serem observadas pelas sociedades seguradoras, sociedades de capitalização, entidades abertas de previdência complementar e intermediários. É preciso, todavia, que, além delas, a Susep e os segurados também continuem dando a sua parcela de contribuição. Apenas dessa forma as mudanças almejadas no setor segurador irão realmente se concretizar.

 


[1] Confira-se, por exemplo, o artigo 6º da norma da Susep e o artigo 4º da norma do CMN, o artigo 8º da Susep e o artigo 6º do CMN, bem como o artigo 12 da Susep e o artigo 7º do CMN.

[2] Advirta-se, porém, que, até 31 de dezembro de 2020, as atividades de supervisão de conduta previstas na norma serão exercidas apenas com caráter educativo e orientativo, ou seja, sem punição das entidades reguladas, conforme disciplinou a Carta Circular Eletrônica Susep/DIR2 Nº 001, de 01/07/2020.

[3] Confira-se o amplo conceito dado ao “intermediário” pela norma (artigo 2°, inc. V): “o responsável pela angariação, promoção, intermediação ou distribuição de produtos de seguros, de capitalização e/ou de previdência complementar aberta, tais como o corretor de seguros, o representante de seguros, o correspondente de microsseguros, o distribuidor de título de capitalização, dentre outros executores das atividades enumeradas neste inciso”.

[4] Sobre o tema, seja consentido remeter-se a JUNQUEIRA, Thiago. Tratamento de dados pessoais e discriminação algorítmica nos seguros. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. No que toca ao tratamento de dados pessoais, confira-se, ainda, os artigos 2º, inc. VIII, alínea “f” e o artigo 7º, inc. V, da Resolução CNSP nº 382.

[5] Além da taxa de intermediação, é imperiosa a informação de ao menos os seguintes pontos (artigo 4°, § 1°): “I – qualquer participação, direta ou indireta, igual ou superior a 10% nos direitos de voto ou no capital que detenha em um ente supervisionado; II – qualquer participação, direta ou indireta, igual ou superior a 10% nos seus direitos de voto ou no seu capital detida por um ente supervisionado ou pelo controlador de um ente supervisionado; III – a existência de alguma obrigação contratual para atuar como intermediário de produtos de seguros, de capitalização ou de previdência complementar aberta com exclusividade para um ou mais entes supervisionados, informando os respectivos nomes ou os nomes dos entes supervisionados para os quais atua como intermediário, caso não haja contrato de exclusividade”.

[6] A decisão proferida no dia 01/07/2020 pela Juíza Federal Substituta Andrea de Araújo Peixoto, da 10ª Vara Federal do Rio de Janeiro, se apoiou na “ausência de competência da Presidência do CNSP, e por corolário, da Superintendência da Susep, nos termos do artigo 33 do Decreto-Lei nº 73/66 e dos artigo 21, XIX; 22, § 2º; e 29, III, do Decreto 60.459/67, para a criação de obrigação profissional não prevista em lei stricto sensu para os corretores de seguro”.

[7] Confira-se a decisão do Desembargador Federal Ricardo Perlingeiro (TRF da 2ª Região): https://genteseguradora.com.br/2018/wp-content/uploads/Agravo-de-Instrumento-Susep.pdf. Acesso em: 26/07/2020.

[8] Não se desconhece o fato de que mesmo que haja a devida informação da taxa cobrada pela intermediação, será muito difícil controlar premiações atreladas ao volume de vendas dos intermediadores. O ponto, todavia, impactará apenas indiretamente os consumidores. 

[9] De acordo com o artigo 6°, § 1º da Resolução n° 382, de 4 de março de 2020, a PIC deve, no mínimo: “I – ser aprovada pelo conselho de administração ou, na sua ausência, pela diretoria do ente supervisionado; II – ser objeto de avaliação periódica; III – definir papéis e responsabilidades no âmbito do ente supervisionado; IV – ser compatível com a natureza do ente supervisionado, com as linhas de negócios em que atue, com o perfil de clientes, bem como com as demais políticas instituídas; V – prever programa de capacitação periódica de empregados e funcionários terceirizados que desempenhem atividades afetas ao relacionamento dos entes supervisionados com seus clientes; VI – prever a disseminação interna de suas disposições; e VII – ser formalizada em documento específico”.

[10] Artigo 11 da Resolução n° 382, de 4 de março de 2020. […] “Parágrafo único. Considera-se ato nocivo, para fins do disposto nesta Resolução: I – comercialização de produto suspenso; II – graves práticas de comercialização sem observância aos ditames normativos; ou III – reiteradas práticas de comercialização sem observância aos ditames normativos.”

[11] Assim como na seara penal, na esfera administrativa o flagrante preparado é conduta ilegal por configurar crime impossível (artigo 17 do Código Penal), conforme prevê o verbete da Súmula 145 do STF (“Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”). O Mandado de Segurança impetrado pela FENACOR contra a Susep, referido anteriormente, também chegou a afastar a aplicação do artigo 9º do normativo, sem dispor, todavia, de qualquer fundamentação para tanto. Em segunda instância, a aplicabilidade do artigo, por ora, foi reestabelecida (cf. nota de rodapé 8).

[12] A Financial Conduct Authority (FCA) do Reino Unido, por exemplo, ressalta o seguinte: “The FCA uses mystery shopping to help it protect consumers. This may be by seeking information about a particular practice across a range of firms (SUP 2.4.3 G (1)) or the practices of a particular firm (SUP 2.4.3 G (2)). One of the risks consumers face is that they may be sold products or services, which are inappropriate to them. A problem in protecting consumers from this risk is that it is very difficult to establish after the event what a firm has said to a 'genuine' consumer in discussions. By recording what a firm says in discussions with a 'mystery shopper', the FCA can establish a firm's normal practices in a way which would not be possible by other means”. Disponível em: https://www.handbook.fca.org.uk/handbook/SUP/2/4.pdf. Acesso em: 25/07/2020.

Autores

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    é doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra, pesquisador visitante do Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado (Hamburgo-Alemanha), e advogado e sócio do escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

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    é advogado do escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).

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