Opinião

Mortes decorrentes de intervenção policial exigem investigação criminal isenta

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28 de julho de 2020, 10h35

No início de julho, a comunidade jurídica, a policial e a sociedade civil foram surpreendidas por uma decisão imanada por juiz do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo que, julgando pedido de Habeas Corpus impetrado por uma entidade que congrega alguns oficiais da Polícia Militar, autorizou que policiais militares realizem a apreensão de armas e objetos relacionados a mortes decorrentes da intervenção policial.

Ao analisar o mérito do pedido, a referida decisão conclui pela inconstitucionalidade da Resolução de n° 40 da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), a qual, em suma, determina que cabe ao delegado de polícia responsável, após comparecer ao local dos fatos, efetuar as apreensões dos objetos e colher as demais provas relacionadas com a ocorrência — com o claro intuito de preservar a fidedignidade dos vestígios e contribuir para a busca da verdade dos fatos.

De plano, cabe destacar que a decisão em comento é eivada de inúmeros e evidentes equívocos jurídicos. Preliminarmente, do ponto de vista instrumental, nosso ordenamento jurídico não confere a juiz singular militar realizar controle de constitucionalidade concentrado de ato normativo em abstrato. Já sob o aspecto material, a decisão parte de uma premissa absolutamente equivocada de que o homicídio doloso praticado por policial militar em exercício de suas funções contra civil seria de natureza militar, e não comum (na acepção técnica do termo).

Em verdade, não há crime mais comum do que o homicídio (CP, artigo 121), chamado de "crime rei" pela doutrina jurídica. Tanto é assim que nossa Constituição Federal estabeleceu que seus autores não devem ser julgados por um juiz togado, mas por um tribunal específico composto por seus pares, ou seja, por "pessoas comuns"  o tribunal do júri conferindo-lhe inclusive status de cláusula pétrea (CF/88, artigo 5º XXXVIII, "d"). Corolário de tal constatação é que os atos investigatórios, em respeito à simetria inerente ao sistema acusatório, devem ser realizados pelo braço policial auxiliar da Justiça comum as Polícias Judiciárias não subsistindo justificativa para a militarização de tal múnus público.

Nessa esteira, observa-se que o legislador constituinte preocupou-se em definir de maneira expressa e cristalina os limites de atuação de cada força policial (CF, artigo 144), conferindo às polícias militares a importante atribuição do policiamento ostensivo e de preservação da ordem pública, e incumbindo às Polícias Civis as funções de Polícia Judiciária e de apuração de infrações penais (exceto as militares). Qualquer investida no sentido de distorcer, ampliar ou usurpar tais atribuições, portanto, fere de morte o pacto democrático de respeito às normas constitucionais vigentes.

Mas é na prática que se pode constatar o real potencial danoso de tal subversão da lógica jurídica à sociedade. Como se sabe, a colheita e apreensão dos objetos relacionados ao delito constitui etapa fundamental para início e continuidade das investigações criminais. Mais do que isso, a percepção sensorial do delegado de polícia e sua equipe diante da cena do crime constitui elemento determinante para o êxito da descoberta da verdade, especialmente nos crimes de homicídio.

Nesse sentido, por exemplo, o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil determina que, ao chegar ao local do crime, a equipe policial civil realize um procedimento denominado Recognição Visuográfica de Local de Crime, relatório no qual são registrados todos os dados e impressões possíveis da cena do crime: data do fato, hora, local, condições climáticas, características geográficas, objetos, informações obtidas por meio de entrevista a eventuais testemunhas, além de uma descrição minuciosa do cadáver tudo em consonância com os preceitos processuais penais (CPP, artigo 6º , I). Por meio de tal especialização técnica, os números do DHPP da Polícia Civil paulista fazem dele referência nacional na área em 2019, o índice de elucidação de homicídios foi em torno de 60%; no caso das chacinas, próximo de 100%. Com a possibilidade de apreensão dos objetos relacionados ao fato por oficiais da Polícia Militar antes mesmo da chegada do delegado de polícia ao local, tais fundamentais procedimentos ficam inevitavelmente prejudicados, quando não impossibilitados, comprometendo de maneira determinante e irreversível a eficiência e o êxito das investigações.

Necessário destacar ainda que a decisão em comento não exerce qualquer efeito sobre os policiais civis, vez que estes não estão submetidos à jurisdição da Justiça Militar. Desse modo, deverão continuar exercendo normalmente suas atribuições legais, por meio da instauração do competente inquérito policial civil ainda que prejudicado desde a sua gênese. Observa-se, então, a criação de uma situação anacrônica, em que serão iniciadas duas investigações em paralelo sobre o mesmo fato, causando como resultado óbvio o retrabalho, desnecessário dispêndio de recursos humanos e materiais, o indesejável acirramento de pontos de tensão entre as forças policiais, além da nefasta insegurança jurídica aos próprios policiais.

Para além do prejuízo à eficiência das investigações, ao tentar retirar da Polícia Civil órgão técnico, especializado e isento a possibilidade de executar de maneira plena sua atividade essencial, a situação criada tem o condão de lançar dúvidas acerca da (ausência de) isenção de apurações realizadas por policiais militares em relação a resistências seguidas de morte envolvendo seus próprios pares, contribuindo para o sentimento de impunidade entre a população em geral. Imperioso destacar que, muitas vezes, a ação policial que resultou em evento morte pode se revelar absolutamente legítima quando, por exemplo, os agentes tiverem agido acobertados por uma excludente de ilicitude (CP, artigo 23). Nesses casos, a atuação investigativa da Polícia Civil reveste-se de garantia aos próprios agentes públicos envolvidos nos fatos, para que não pairem quaisquer suspeita acerca da legitimidade de suas condutas, quando assim couber.

E, para acrescentar o último ingrediente de insensatez nessa longa receita de equívocos, a decisão surge em circunstâncias absolutamente inconvenientes, quando assistimos a uma escalada de casos de violência policial militar no estado (a título de ilustração, somente no mês de abril de 2020, segundo dados da SSP-SP, houve um incremento na ordem de 56% de mortes decorrentes de intervenção policial). Ou seja, em um momento em que a sociedade necessita do fortalecimento de suas garantias, assistimos a uma medida que, na contramão, tende a arrefecê-las.

De se lembrar, por fim, a necessidade de o Estado brasileiro prestar observância às convenções e tratados internacionais de direitos humanos. Em 2004, no caso Jaílton Neri versus Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos emitiu recomendação contrária a possibilidade de a Polícia Militar investigar violações de direitos humanos cometidas por policiais militares. Já em 2009, no caso Escher versus Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou o Estado brasileiro culpado em caso de investigação criminal realizada por policiais militares. Nesse sentido, ressalta-se que o Brasil já foi punido em tribunais internacionais por força da militarização de investigações. Não se pode, assim, admitir retrocessos que, caminhando na contramão da história, possam ainda colocar o país sob risco de responsabilização e descrédito internacional.

Como se conclui, preservar a atribuição investigativa da Polícia Civil nos casos de morte decorrentes de intervenção policial, para além de refletir o respeito às normas constitucionais e legais, representa preservar garantias do cidadão — verdadeiro detentor de todo o poder no estado de Direito (CF, artigo 1º). Ao revés, investidas tendentes a fortalecer projetos corporativistas de poder travestidos sob o falso manto do interesse público devem ser, mais do que nunca, rechaçados com a devida veemência pelas autoridades públicas e pela sociedade.

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