Opinião

Sobre a disponibilidade de medicamentos no enfrentamento da Covid-19

Autor

  • Calil Simão

    é jurista escritor professor autor da obra "Elementos do Sistema de Controle de Constitucionalidade” (Editora Saraiva) mestre e doutor em Direito e investigador vinculado ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES).

28 de julho de 2020, 18h16

Existe um debate muito mais político do que técnico sobre qual deveria ser a posição do Ministério da Saúde no fornecimento de determinados medicamentos, com ênfase na cloroquina, aos usuários do Sistema Único de Saúde. Esse dilema é esclarecido pelo que denominamos no Direito Administrativo de gestão de risco.

O sistema de gestão de risco administrativo se assenta em dois conceitos básicos: prevenção e precaução. O princípio da prevenção impõe ao Estado o dever de se abster de praticar atos que importem em danos conhecidos (certeza da potencialidade), enquanto o da precaução o impede de aventurar-se na prática de atos que possam causar danos (incerteza da potencialidade).

Não só o Direito Administrativo se ocupa da gestão de risco.

O fornecimento de medicamentos relativos ao enfrentamento da Covid-19, não obstante os mencionados postulados de gestão de risco próprios do Direito Administrativo, deve ser analisado segundo os postulados da Bioética.

A Bioética é uma área de estudo interdisciplinar que surge na segunda metade do século XX e envolve a Ética e a Biologia, sendo a palavra composta da junção dos radicais "bio", que advém do grego bios e significa vida no sentido animal e fisiológico do termo, e ethos, que diz respeito à conduta moral.

Possui base fundamentalista nos princípios éticos que regem a vida quando essa é colocada em risco pela Medicina ou pelas Ciências.

A Bioética, como ramo de estudo interdisciplinar, utiliza o conceito de vida da Biologia, o Direito e os campos da investigação próprios da Etica para problematizar questões relacionadas à conduta dos seres humanos em relação a outros seres humanos e a outras formas de vida.

O modelo de análise bioética comumente utilizado e de grande aplicação é o "principalista", introduzido por Tom L. Beauchamp e James F. Childress (Principles of biomedical ethics), em 1989. Esses autores propõem quatro princípios bioéticos fundamentais: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça.

Princípio da autonomia
Segundo o princípio da autonomia, os indivíduos capacitados para uma decisão ou deliberação devem ser tratados com respeito a essa capacidade; logo, qualquer ato médico deve ser autorizado pelo paciente.

Quem não concorda com a prescrição não deve aceitar, pois é assegurado o seu direito de recusa, consequentemente, é impossível impor a sua utilização sem o devido consentimento.

Esse mesmo princípio aplica-se ao profissional médico, no sentido de que deve ser respeitada a sua decisão no caso concreto, tendo em vista ser a pessoa capacitada que está diante do quadro clínico que deve ser tratado, e, portanto, que exige a sua intervenção.

Princípio da beneficência
Segundo o princípio da beneficência, existe uma obrigação ética em maximizar os benefícios e minimizar os prejuízos, reclamando do profissional que a sua atuação (convicção e informação técnica) assegure que o ato médico seja mais benéfico ao paciente (ação que faz o bem).

O direito de recusa, que é pessoal e intransferível, não pode impedir o acesso ou a disponibilização do medicamento para as pessoas que tenham decisões diversas, pois isso implicaria em desprestigiar o princípio da beneficência.

Princípio da não maleficência
Segundo esse princípio, é vedado causar qualquer dano intencional ao paciente, devendo toda conduta médica ser dirigida para fazer o bem.

Caso surjam estudos técnicos seguros e comprovadamente verdadeiros e embasados em protocolos científicos, indicando que determinado medicamento faz mal ao paciente, o princípio da não maleficência impedirá o profissional médico de ministrá-lo.

Importante registrar, nessa seara, que é possível que o problema não seja do medicamento em "si", mas da dosagem, e, nesse caso, não temos uma proibição na sua prescrição, mas na dosagem dela.

Princípio da justiça ou equidade
Segundo o princípio da justiça, a conduta deve ser pautada pela equidade, ou seja, deve-se tratar todo e qualquer indivíduo de forma igualitária, moral e imparcial, evitando que aspectos políticos, sociais, culturais, religiosos e financeiros interfiram na relação médico-paciente.

Todos tem o direito de ter o acesso, especialmente gratuito (SUS), e de decidir, junto com o seu médico, o uso do medicamento no caso concreto.

A decisão de um médico ou de uma pessoa, por ser individual e sem embasamento científico seguro, segundo os princípios da beneficência e não maleficência, não pode ser tratada como uma verdade absoluta de modo a impedir a disponibilização de determinado medicamento sem indicação ou contraindicação comprovadas cientificamente.

No âmbito do SUS, o princípio da justiça orienta os órgão de direção da saúde no sentido de que devem haver recursos e esses recursos devem ser equilibradamente distribuídos, com o objetivo de alcançar, com melhor eficácia, o maior número de pessoas assistidas.

Conclusão
Em situações em que não se possa aguardar comprovações científicas precisas sem que o dano colateral seja alto, o princípio da beneficência e da justiça asseguram o fornecimento dos recursos necessários e disponíveis para todos, especialmente para os usuários do SUS, e os princípios da não maleficência e da autonomia conformam essa disponibilização no sentido de que cabe ao médico o direito e o dever de prescrever, dirigindo a sua conduta sempre para buscar o melhor, o bem, e, ao paciente, o direito de aceitar e recusar.

Diversamente do apontado pela grande mídia e por determinados especialistas, a decisão sobre ministrar um ou outro medicamento sempre foi e sempre será do médico no caso concreto, e a sua conduta sempre foi e sempre será orientada pelos princípios da bioética. Igualmente, ao paciente, sempre foi facultado, em especial nas situações de incerteza, não só a decisão final sobre aceitar a prescrição, mas, igualmente, o dever de manifestar essa decisão previamente e formalmente.

Em casos de incerteza científica da eficácia de determinado medicamento, ao Sistema Único de Saúde cabe apenas disponibilizar e assegurar o fornecimento de todo e qualquer medicamento, em especial os medicamentos adotados ou passíveis de serem adotados pelos médicos no enfrentamento epidêmico, no caso concreto, mesmo que incertos, pois cabe ao médico e ao paciente, no caso concreto, a decisão final. Nessas situações, o Ministério da Saúde não pode recomendar nem impor o seu uso, estabelecendo, por exemplo, protocolo de utilização, mas deve tão somente assegurar a sua disponibilização para que o médico e o paciente, se assim a situação do caso concreto exigir, façam uso dele.

Em sentido similar, embora sem invocar os princípios bioéticos aqui defendidos, caminham a Associação Brasileira de Medicina e o Conselho Federal de Medicina no Parecer n° 04, de 2020 no tocante à autonomia do médico em conduzir.

Autores

  • Brave

    é jurista, escritor, mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino (ITE), pós-graduado pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC - Portugal) e investigador vinculado ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), contando com diversos livros e artigos científicos publicados nas áreas de Direito Constitucional e Direito Administrativo.

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